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ARTE

domingo, 13 de maio de 2012

O LOUCO







Mirito nasceu
Nasceu num palheiro
Feito casa
Como Jesus

Paredes de pedra rude
Amontoada
Pedra solta
Pedra não aparelhada
Áspera como a pobreza
Dolorosa
Escura como a tristeza

Telhado de colmo
Donde se espreitavam as estrelas e sentia a chuva fria Entrada em dia de borrasca

Na torre da igreja o sino tocava tocava
Mirito nasceu de rosto belo e já trigueiro
Ao som da Avé-Maria

Que Deus o abençoe disse a mãe
Que a Senhora da Fátima seja sua madrinha e lhe faça a cruz na testa para afastar demónios e tentações
Disse a parteira da aldeia Tia Zefa do Moinho
A Zefa da Anunciação

A vizinha Madalena rezou um Padre-nosso
E uma oração calada para ninguém ouvir a não ser Nosso Senhor

Não te esqueças mulher de acender uma vela na Santa Eufêmia
Uma vela do tamanho do rapaz
Tanto faz
Respondeu a parturiente
A vela terá o tamanho da minha bolsa
O que vale é a intenção
E olha que a tua oração não irá cair em cesto roto


Mirito nasceu
Mirito cresceu


Nasceu numa noite de luar
De sombras a afagar a pobreza
E com o sino a tocar a tocar
Prenúncio de tristeza
Anúncio de morte a bailar a bailar

Na escuridão a luz
No altar a cruz
Que Mirito haveria de carregar
Correia a enlaçar
De aldeia em aldeia
Cantando e dançando melodias desconhecidas
Até que um tal ou qualquer Arimateia
O levasse a sepultar em cova funda e anónima
Depois de o encontrar caído na curva da estrada poeirenta e resplandecente de luar no gelo alvar

Encontrá-lo-ia
Agonizante sem remédio nem cura
Sem glória
Com a Senhora Morte ao lado
Cuidando do corpo inerte e da alma viva
Não se lembrasse alguém de a levar


Diria se pudesse
Estou certo que Miro diria
Leva-me para o Norte que o calor não suporto
Leva-me para o Norte onde é doce a Morte
Doce brancura de neve pura
Onde perco a memória
De vida malfadada

E continuaria
Certamente que o faria

Eu sou o Mirito leve gentil louco e sem dono
Eu sou o próprio Norte
A Liberdade
A tristeza
A Força da Natureza
Eu sou tudo o que o homem não é e despreza
Não sou como os demais

Sou Mirito
Servo da terra
Dos céus
Das estrelas
De bonanças e temporais e
Quero ser enterrado em cova funda onde animais e principalmente os homens me não possam
Nem encontrar
Nem incomodar
Que ressuscitar não quero


Mirito cresceu descalço
Roto
Esfarrapado
Com um sobretudo de alto a baixo rasgado

Sobretudo do Inverno
Sobretudo do Verão
Sobretudo da chacota da garotada da freguesia
Crueldade de rapaziada
Para com o pobre desgraçado que andava andava e se sóbrio se escondia
Em qualquer pinheiral


Mirito não foi à escola
Não aprendeu a ler
A somar
Nem seu nome aprendeu a escrever
Mirito não aprendeu a brincar

Não foi à escola e de nada lhe serviria
Contava até dois e depois
Qualquer número servia
Oito cinco dez quatro
Raramente mencionava o três
Letras não as conhecia
Nem o a e i o u

Falava entaramelado
Mas asneiras dizia
Escorreito
Quando o arremedavam
Essas eram poucos os que as não entendiam
Mas na escola não se ensinavam apenas se aprendiam e quem as já conhecia
Afinal que proveito tirava de horas mortas a inquietar outros garotos
O que o Mestre também por nada queria

Nunca aprenderia a ler
A contar
Ou escrever
E mesmo que algo pudesse aprender
Seria necessário querer

Por injustiça assim nasceu
Vagueando ora soturno
Ora alegre feito bobo
Percorrendo
Aldeias
Povos
Quintas
Escorraço de quintaneiros
Pouco falando
Por não querer
Ou não saber que dizer


Mirito cresceu com o vinho e com aquela cabeça tonta que desagrada aos homens e agrada a Deus


Um copo aqui outro além
Por alma de quem lá tem
Vá lá um copo não faz mal é Mirito quem diz
Vá lá por um momento faz Mirito feliz

Vai-te embora rapaz
O vinho ataca-te a moleirinha
Ficas mais estouvado do que és
Bebe um sumo
Um pirolito
Uma gasosa e
Dou-te um quarto de trigo com manteiga da arca

Daí o enganava o taberneiro intentando besuntar o pão com margarina da lata suja ou com molho velho das iscas a saber a ranço

Quero vinho o resto come-o tu

E Mirito crescia enquanto o sobretudo encolhia


Os rapazes vinham dos campos
Alguns tocados à paulada da lavra por acabar

Jogavam à bola no terreiro

Mirito passava
Seguia sem saber para onde
Olhando saudosamente para trás
Saudades sem saber de quê
Saudades porquê

Os rapazes brincavam com as raparigas
Dizendo-lhe coisas de que todos se riam
Mirito sorria por ver rir mas não percebia
Porque sorriam e porque sorria

Diziam-lhe
Cresce tonto depois se verá

Alguns namoravam um beijo às escondidas
Mirito sentia e sem saber como se fazia ficava triste
Uma tristeza natural acompanhada da ligeira brisa do pinhal ao lado do cemitério
Onde ensaiava com jeitos e trejeitos os beijos da moçada
O infeliz

Imaginava uma bela moça
Como vira num jornal da Venda
E que lhe valera um pontapé no traseiro
Por olhar coisas de gente normal
Na ideia da besta do taberneiro

Até a formiga-tonta já tem catarro disseram

Mas a bela loira de cabelos longos
Não lhe saía da cabeça
Afinal só olhara para uma fotografia de jornal
Suja de vinho
Amarrotada
Pasquim que parecia tão antigo como ele
Ele que dava tudo para ter aquela fotografia
Como seria feliz namorando-a com os olhos ardentes
Noites todas no seu leito de palha
Seria abençoado se a pudesse beijar ainda que papel

Essa loira de quem se via um pedacinho dos seios estava-lhe na memória
Enchia-lhe a mente inocente
Não saberia o que fazer
Talvez mexer de mansinho na carne luzidia
Talvez um beijo na face rosada
Ou na boca de dentes brancos

O restante desconhecia
Apenas sabia o que nas partes baixas sentia e por instinto tão bem lhe sabia
E que se dizia que Deus condenava

Melhor lhe agradaria de outra maneira
Dizia-se em segredo na Venda ao domingo
O que ninguém lhe contava
Que por ter bom ouvido ouvia
Ela havia de o ensinar
Quem sabe se hoje à noitinha
E por acaso
Aparecesse na curva deserta da estrada

E sonhava sonhava o pobre louco
Que nem à escola fora
A bola jogara
Na ribeira pescara
Nem nunca amara


E Mirito crescia enquanto o sobretudo encolhia


Pobre Miro pobre louco
Coitadinho


A sua cabeça já rodopiava como carrossel
Da feira de S. Bartolomeu

E via
Via coisas estranhas que o assustavam por momentos e rapidamente esquecia
Coisas do diabo
Coisas assanhadas
Arrepiadas
Que o possuíam e arrastavam pelos caminhos tortuosos na direcção de uma malga de vinho


Ó meu Mirito sofres tu e sofro eu
E Deus não nos vale


À noite
No palheiro
Via demónios
Uns sentados
Outros dependurados nas vigas de madeira velha e empenada

Das frechas do granito amontoado
Soltavam-se espectros luminosos em riso rugido

Demónios
Diabos
Fantasmas
Aparições
Diziam em voz rouca
Em gemido tremelicante
Miro tu és doido varrido
Bêbado
Vai-te Vai-te
Vai-te não durmas
Não te deixaremos dormir
Vê vês
Vê a mulher loira de longos cabelos entrançados
É feiticeira
A mais bela de todas
De todas as aldeias que conheces
Vai-te enfeitiçar
Vai-te encantar
Serás um sapo e os rapazes irão pôr-te a fumar a fumar a fumar
Até rebentar

Foge Mirito
Foge
Foge para as sombras da noite
Deixa-os na tua corte
Que fiquem com o curral
Que nem teu é
Que durmam na tua palha
Nos panos velhos cor de carreiro poeirento


Carago filhos de uma grande cabra
Excomungada
Que me não larga
Raios os partisse
Almas de trinta diabos
Tanto bento
Tanta bruxa
Tanto filho do demo
Tudo para me causar tormento


E Mirito noite dentro
Quilómetro a quilómetro
Ia da Mata ao Sobral
Do Sobral ao ribeiro
Do ribeiro à Aldeia-Nova
Sem demora e tento
Até raiar o primeiro raio de sol
Até ao Sol nascente

Quando o Sol estremunhado já espreitava na Serra das Fuinhas
O canto dos pássaros abafava o vozerio dos diabos com figura de gente
Dependurados nas pinhas dos pinhais
Espectros de Satã demente

Catano uma coisa assim Calai-vos deixai-me não vos quero ouvir almas do demónio

Miro desesperava
Miro gritava
Carago Inde-vos


A venda abria e Miro à porta da taverna
Olhava mudo o taberneiro estrovinhado
Que já sabia ao que vinha
Que já lhe conhecia o vício

Um copo por Deus para matar os demónios
Um copo por Nossa-Senhora
Um copo para suster a agitação
Cinco tostões para matar a sede
Tostão a tostão para matar o Demo

Pelas alminhas que com Jesus lá tem
Pelas que no velório aguardam o Purgatório
Com Barrabás e o outro ladrão

Vai-te daqui agoirento
Vai-te vai-te
Que a Satanás encarniçado
Nem vinho nem pão
Pede-o a Judas que é teu irmão

Um copo pelo seu descanso
Por alminha de sua mãe

Pela mãe pela mãe agora sim tocara-lhe no coração
Toma alma-do-diabo
Bebe

Mirito bebia um dois ou três e ia sem direcção sem destino sem querer


Pobre Mirito pobre louco sem-tostão
Miro pobre-louco a quem as bruxas não deixavam sonhar ao adormecer


Em pequeno passava à minha porta
Ele já homem
Eu rapazito

Tomava da gaveta alguns tostões
Tia Cândida via e fingia não ver
Fazia a vontade ao filho-sobrinho
Que queria ser padre
E tanto amava
Pobres
Loucos
Velhos
Doentes
Animais

ZéIa que vais fazer perguntava
Nada de mais
Vou ver o Mirito que me chama do caminho e logo interrompia as orações ou fechava o Livro de Horas

Dois três copos de vinho

Mirito cantava agradecido sabendo que aquela porta lhe estava sempre aberta
Enquanto eu ingénuo o olhava embasbacado na sua dança estrada fora braços abertos a rodopiar voz rouca a soletrar língua estrangeira

Adeus Mirito
Amanhã passa por aí
Eu peço à Tia
E Mirito sorria
E eu não sabia que sua alegria
E minha felicidade
Nada valia ao agravar a doença de que padecia

Adeus Mirito
Pobre louco
Até amanhã
Até outro dia
À falta de capão
Cebola e pão
À falta de um tostão
Volta volta que te darei
Do vinho da Tia
Palavra
Tiro-o da adega
Às escondidas
Ninguém vai ver
Ninguém vai saber


O sino toca para a missa
Ou é para o terço
Já não estou certo

Eu cresço

Mirito mais velho
O sino tange uma morte

Eu estou no Sul
Mirito no Norte

O sino toca a rebate
Arde a encosta Poente do vale

O incêndio belo ameaçador
Já lavra no monte

Eu estudo para doutor
Mirito cada vez mais doente

O sino toca a Avé-Maria
Eu já não rezo

Mirito-o-Tonto não dança
Eu já não vou à igreja

Mirito com dificuldade anda
O sino toca toca sem cessar
E aquele pobre diabo está-me na alma
Na saudade que o vento frio da Serra traz
Para as paredes negras da cidade

Saudade que rói e dói


Mirito pobre louco
Eu também sofro


Noite de Inverno
Temporal
Miro já não tem as mesmas forças
Nessa altura eu vivo num jardim de betão com uma nesga de céu acorrentado à liberdade
Miro está cansado eu tenho depressão
A melancolia parida pela angústia existencial do sem-sentido-da-vida
O sobretudo cada vez mais rasgado deixa passar frio chuva neve à roupa mais interior do esfarrapado
O vento bramia
Vergava ramos de velhas árvores
Retorcia as novas há pouco plantadas
O vento gemia
Nas sombras dos olivais
Nos espectros das nuvens baixas
Fazendo rodopiar as folhas caídas

Uma chuva fina e fria
Que se entranhava na miséria
Molhava-lhe a alma

Miro continuava
Miro caminhava

Tinham-lhe dito
Não te metas ao caminho
Mirito não os ouvia
Vou para a Mata
Vou dormir

Caminhava contra o vento
Que rodopiava

Começou a nevar

Já não havia demónios diabos
Almas de outro mundo
Eram anjos alvos a bailar ao som do vento
Sinos a tocar Avé-Marias
Anjos que sorriam e o afagavam num leve arremesso

A neve caía caía em desconhecida melodia
Melodia que nenhum Bach comporia
E vestia-o de branco puro
Na casta inocência de quem na alma
Mal nenhum tinha

Miro parecia uma pomba no escuro
Um dominicano em êxtase de alegria

Mirito pobre louco sorria e ria
Dançando ao vento e à neve
Com anjos e querubins de verdade
E Jesus menino que assistia enternecido a ver
Tanto Amor e Liberdade

Chegado à curva dos sonhos
Da loira encantada
Miro cansado
Deixa-se tombar no valado
Exausto a dormir
A sonhar a sonhar com o Amor
Que sempre lhe fora negado


Os anjos entenderam
Jesus concordou
Melhor seria fazê-lo ascender
Mirito faria o Céu feliz
Haveria festa e alegria
Uma imensa Felicidade
Bondade e Inocência
Do homem que sempre fora petiz

Avé-Maria
Avé-Maria


Miro pobre louco meu bom amigo


Casmirito morreu no Inverno
Mirito subiu ao Céu entre anjos e arcanjos
Miro abandonou o inferno


Passaram anos



Na curva da estrada
Apesar do cansaço
Algo me impele a estancar

Há sombras vivas
Que repousam no asfalto
Árvores retorcidas
Que já deram o seu fruto
Vinhedos esquecidos

O Sol brilha através dos ramos dos pinheiros bravos
Um lavrador come a merenda à sombra de uma fraga
A mulher prepara estacas
O semeador descansa e bebe
O vinho com a frescura da água da mina
Ao seu lado
Pão de centeio
Queijo
Um naco de presunto velho

Sorri
O seu sorriso arrasta-me pela memória dos tempos
O seu sorriso é rosa-do-mundo
Vejo-me nos calções azuis cor de céu e na alva branca de domingo
Há missa
Os sinos tocam
Casimiro Casmiro Casmirito Mirito Miro
O meu amigo-louco
Da infância perdida
Miro
O Louco
Do sorriso infinito
Aberto
Livre
Ingénuo
Contagiante
Que ia à igreja só para me ouvir ler
Para me ver

Sinto saudades
Não sei se da vida
Se da morte
Se do mal
Se do bem
Sinto saudades
E sentir saudades
É ter ferida
Sangrante
Mas sempre é melhor
Ter saudades
Que não ter nada

Sento-me no muro em pedra circular
Vejo um vulto no chão
Eu que desde criança vejo coisas
Coisas que não devia ver
Coisas que me fazem sofrer

Foi aqui que Miro veio morrer

Estou cansado de tanta morte


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