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ARTE

domingo, 20 de junho de 2010

CAIS DO SODRÉ

JOSÉ MARIA ALVES









Tarde fria de Inverno
Ramon termina o trabalho
Na garagem Conde Barão

Como há algum tempo
Encontramo-nos vestidos a rigor
A Norton 500
Uma preciosidade
Não permite desalinho
Nem desdém


Julgo que por essa altura
Teria dezassete anos
Com mestres de envergadura


Cais do Sodré
Filadélfia Texas Copenhaga Jamaica
Mais tarde o Atlântico
Famigerados bares
Não havia marinheiro que jejuasse
Não havia náufrago em terra
Que após viagens de longo curso sobre mares de prata
Não tenha sonhado com noites loucas
De orgasmos suados
De sabor a sal e
Com um quarto de pensão rasca
Num sobe-e-desce
No corre-corre de uma nota
Trocada por minutos de prazer


Maiores de 21
Lê-se à entrada
Eu entro sempre
Sou amigo de gerentes
Empregados
Porteiros
Dos clientes
Bartolini
Russo e
Outros de estranhos apelidos
Principalmente do Ramon
Emblemático
Com idade para ser meu pai
Porte de cedro do Líbano
Parecença de artista de animatógrafo
Dos anos sessenta


Para as prostitutas eu era o miúdo
Para os amigos e proxenetas também
Os porteiros olhavam para o lado
E diziam umas vezes sorrindo outras entediados
Entra
A tua já anda por aí com um Cámone
Ou
Tens princesa nova para cantar
Chegou da província
É virgem dos ouvidos
Sarcasmo duma vida em pé
A ver entrar e sair
Subir e descer
Corpos anónimos

Porteiros tapetes-de-putas
Homens sem rosto
Sem história própria
Por tanto viverem as dos outros
Pernas habituadas ao cansaço e à dor
À chuva ao frio ao calor



Do Cais do Sodré
Já não se partia para a Índia
De caravela
Construída na Ribeira das Naus

Do Cais do Sodré
Saíam e saem cacilheiros
Para Cacilhas
Autocarros para toda a cidade
Eléctricos amarelos
Comboios para Cascais
Agora até o metropolitano
Que um dia vai inundar
Palavra de quem sabe

No Cais do Sodré entrava-se
Com uma pita
Num quarto a cheirar a mofo
E saía-se mais leve
Com sono e sem guita


Havia gente que corria
Que se atropelava
Para não perder o barco
Não perder o comboio
Gente exausta
Sem identidade
Autómatos do progresso
Que se empurravam
Por um lugar sentado
No eléctrico
Que subia a Rua do Alecrim
Para o Camões

Bastava um tanso começar a correr
Que tudo o seguia
Rebanho de bacocos
Corriam para não perder a hora
Uns atrás dos outros na esteira do guia
Lanterna-vermelha atrás
A manquejar o coxinho
Já sem ver o condutor
Mas corria saltinho atrás de pulinho

Por vezes um de nós tirado à sorte
Fazia o papel de batedor para diversão do ócio
Do descanso da praça
Correndo sem parar para a estação

Um dia fim de tarde
Um pipi-de-Alcântara estatelou-se
A fronha ensanguentada
Rimos
Enquanto se preocupava com os rasgões
Das calças
E dos cotovelos da jaqueta
Comprada na Rua da Palma
Ou palmada no Estoril
A fronha que se quilhasse
Tinha compostura
A roupa não


Na rua do Arsenal
Bacalhau às postas
Grosso miúdo médio
Inteiro
O cheiro a bacalhau seco
Caras de bacalhau
Cheiro forte
Intenso
Perfumado de séculos

Vendedores de rua
Varinas
Homens descalços
Com caixotes
Às costas
Vendedeiras
Vendedores de bugiarias
Vigaristas
Um verdadeiro reboliço
Para as mãos sensíveis dos carteiristas

Bancas de jornais
Revistas
O material de guerra escondido
Um jornal desportivo
De operários e estivadores


O Engraxa desaparecera
Começou a mostrar o dinheiro que rendeu
O assalto ao Banco da Avenida de Roma
Só engraxava quem queria
Um bufo-carteirista deu à língua
Foi dentro
Nunca mais o vi
Irmãos de profissão
Não mais confiei em ninguém


Nos bares dançava-se
Bebia-se cerveja
E amava-se
Há séculos que marinheiros sedentos
Navegantes de mares cruzados
Longas viagens ao sabor do vento
Vazavam os desejos
Bebiam os sonhos desfeitos

Havia todo o tipo de chulos
Apenas uma meia-dúzia trabalhava
Os outros nada faziam
Tinham as chavalas a render
A partir da tarde encostavam-se
Cigarro no canto da boca
Às paredes do largo
Ou vagueavam de bar em bar
Como marinheiros
Impelidos por bons ventos
No mar

Espreita-me aquela a estibordo
Olha olha Alentejano a bombordo a bombordo
É capital seguro prá reforma
Vê-me a Ana Marada
O Xico da Mouraria levou-a ao tira-picos
Hoje à reforço na mesada

A Esganiçada vem de proa alevantada
Ontem não fez nem um é pra compensar
Ou faz ou o Caga-Milhões cega-a de porrada
Isto está mau não há bronze
O pessoal bota a nota debaixo do sapato
E toca uma gaitada
Sai barato

Ontem à noite houve sova de pau no Texas
Os fuzos com os feijões-verdes
Que estão para embarcar para a Guiné
Esfrangalharam o negócio todo
E o bar ao homem
Eu também estou a berrar
A Marizé pirou-se com um olho negro
Adianta-me uma vintena


Elas davam prazer aos marujos
Alguns de água doce
Os chulos protegiam-nas
E davam-lhes prazer
Tudo tem um preço diziam
Ninguém se vende
Não há nada para vender
Só prestação de serviços
O casamento também é um contrato
E quase nunca é a valer


Prostitutas de todas as idades
Vindas de toda a parte
Novas velhas de meia-idade
Umas limpas outras esquentadas
Nada que uma injecção não curasse
Prostitutas obrigadas
Prostitutas necessitadas
Prostitutas de uma verdade escondida
Prostitutas cansadas
Prostitutas vadias
Calaceiras
Mas confidentes da adversidade alheia
Ouvintes atentas do pagador
Que tantas vezes
Ia apenas em busca de amor
Ou para desabafar mágoas
De casa
Do trabalho
Do filho estropiado
Por uma mina na picada

Prostitutas
Prostitutas sim mas não mercenárias
Prostitutas como já não há


Cais do Sodré de tantas quimeras
Cais do Sodré de alegrias e misérias



Num dos bares
Corpo novo lavado
Chamavam-lhe Cleópatra

Alta
Mais alta do que eu
Tão alta como o Ramon
Esguia
Quadris de sonho
Rosto egípcio
Olhos rasgados
Beleza incomparável
Cabelos negros
Modelados em ondas
Perfeitas e sensuais
Roçando a cintura
E os seios estáticos
A clamar ao anseio
A perpetuar o desejo

Chegara há dias
Não ia assim com qualquer um
Não era eleita
Ela elegia
Às vezes não fazia nenhum

No Cais do Sodré nunca tal se vira

Passava distante pelas mesas
Alguns clientes abordavam-na
Olhava-os de baixo a alto
Uma ou duas palavras
Noutras abordagens
Seguia indiferente
Magnificente e desejada


Na mesa cheia de cervejas
De brejeiros e madraços
Nasce o desafio
Miúdo
Cervejas por um mês
Faz-te à garina
Só vale se for uma borla
Riram-se
Insistiram na festa
Nunca cheiraste nada assim
Já comeste pior e a pagar


Olhei em redor
Mais uma cerveja
Depois vou
Juro
Se levar uma latada
Não serei o primeiro

Riram-se adivinhando festival
Eu sorri às cervejas

Olho-a
Ela ignora-me
Volto a olhar
Ou sim ou sopas dizem
Levanto-me
Espera
Deixa a narta na mesa
Ó esperto
Ou queres mamar à conta
Dos otários
Só tenho dez paus respondo
Deixa-os
Poiso-os contrariado na mesa
Os olhos ora no chão ora na cadeira
E se me voltasse a sentar
Não

Ela está ao balcão
Intimidatória
Bela
Sinto um aperto no estômago
Um sobressalto de alma
Um tiro de obus no coração
Deve ter mais dez anos do que eu
Que mulher

Debruça-se na direcção do barman
Por cima do balcão
A roupa cola-se ao corpo
Meu deus
Que formas que lastro
Não conheço o chulo
Ainda me dá cabo do canastro

Aproximo-me
Espero que saia do balcão
Abordo-a a meio da sala obscurecida
Enevoada pelo fumo
Boa tarde digo
Tarde não noite diz
Isso
Que mal fiz eu a deus penso
A suar do peito

Olha-me demoradamente
Como quem aprecia um objecto
Baixo os olhos
Vem-te sentar miúdo
Respiro fundo de alívio
Ela percebe

Não bebemos nada
Olho-a submisso
Bebemos ou não
Bom aqueles tipos ficaram-me com o dinheiro
Sorriu e o seu sorriso não foi o de uma meretriz
Vejo-a fazer um sinal ao Jóia
O empregado velho

De imediato
Dois copos de cerveja na mesa

Falamos falamos falamos
Ouço-a e a voz é lenta pausada
Dá tranquilidade e paz
Ajeita o vestido tapando os joelhos
Assume o diálogo
Faz-me perguntas e fala dela
Diz que tenho um sorriso triste
Que não sei rir
Lê-me a alma e entende a minha agitação
Tens namorada
Digo que não
Riu numa gargalhada contida
Não devias andar por aqui
Neste antro só há vício não vais aprender nada
Estás a tempo miúdo
Tens dormido com muitas
Encolho os ombros com timidez
Ela sorri benevolente

Esqueço-me dos companheiros na mesa do fundo
Só eu existo e ela

Uma talvez duas horas
Passadas num ápice
Pergunta-me a frio
Vamos
Finjo não entender
Repete
Vamos miúdo
Gaguejo
Não tenho dinheiro
Não me ofendas vem
Não tenho chulo não tenho ninguém
A quem prestar contas
Vou
Corpo direito como fuso
Sem olhar os apostadores atónitos
Coração a bater alvoraçado


A pensão é perto
Vamos a pé
As escadas são negras e sujas
Sigo-a
Dá-me a mão e estremeço
Vai à frente e paga o quarto adiantado
A matrona indica-nos o ninho
Apontando-o com um molhe de couves
Apertado na mão
Estava a fazer sopa
Tira-me as medidas

O quarto é velho
Não parece ter sido convenientemente limpo
Há um bidé
Um lavatório ao fundo da cama
Duas toalhas minúsculas gastas
A cama está coberta por uma colcha coçada desenhada com flores que foram púrpura e azul-violáceo
Por baixo lençóis amarelados que já devem ter sido usados milhares de vezes
Uma janela pequena dá alguma claridade
Iluminando as sombras da penumbra
Uma mesinha de cabeceira
Um quadro da Nossa Senhora da Conceição
Na parede onde está uma mesinha com pernas desengonçadas
O tabique tem um rombo superficial de meio metro
O chão de madeira não está aplainado ou então está empenado
Tapado parcialmente por dois tapetes que certamente passaram pela guerra do ultramar tal o seu estado


Ouve-se um rumor no quarto ao lado
Um cliente quer o terceiro prato
Ela
Não sei quem
Grita
Paga anormal
Ou há papel ou não há palhaço


Vejo-a tirar os sapatos
Descobrindo metade das pernas
Arredondadas cor de pinho-mel

Sento-me na cama vestido
Ela aproxima-se
Envolve-me com os seus braços longos
Acaricia-me a face os cabelos e beija-me no pescoço junto ao peito
Não estou à vontade
O odor libertado pelo quarto mofento
Mistura-se com os nossos perfumes

Sinto à flor da pele
Um vento suave e doce
Um calafrio como se a morte passasse ao lado
Incógnita e indiferente

Vou alcançando lentamente
Segurança
Alguma serenidade

No amparo das suas carícias
Enlaço-a e beijo-a na boca rosada
As minhas mãos percorrem com suavidade o seu corpo escultural adivinhando uma nudez esplêndida
Nada me lembra ou faz pensar nos dias de amor que por ela desfilaram

Somos apenas nós
Dois que de momento a momento se transformam num

As mãos já me não tremem
Os dedos deslizam no veludo dócil da pele
Paulatinamente como quem embala uma criança
Dispo-a descobrindo-se um corpo alucinante
Os meus lábios percorrem o seu ventre os seios os ombros de marfim cinzelado
As minhas mãos sobem dos joelhos em movimento circular e detêm-se na flor do seu sexo
Talhado por escultor grego

Os corpos unem-se num místico amplexo
Há um leve gemido que se contorce de prazer
Um grito abafado pela almofada bordada de modo imperfeito talvez grosseiro

A matrona bate à porta
Avisa
Vê se te despachas o tempo acabou

Ela levanta-se
Porta entreaberta
Estende-lhe uma nota
Fecha-a definitivamente

Corre para o leito
O quarto transforma-se
Não tem o odor do sexo
Do suor das tardes
E noites mal-amadas
É movimento
É fulgor
É êxtase

No ar
Pairam orgasmos sucessivos
Que bailam no luar da janela
Há gritos
Bramidos
Ruídos surdos
Um só corpo a amar
Um só corpo a bailar
Há odores de flores sivestres
Margaridas
Camomilas
Narcisos
O quarto decorado
A rosmaninho
Salva e alecrim
Há arrebatamento
Há o fim do pensamento
Há um deus que nos incita
A amar
Ao amor
Há uma ânsia de continuar
De amar sem findar
Há a eternidade da inocência
Eternidade que não quer terminar
Um amor com o vento Norte a pairar
Um amor forte e violento como a morte

Olhamo-nos
Suados de cheiro celestial
Mente vazia
De quem nasceu para a Vida
Em horas de místico prazer

Despedimo-nos
Uma lágrima escoa de seus olhos negros
Nasceste para isto miúdo
Nasceste para isto
Sussurra
Suave doce
Amaviosa
Enquanto me acaricia os cabelos em desalinho


Miúdo
Diz

Hoje perdi a virgindade
Sou tua


Sustenho a respiração
Fecho os olhos
Vendo o que não voltarei a ver
Amando ainda por segundos o que jamais voltarei a amar
Quebro o silêncio a tristeza a saudade
E sentindo no peito o dia a clarear digo


Hoje sei o que é Amar
Sou teu



Nunca mais a vi
Nunca quis receber o prémio da aposta


JOSÉ MARIA ALVES
http://www.homeoesp.org/

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