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ARTE

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

NAVEGANTE




se queres aprender a orar
faz-te ao mar

todos sabíamos que aquele navegante perfumado de sal se deixara há muitos anos no esquecimento das fábulas de proferir orações mesmo as breves        era um animal marítimo a morrer todos os dias nos raios de sol na espuma branca do vento de sueste nas vagas aterradoras e ondulantes do fogo nupcial
não se escondia na aura das muralhas impenetráveis onde as palavras transbordam e as mentiras abundam em propícia ladainha
conhecíamos-lhe todos os vícios que o devoravam vivo queimando-o até à medula        mulheres e vinho        o rum do entardecer alumiado por fêmeas devoradas na rapina das horas suaves

os recessos inexplicáveis de uma biografia sem história        a lenda viva dos passos certeiros à margem das grandes massas de água fosforescente        potência desconcertante do medo na camisa rasgada por unhas celestes

por vezes
tão humano como searas de pão
viçoso clarão da suprema energia em branda floração
outras
animal em faúlhas
a romper os pulmões das estrelas
a escrever com os dedos de cristal no tabuado do seu velho barco em botão obscenidades e verdades cruentas
seladas pelo estilo sóbrio da loucura embalsamada

a melancolia feroz do destino era-lhe alheia 
também o pesadelo das rugas sulfurosas
decifrava as coisas ocultas      os frutos maduros das aparências      a perfeição dos diamantes ao luar
com a noite chegavam os cios em que se divinizava
com os olhos nas palmas das mãos estriadas pelas escotas de pedra afundava-se na matéria da casa flutuante onde todas as mulheres eram sombras rítmicas
e os desejos o cercado inviolável da besta ferida na urgência da dança sísmica dos corpos glorificados

sem razão poisava a boca nas formas decadentes abrindo à sua passagem a transparência da volúpia numa humidade tão exacta como chama a luzir no horizonte promíscuo do prazer
para que queria ele naqueles momentos em que os astros arrefecem e as luzes ressuscitam na saliva adocicada a razão
o desatino erecto da nudez abria o portal do covil amoroso com um estrondo a reluzir nos espasmos implacáveis cifrados em mapas antigos atulhados de praias desertas orladas por jardins onde as paisagens foram inscritas pelo nó das labaredas em combustão
não dormia      respirava as brisas quentes que se esgueiravam pelo tabuado deixando o corpo dormente vacilar na alucinação dos sonhos e na serenidade cravada no beliche encerado pelas artérias explosivas do sono supérfluo

quando as velhas adriças batiam contra o mastro imperturbável num toque rimado ouvia os pescadores na barra com as suas lanternas e motores ruidosos como prédios amontoados nas trevas da cidade
indiferente olhava as escotilhas apavoradas pela negritude desordenada e ouvia o balouçar da água nos ramos verdes da enseada
afinal tinha sido sempre o rosto do mar        a mão das nuvens        o coração do sol
o espelho da liberdade e da imprudência        o lazer abrasado e confiante

que poderia deus dele querer


*

quando a ondulação sustinha na crista das vagas a respiração enlutada ainda sóbrio sentava-se no bar sobranceiro ao cais apertando a fronte como numa alucinação
pelos espelhos de vidro suado desfilavam as cicatrizes dos corpos de mulheres em rebentação        alguns embriagados nas mesas orvalhadas de iluminações insondáveis suspiravam sílabas roucas
nadadores das profundidades feitas frestas no limbo exótico e acabrunhado das crianças mortas por baptizar

àquela hora na igreja matriz a missa do sétimo dia por alma de seu pai      um montanhês tão rigoroso como o gelo da calota polar
tinha chegado do mar      no crânio um grito desfraldado fazia estremecer a rede oculta do nome das coisas insensíveis à dor e à morte
a crepitar nas fornalhas do esquecimento
cruzou os braços e clareou o espaço com os relâmpagos da harmonia crescente        ele era o seu próprio templo
cristão por baptismo trocara a igreja por uma garrafa de rum         a seiva divina vertida em longos copos raiados        sozinho trocara o seu reino por um tonel de vinho

o prodígio das bênçãos
cadeias de oiro bravio
a pedra escura no rio
da infância submersa
com ele nobremente trajado
de mão dada pelas lojas 
chiques da baixa pombalina
          o chiado

a chaga de todo um corpo vazio
a mãe estaria lá      negra de carvão vestida      os amigos      os indecisos      a família
lembrariam o nome com outros nomes de forma célere e contínua      falariam dos mistérios e em segredo dos dogmas da redenção das coisas de casa sempre com o espírito ausente e algumas lágrimas insulsas nos dedos 

seria preciso escalar
as montanhas lunares
reduzir a cinzas
a matéria estelar
destroçar os cometas ameaçadores
para olhar com agrado
a terra carregada de silvedos
entrançados nos maxilares da paixão
entoação salvífica de falsos credos

olhou para dentro de si engolindo um punhado de medo
sentiu a queimadura da alma o sangue a ferver e pausadamente
debruçou-se na ordem das ideias frias
tudo lhe parecia coroado por anémonas 
membranas e tendões na abertura dos portais da consciência apunhalada com ferocidade por suas próprias mãos

valia-lhe mais estar ali
galvanizado por memórias no pavor dos cantares inebriantes        despejou com deslumbre um outro copo      nele o poder da criação solitária da compaixão interna
tesouro esbraseado fundido no recanto mais obscuro do seu castelo        tudo resolvido ou por resolver
na ignição côncava das expressões inconscientes da arte de entrar em si
de se amar
e florir fértil num mundo por deus abandonado





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