Este diário complementa o nosso site pessoal

( VER ETIQUETAS NO FIM DA PÁGINA )

USE O PESQUISADOR DO BLOGUE -

-

OS TRATAMENTOS SUGERIDOS NÃO DISPENSAM A INTERVENÇÃO DE TERAPEUTA OU MÉDICO ASSISTENTE.

ARTE

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

O SENHOR DOS MARES




brilha a paisagem ao remontar do mensageiro     o pescador de búzios     a rede enreda-se nele     pára     demora-se como navio de temerários a costurar destinos elípticos     semicírculos de águas frias nas montanhas circunspectas     portas entreabertas aos leitos desfeitos por magalhães conduzidos ao chapinhar nocturno das raízes do medo     vão mais de cem e voltam pouco mais de dez sem paixão e com esperança
assim respeita a vida de velhos mareantes o senhor dos mares





SONHO VÃO




sonhei em vão
não lembro
a romã aberta
à taça alada
das palavras
retesadas

todo o sangue
tem um preço
no cadafalso negro
o cabelo recusado
ociosos carrascos
névoa que baixa
nos ombros anões
deformados

romeiros que se desfiam
e tecem nos aguaceiros
grilhões escuros madeiros
pés descalços no manto
teia acesa da morte

o vento parou

que fazes dormindo
rio  amado e  rimado
quando teu amante
do norte já chegou





NUM CAMPO ESTRUMADO




no campo estercado
da ave as penas ensanguentadas
no terror mudo
de cinzelada mascarada

uma sensação de trovão fresco penetrava a tarde quadrada do outro lado do rio
estrada orvalhada no deserto
hálito de iras nas mãos frias

tudo é vaidade dizias
e à meia-noite começo do meu dia observava-te sereno como figueira em penhasco seco
talvez seja um curandeiro do prazer que morde e é mordido em acto de amor fazer por coroa de pássaros tropicais     talvez o que grita e não é ouvido     o mais esquecido dos sonos de inverno     o rio poderoso das terras negras do fim do caminho     o fio de sol que aquece os gélidos aromas

uma mão é-me estendida com a paciência das nuvens em movimento 
quanto mais me aproximo menos vejo





TER FILHO BASTARDO




sangue do sacrifício
em negro altar
nem rei nem nenhum deus
para a salvar

as correntes ferruginosas
comprimiam-lhe os tendões
tratada como se tratam 
os mais pecaminosos ladrões

que crime cometera
tão branda criatura
face delicada
dedos de ternura
crucifixo ao peito
apertado 

ter filho bastardo





A NAU COMIDA PELO MAR




heras no jardim envolviam os narcisos
séculos medidos pelo respeitável carvalho velho
no banco do lago a angústia das vestes apodrecidas na espera da nau comida pelo mar
viver sombrio da amada
o rio das ausências junto à mansão agora em ruínas
o salão vazio e o quarto desmembrado pela insónia centenária
na cadeira de estilo bárbaro o corpete de mil e uma volúpias
naquele breve olhar vimos nítidos os fantasmas de séculos
o desalento e padecimento eternos






SINOS CÁLIDOS DE MINHA ALDEIA




sinos cálidos de minha aldeia
altas torres por onde a lua espreita

uma espiga de milho dorme nos pedernais

é ali
que o pastor
naquele luzeiro
do sete-estrelo
sonha
suplicante
e
que a doce boca
sufoca de ânsias

sonhos de ontem nascidos ao som do luar
vento oblíquo nas carnes invisíveis
dos cedros ancestrais do ermitério abandonado

o bosque agita-se
longe o cismático mar
e o coração de todos os afogados

labirinto de barcos naufragados
tranquilamente afundados no sangue aberto
ramos de loureiro ferido de verdades

na curva do rio as pombas são sombras nos beirais
luzes esverdeadas dos pinhais
onde as cigarras esmolam eternidades





DESTINO AZIAGO DE QUEM FICA




diante de ti onda em rebentação me ajoelho

nos céus vejo santa bárbara em cada trovão entrado pelo ferrolho da noite

naufraga um diadema na fronte da que partiu
ditoso é quem parte     destino aziago de quem fica

o dia leva a noite
nada há como dantes
sonhos de glória
fama das cidades
enigmas desvendados
por filósofos displicentes

na rua pés e cabeças de porcelana     os descobridores de abismos celebram os seus feitos enquanto na quinta hora o poeta se retira no dó de si

já não se ouvem sons celestiais
nem os cantos que rumavam de oriente para ocidente nas noites estreladas

nos nossos dedos vitrais de cores vivas
na nossa mente rumor das ondas entristecidas
como vosso olhar
flor rubra desistente do mundo e dessa fé que aniquila a magia do luar
tão taciturno e contemplativo na nervura dos seus raios
que nada assim vistes nesta erma negrura
onde não cabe a palavra amar





O PECADO DE DEUS




deus pecou
aquando da criação
ao acordar com satanás
na mais vil e cruel
discriminação
de a poucos dar
o que a todos 
não deveria faltar

cada homem deveria ter um cérebro





DOIS CAMINHOS




as inúteis bibliotecas de espelhos lacrimejantes

pérfidos discursos     um mal presente o elogio do ausente     a mentira     as inconsequentes promessas do amante

                           é dezembro
                           persigo dois caminhos
                           um não lembro
                           outro decorado a azevinho

como se tudo fossem flores bem acabadas
coloridas a perscrutar de mansinho a eternidade

felicidade delas
saudades minhas





COMO É BOM TER-TE




era o fogo vivo das longas vigílias da sorte cruel 
num pedaço de papel as ardentes fibras cantavam seu canto de profundos segredos

a esteira de um desses barcos velozes com o pano todo içado brilhava ao luar
era mais de meia-noite e na praia um rapaz acendia uma fogueira de vidas desfolhadas
enquanto jardins cresciam em lábios delicados de duas loucas 

corpos nus no areal com mãos invisíveis a roçarem os ombros circulares
ritmo infernal de voz estridente a clamar por amor

vã é a vida dos fugidios instantes do apetecer

agora sim poderei dizer-te como é bom ter-te





O FILHO DO VIAJANTE




o céu nomeou-se à terra no remanso das águas virulentas     a mais bela de todas as mulheres incrustada a prata e oiro desceu o rio amarelo numa barca
um cravo encarnado em alto promontório demarcava o paraíso das crianças por baptizar
cana esguia da calma ilha de vales secos
nos ventos a mensagem de deuses esculpidos no espírito dos homens
música golpeada por espadas de dois gumes     o filho do viajante revolve a luxúria
fonte que chora a penúria do lugar     precipício sem início     torreão de todas as tribos bárbaras confundidas nas vozes dos pastores
o fosso dos senhores arranca-nos os olhos fumegantes
enquanto mãos e bocas ardem em instantes





POVO DO VALE




caem as folhas
no rosal
as andorinhas
em árvores de lágrimas
acolhem o sudário
bordado em manhã antiga

o povo do vale
já pouco vale





DE AZUL NO LARANJAL




imagino-me de azul no laranjal
as mãos cruzadas no peito
o silêncio das nebulosas
na brisa redonda do ribeiro choroso

a praça dormia nas lágrimas prateadas
da cruz melodiosa dos ecos trinados
sombras serradas pelas estrelas
nos bolsos de mendigos gastos

os pássaros ocultavam suas cabeças
como velhos soldados
de máscaras de vidro 
sujas baças coçadas e medrosas

ninfas de cetim em gemidos
atravancavam as frestas dos muros
e as arestas do meu coração
ornado por mil e um louros  





PROCISSÃO DA SENHORA DA SAÚDE




os fantoches

os dedos

                 um melro canta
        procissão da senhora da saúde
             virtude da rosa maria

o sino solta um grito primaveril
nas flores tombadas do andor

a esperança entregou o corpo à saudade
a alma à infelicidade

um homem perdido na viela do quotidiano
terra alheia à clareza da floresta submersa

um murmúrio de sapiência brilha nas nuvens negras
em baixo do salgueiro que se afoga paulatinamente

nas folhas mortas ocas pegadas
dos mortos que muito vagarosamente
saem de suas nocturnas campas






AS GUERRAS DA ARTE POÉTICA




dizem
paz
a paz esteja convosco
que durma connosco

questão de palavras     dez mil anos de arte poética
e outros tantos com as mesmas guerras

que o diabo as carregue





TUDO É PASSADO




nesta terra fui criado     em mar grosso fui moldado     de pequeno com brandura e amor me dediquei ao sagrado

tudo é passado

os dias amanhecem e eu acordado
na noite alegra-se-me o coração
longas as horas de vigília deitado

os dias escurecem na fronte sangrante
sonhos desprezados     navio que se lamenta ao ranger dos costados
esquadras de vinho velho     mercados de escravos     uma virgem que se pranteia

coração estropiado de moribundo alijado à tormenta





A DERRADEIRA PALAVRA




o cosmopolitismo da palidez na carta que te enviei
recebe-a     é a minha derradeira palavra

tu que abandonaste esta terra no mais secreto de todos os mistérios     recebe-a

só no interior da flor que do meu peito jorra encontrarás a resposta negada aos vivos e que aos mortos é dada





ESTRELA DE DAVID




daquela folha que voa não desvio o meu olhar
beijos sensuais que o ar ao ar dá na elanguescência da madrugada
e esta ferida a coagular nas horas que presencio     bailarinas do primeiro sono oprimido pelo cárcere da razão

multiforme é o vento que sopra pelas entranhas e fustiga as flores às cores onde os pirralhos brincam os caminhos do perdão

irão elas reinar nessa vida violeta
na estrela de david

voarão para longe nas garras do apostolado 
boneca de trapos injustiçada     sem revolta larvar





OFÍCIO DE AMAR




o amor perdura
poderia escrever-te com a afeição dos meus lábios

ofício de amor em que estou só

as lucernas ardem e há luzes nas sinagogas
folhas de trevo por pisar

improviso novas linhas na salamandra acesa
sentirás que te olho com aquele olhar que perdeu todos os seus poderes

vozes e árvores milenares comprimem-se no alto dos mastros
o sol da noite arrasta-me para os distantes espaços da dolência

um cântico purpúreo varre a terra     vento solitário nas mãos frias da madrugada coalhada

uma ilha deserta na vida de todas as coisas
uma estria de morte percorre a pele de um novo equinócio

como sempre sem jeito para o negócio
gasto-me no que tenho     o toque suavizado das teclas no piano sopradas pela mão esquerda do diabo e a angústia a reluzir nas alturas

serão assim o resto dos meus dias





A ÚLTIMA DAS NAUS DO ORIENTE




foste a amante no que o amor tem de místico

com os lábios enxutos percorri o teu corpo a acender o fogo da partida
nada fiz para resgatar os despojos dos guerreiros mortos na clareira de ervas secas

amanhã quando a fúria do mar for sombra e silêncio rumará para as índias a última das naus do oriente
envio-te nela o baú do meu coração exangue moldado a neve pelas crianças eternas

no espelho do luar feitiço do firmamento lerás a única palavra que dispersou todo o seu sangue nas nuvens doiradas que vagueiam ao sabor das ondas
amo-te

curta mensagem para carga tão penosa e difícil de estivar
será o lastro do navio na tormenta     o leme do rumo incerto     o aparelho da mareação     a certeza oscilante de que o porto será seguro

e o mar lerá nas tábuas do costado escrito a estopa o recado omisso
que ao deixar-te partir
o mundo para mim tinha acabado





O DIA QUE HÁ-DE NASCER




fitas verdes nos cabelos a norte
a noite arrosta-se na cauda das sombras do céu vestido de nuvens

no sul o resplendor sagrado que se esconde à hora de mungir o gado

a cidade onde nasci tem os dentes cariados
cidade onde se dança nas caves da exaustão

as eternas florestas anãs dos cumes são luzes de antigos sonhos sumidos nos nossos milenares desfalecimentos
no calor das algas as térmitas do poder
ligeireza perturbante do divino sorvido por avermelhadas cores
tais dores de colombo desenhadas em mares ignotos e calmarias equatoriais

afinal aquela brisa no monte destacava o despertar de maio
e o dia que para mim há-de nascer





LETRAS NUAS




caminhámos com as mãos nos restolhos do pensamento
escutámos o ruído das facas que rasgam a carne dos inocentes

sede de beijos que se escondem no ventre do tempo pintado com uma chuva de cores
alizarina     naufrágio púrpura com a ilha celeste no campanário do horizonte

pelas brechas do telhado de colmo espreita um corvo pensativo reservado
pobre do penitente transfigurado em sonho de vida     piloto errante no mês em que as tempestades de lembranças se vazam nas fontes translúcidas

uma ponte romana
a ponta dos teus dedos toca a ponta dos meus
como se escrevêssemos uma carta
de um longínquo país para um outro mais longínquo ainda
palavras-mariposas     hoje e amanhã
letras nuas nesse manto de pura lã
como tu





NO SILÊNCIO DA MULHER




a galope nos outeiros de maio o silêncio da mulher     hoje os montes enchem-se de vinho puro nas lágrimas da cotovia
breve é o sono da alegria     senhora minha de verde-escuro vosso vestido     na mão cartas de amor já frias
são os meus olhos que padecem envoltos em pesado manto     na calçada a hora que vive o desânimo da insolência vertida nas mágoas flutuantes
as nuvens rodam     a lua não reflecte os cardos carregados pelos indigentes     joelhos que rastejam     pupilas que se embaciam
pedras quebradas
estrada de sargaços
fogo-de-artifício  
os corpos encharcados
deslizam secretos
no charco da avenida
um regato nocturno
como eu quero o sol     banhando-me de novo no ganges nessa multidão insana
o mel dos teus lábios ali junto à torre Eiffel
as tuas formas     parte única do meu presente nesse momento de nobres tons
inclina-te graciosa e entende os sons que emanam do coração da terra
beijo selvagem no hálito furioso da fera privada de espírito e razão






MÁSCARA QUE SORRI




máscara que sorri na caçada às fêmeas evisceradas

o canto das estrelas ilumina os caçadores furtivos     a cauda de um cão no giestal     o silvado impenetrável

amiga quanto vale o teu peso se penetrar o meu corpo sedento e amarelecer a minha alma?
como o sol se retira para os esconderijos da noite assim te retiraste tu

num corcel enfurecido iludi a existência do amor     ah os fantoches do sexo outonal

brindámos com as taças vazias antes de adormecer no ventre do peixe
e reunimos com a exactidão possível as sílabas verdadeiras que o pai dos vinhedos espoldrados nos doou em tempos imemoriais
plumagem maculada do amor fazer





quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A VONTADE DOS CÉUS




naquele momento fugaz os lavradores detiveram-se suplicantes perscrutando a vontade dos céus
indagavam o infinito daquele imenso lameiro a irromper selvagem do seio da terra-mãe

perturbados     alheados ao mundo     com marcas de fogo nas sacholas que grasniam
pulmões aumentados apontavam a dor do horizonte insaciável
nunca haviam lacrimejado
dos olhos pássaros feneciam nas flores desfeitas

o credor nos umbrais enquanto na colina nascia mais uma primavera

o muro de pedra solta testemunhava os lugares remotos de peregrinações obsoletas
aí folgavam as raparigas em melancólica alegria

lugar onde por gosto cada trabalhador suava e sem pejo mataria
quem tão lentamente o matava





HORAS AMOTINADAS




sussurram as folhas nas horas amotinadas

no monte branco a carne da virgem sem mastro rastejava ofegante
sonho incerto de vaso santo
penetrado por misterioso florescer

onde haveria de esconder o juvenil tesoiro
quando as moscas zunem sobre a penugem claramente visível

soam três badaladas na pradaria desolada

um rio orgulhoso despedaça-se nos rochedos da nudez

melífluo aguaceiro de fêmeas verdejantes





MIDAS




como é vil e rude o soberano que transforma em oiro as tristezas novas e velhas

midas a fera do lugar nubloso onde se não pode amar a riqueza

um corpo nu chora o sangue dos prazeres da caça
dons angelicais de criaturas aladas
embriagadas de solidão
remos quebrados nas margens da carne cinzelada em triste brilho
quando o sol ainda longe vinha

frenética vida presa às narinas dilatadas das ruas desertas





IMPORTÂNCIA VITAL PARA A POESIA




uma amante de água feita
raio em lascas que ilumina o ventre das trevas

a argamassa antiga cozida a cordel
a meus pés um papel desfolhado na insónia

hoje varre-se o céu     a lâmina invencível da espada aprisionada na teia do frio aéreo
etéreos são os gritos dos répteis que germinam nos bosques da fuga

tempo de míscaros     a cerimónia – paus afiados nas artérias azuis das manhãs de domingo

o veneno     sangue espargido pelos corpos adolescentes     cantares da madrugada 

as bandeiras agitam-se no precipício     mãos ao peito cruzadas
tossem que nem tísicos os cômoros na liberdade que se evapora das esquinas

as ruas enchem-se de feridas que não saram     apinhadas estão as chagas por cães lambidas

úlcera que se esvazia
o que é de uma importância vital para a poesia






DOMINUS VOBISCUM




o gesto das mãos lentas apressa-se na cerimónia     o padre cai de bruços     murmura uma oração em latim     ergue os braços no corpo tenso do desejo sublimado

o povo não recupera as sílabas e tem a expressão facial de um mostrengo que amanhece e que a estupidez tece

no órgão música sem harmonia
dissonante
um sacrário em oração
um crucificado indiferente
àquela asnática gente
e aquele moço pobre coitado
tão novo e tão doente

dominus vobiscum
et cum spiritu tuo





FOGO-DE-SANTELMO




fogo que se não extingue     santelmo     os mastros surdos

encapelam-se as vagas

navio de aventureiros do outro lado do mar
pátria de negreiros

um coração pulsa no convés     os calcanhares doloridos ferem o madeirame húmido

irrompem selváticas sereias de espuma
lírios oceânicos de frio sorrir 
brilho de um luar que se extingue

na pele molhada pela maresia as histórias contadas pela força obscura das nuvens que rodopiam no topo do mastro real

dia de bruxas no cadáver dos meus sentidos
que se ausenta em deriva à vista do areal





DENTES BRANCOS




naquele país a música tinha dentes brancos
sem culpa ou pecado

sorriso de perfeita harmonia cercado de prodígios
na melodia do sacro recinto pesavam-se corpos sóbrios e untuosos 

contávamos as estrelas em noites de lua nova
terço do sagrado coração
em cada arvoredo uma canção

nenhum homem experimentaria nesta vida tão dócil prazer
nenhum rei de terras alheias adormeceria plácido à sua sombra
adeus noite passada     cidade onde nasci     vielas onde me perdi

uma coroa debruada por larvas no corpo exausto da verdade santificada
e aquela ave como lira alienada a cada nota exalada suspirava

vaga essência de alma onde já nada respirava





SANGUE E ESPERMA




nas caves negras dos palácios verde-orgíacos derrama-se sangue e esperma
o espaço e o tempo desposam amores mortais

uma ave índigo voa em círculos imperfeitos

amontoam-se leitos na escuridão
carnes brancas     pretas     mestiças
bocas escancaradas a rogar o líquido vital 

lá fora a tempestade parece não ter fim     o vento estremece o roseiral daninho     a chuva inunda a terra do caminho ladeado por buchos-anões     os trovões assustam o sono das crianças que dormem alheias ao temporal     os relâmpagos aquecem o ar

na cave escura faz-se de tudo
e chamam-lhe amar





O TEU NASCIMENTO




o passado revolve-se no charco da inconstância onde o espírito das estações já mortas silencia os prados

um frio atroz toca as águas estagnadas com os dedos geados     crepúsculo     cavalo alucinado zumbe junto da janela aberta à intempérie dos corações
nela     ela     de braços cruzados fia calada um sorriso abissal

forte é o vento a sacudir ervas e árvores com marcas de dinamite nos regaços     esquiva a primeira estrela faz findar a luz do dia     saias virgens baloiçam entre sóis no seio da terra pelas mãos escavada     honra perdida espezinhada no giestal

e a estrela vai morrendo
cedendo alienada
o lugar ao teu nascimento





MIGRAÇÃO




desço o rio em árvore seca
a corrente de maré é o berço desta velhice medonha

a proa resplandece de bronze
dos céus jorram lágrimas azuis

o convés molhado
o mastro emproado
cabos inertes ferozmente mordidos pelo piano dos mareantes

mar e estepe
os benefícios da solidão na mesa oval
cabeça entre as mãos crispadas
hora de oração

sorrio
nas nuvens aves migratórias
como eu