Deito-me e adormeço por uma hora ou quase
Já só durmo por horas
Levanto-me com a mesma sensação da noite de ontem
De quem já pensou tudo o que há para pensar
Pensar ou não pensar
Eis a questão
Já pensei quase tudo o que há para pensar
Parece-me
Apesar do que parece
Nem sempre ser o que parece
E o que não parece
Aparecer como realidade do que parece
Poderei ou não estar errado
Como tudo
Numa vida inconsistente
Na impermanência dos dias consumidos
Como quem consome sem saborear um cigarro
De fumo invisível
Ou um corpo desconhecido à beira-mar
Ou navega no azul encapelado e apenas lembra a estrada suja de asfalto
Afinal o pensamento não é ilimitado
E a ilusão é o erro do desesperado
Pensei o já pensado
Em caminho poeirento
Por muitos trilhado
Em jornada com rasto de sangue vivo
Espalhado pela estrada do Nada
Vinho derramado no vazio
Metafísica inútil de náufrago sobrevivo
O pensamento é dor acutilante pressiva
É a enxovia torturante da inocência
Da candidez e da castidade
Pensei o que muitos outros pensaram
Mas ninguém sabe que o pensaram
Por terem guardado esses pensamentos numa gaveta sem fundo
Na torre subterrânea dos desejos inconscientes
Nas masmorras abissais das entranhas sórdidas
No espaço insignificante de seus bolsos rotos
Pensei e penso que não vale a pena escrever
Que não me irão ler
Que não irão ter paciência
Livros há-os em demasia
Como riqueza e pobreza
Neste mundo tudo é demais
Por excesso ou insuficiência
No entanto
A questão de Deus
(O Deus verdadeiro que não o dos homens)
Continua a ser a minha inquietude
Quando eu
Eu mesmo
Deveria ser por ora
O objecto de minhas inquietações
Quem sou
Donde venho
Para onde vou
Se sou ou não
Se vim ou não vim
Se vou ou não vou
Se Ele é
Se eu sou Ele
Ou Ele sou eu
Se existimos
Ou não existimos
Por ludibriados sermos
Se tudo é ilusão
O sonho realidade
A realidade sonho e
No desvario do engano
Se embromado estou
Porque padeço atroz
E porque algo permanece
Em vez do nada
Do vazio pacificador
E se nada existisse que voz se levantaria a questionar fosse o que fosse
Que corpo ou mente sentiria dor prazer ou amor
Também a questão da alma
Merece especulação
E se quem conhece a Alma
Conhece Deus
Fico-me com um único mistério
O da Alma-Deus ou o de Deus-Alma
Dualidade na Unidade
Da Alma
Tanto faz
Se o que penso só serve
Para alimentar a confusão
E o que escrevo
Não passa de incoerência
Ou de pura ilusão
De quem pensa ser e não é
Saber e não sabe
Melhor seria
Exterminar o desassossego
Melhor seria não pensar
Não me apetece almoçar
Há algum tempo que comer me enfada
O cérebro está quieto mas ágil
Na dormência da mente devoluta
Sensação de plenitude e de prédio devoluto
Plenitude por ter pensado tudo o que um simples mortal pode ou julga poder pensar
Vazio por não ter atingido objectivo nenhum
É esse o problema do humano
Um cheio-vazio-interminável
Uma angústia existencial deplorável
Inesgotável
Quero partir para o Norte
Estou sempre a querer partir como as aves migratórias
E depois de chegar sei lá onde
A querer voltar
Ao Sul
O Sul tem cor
Tem mulheres quase nuas nos extensos areais
Tem um sorriso aberto como o Cruzeiro dos navegantes
Tem calor
E tem também uma espécie de amor que o frio gélido da montanha ao borralho desconhece
Quero partir mas não quero
Apetece-me ficar ronronando
Como felino indomesticado
Aguardando fêmea no covil
No meio de livros já lidos de doutrinas mil vezes debatidas
De verdades obsoletas a estrebuchar no fundo poeirento das gavetas-da-exactidão
Viajar sem me movimentar pelo céu escuro das sombras nocturnas
Viajar à velocidade da luz por galáxias nunca dantes viajadas
Velejar com o vento Norte de través
A espreitar as vagas desfeitas a sotavento
Numa embarcação de trinta pés
De qualquer modo
Tenho de voltar a pensar o já pensado
Não descansarei enquanto o não fizer
Pena de eterno condenado
E não vou repousar depois de o ter feito
A menos que exorcize o cérebro dos seus fantasmas
Que destrua os espectros da mente
E os enterre na ala poente da necrópole ornada a cedros
Depois de queimados todos os Fedros
No café envolto pelo fumo abstracto de um cigarro
O mais agradável do dia por ser o primeiro
Oiço preso-forçado a televisão
O tema é futebol
O tema actual é sempre futebol
Quem não sabe futebol é iletrado
Há anos que não se fala de outra coisa como se o Universo fosse um gigantesco estádio onde os deuses consagram a eternidade dando pontapés em planetas e cometas num espaço-tempo de infinitas balizas sem rede
O circo continua
Roda e continua
O povo aplaude animais domados em jaula invertida
Os artistas falam um português-estrangeiro-imigrante convencidos da sua celebridade
Reconhecida por uma comunicação social burlesca
São ídolos de gente mascarada de felicidade eles que espelham com os pés e mais raramente com a cabeça oca um país desgraçado e inábil
Tão mal representado por bandos de sendeiros que pastam nos relvados
E por ranhosos governantes
Os artistas são os melhores aliados das ineptas-sanguessugas-políticas
São gigantes-pés-de-barro-grosseiro a escoar náusea
Justificação de medidas impopulares
Fala-se das suas vidas como se tivessem algo de exemplar para nos transmitir e capitanear
São ídolos da decrepitude e da degenerescência
Odeio a comunicação social que os ceva e ao povo cega
E há as novelas
Os concursos
As momices e rabulices em directo
Os discursos patéticos dos políticus
(não não é gralha)
Com o intestino grosso ligado ao cérebro
Donde provêm tantas e tantas ideias de merda
E há um povo sem rumo
Animal gigantesco do consumo
Absurdo e ignorante
Não Não vale a pena pensar
Nem escrever
Talvez pintar
E andar pelo mar
A olhar o azul que se quebra no horizonte
Num novo azul tingido de branco
A vida é tão curta
Deus meu
Mas para quem já pensou tudo o que há para pensar
Restar-lhe-á a Cor
Uma pintura é um personagem que entra em cena
E desliza no corpo para jusante
É tinta
É palavra
É semifusa
Silêncio
Tela em si pensante
Que diz nos círculos nas linhas nas pinceladas das faixas brancas
Nas cores
Quentes
Frias
Vibrantes
Esmaecidas
Nas jóias incrustadas
Folhas de oiro
Rubis
Esmeraldas
Diamantes
As palavras e as emoções
Mais verdadeiras
Dos verdadeiros amantes
Para quem já pensou tudo o que há para pensar
Resta-lhe o Amor
Resta-lhe a Cor
E o Mar
E assim me fico
Misantropo selectivo
http://www.homeoesp.org/livros_online.html
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