SIN
SIN MING - COMENTÁRIO
Poema completo em -
http://josemariaalves.blogspot.pt/2017/05/sin-sin-ming-fe-na-mente-verdadeira.html
O
Budismo Zen
O
Sin-Sin-Ming ou Xinxin Ming é o nome chinês de um poema conhecido como o mais
antigo texto Zen, provavelmente escrito pelo Terceiro Patriarca Seng-T´san no
século VI. Talvez o mais importante ensinamento escrito de todo o Budismo Zen.
Existem
múltiplas traduções e traduções de traduções – seja do texto em chinês, seja em japonês – com títulos diferentes,
bem como dúvidas quanto ao autor e data do poema.
Na
nossa tradução do francês escolhemos como título a Fé na Mente Verdadeira. Esta é perfeita e não tem que ser
aperfeiçoada, cabendo a cada um de nós obter a libertação do poder latente
dessa mesma Mente, que se encontra oculto.
O
Sin-Sin-Ming baseia-se tal como o Vedanta no ensinamento da não-dualidade e
podemos considerá-lo a “alma” do Zen, que nos propõe o satori, a iluminação; iluminação esta que não é considerada o seu
fim derradeiro, mas antes o princípio de uma nova vida.
O
Zen tem as suas origens nos ensinamentos de Buda – Gautama Siddharta – que terá nascido no ano de 556 a.C. e falecido
em 486.
O
Budismo é mais filosofia do que
religião.
Não
admite a existência de uma alma imortal como no Cristianismo e a existência de
um Deus omnipotente.
O
Budismo ensina que é possível ao homem a libertação do carma e com esta, a
libertação do ciclo interminável de renascimentos – não se trata de um dogma que obste à prática do Zen por quem nele se
não reveja.
Existem
dois veículos:
O
Grande Veículo – Maaiana – e o
Pequeno Veículo – Hinaiama.
O
Ch´an – chinês – e o Zen – japonês – integram o Grande Veículo. Atente-se
que Zen é o nome que o Budismo adoptou no Japão quando para aí foi levado no
século XII.
O
budismo chinês desenvolveu-se na dinastia T´ang, entre o século VII e X d.C.,
depois de um monge indiano de nome Bodhidharma, falecido no ano de 534, aí ter
chegado. Bodhidharma é considerado o primeiro Patriarca chinês. Hui-K´o foi o
segundo e Seng-T´san, falecido em 606, o terceiro – como já vimos é a ele que se atribui o poema.
A
partir do momento em que foi designado o sexto patriarca começaram a surgir
inúmeras divergências na doutrina Zen, com métodos contraditórios, e
ensinamentos divergentes na sua essência, nomeadamente os que conduziam os
monges pelo caminho da iluminação progressiva ou súbita.
O
pai do Zen no Japão foi Yosai falecido no ano de 1215.
O
Zen não é uma religião nem propriamente uma filosofia. É uma mundividência
alheia ao pensamento dualista ocidental, um “caminho” de libertação, se é que a
este se pode aceder por um qualquer trajecto, uma apreensão da realidade tal
qual ela é, no seu momento de eternidade: o agora. Efectivamente, o Zen
ensina-nos a usufruir do momento presente e de que existe uma realidade
subjacente à unidade.
“Para
alcançar a iluminação Zen não é necessário abandonar a vida familiar, o
emprego, tornar-se vegetariano, praticar o ascetismo, fugir para um lugar
tranquilo e depois entrar numa gruta fantasmagórica do Zen morto para entreter
imaginações subjectivas” – Mestre Dahui.
Podemos
ilustrar o Zen com uma história que se diz ter acontecido no Pico do Abutre:
Conta-se
que Buda terá um dia mostrado aos seus discípulos uma flor extremamente bela,
pedindo-lhes que dissessem algo a seu respeito.
Depois
de a observarem em silêncio durante alguns minutos, um dissertou longamente
sobre a sua beleza, comparando-a à Criação, outro compôs um poema e o terceiro
uma parábola, cada um mais preocupado em agradar pela eloquência do que
propriamente pela satisfação contemplativa.
Mahakashyap
olhou-a, sorriu e não disse nada.
Ananda,
primo e discípulo de Buda, era quem tomava notas das palavras do Iluminado,
intuiu que Mahakashyap teria entendido o gesto do Mestre e questionou-o quanto
ao seu significado.
Ele
limitou-se a mostrar-lhe uma flor e nada disse, e Ananda entendeu.
Sem
que tenhamos uma interpretação da história, conseguimos reter que a iluminação
não depende de qualquer texto dito sagrado nem poderá nunca ser expressa por
palavras.
O
conhecimento Zen foi muitas vezes transmitido por intermédio das suas
histórias. Aprender o Zen pela prática do Zen, reflectida nas histórias de
Mestres, nas vivências reais dos seus praticantes é sabedoria, contrária à
estéril erudição.
Nas
palavras de Ch´ing-yuan:
Antes
de ter estudado o Zen durante trinta anos, via as montanhas como montanhas, e
as águas como as águas. Quando cheguei a um conhecimento mais íntimo, alcancei
o ponto em que vi que as montanhas não são montanhas, e as águas não são águas.
Mas agora que alcancei a sua essência real, estou tranquilo. Porque é justo que
eu veja as montanhas como montanhas, mais uma vez as águas como águas.
Lien
Tzu, foi discípulo do Mestre Lao Chang, relatando sucintamente a sua
aprendizagem:
Depois
de o ter servido pelo espaço de três anos, a minha mente não se atrevia a
reflectir sobre o certo e o errado, os meus lábios não se atreviam a falar de
lucros e de perdas. Então, pela primeira vez, o meu Mestre concedeu-me um olhar
– e isso foi tudo.
Ao
fim de cinco anos houvera uma mudança; a minha mente reflectia sobre o certo e
o errado, e os meus lábios falavam de lucros e perdas. Então pela primeira vez,
afrouxou a severidade do seu semblante e sorriu.
Ao
fim de sete anos, houve outra mudança. Deixei que a minha mente pensasse o que
lhe aprouvesse, e ela deixou de se preocupar com o certo e o errado. Deixei que
os meus lábios pronunciassem o que lhes apetecesse, mas eles deixaram de falar
em lucros e perdas. Então, finalmente, o meu Mestre conduziu-me a um lugar
sobre a esteira, a seu lado.
Ao
fim de nove anos, a minha mente soltou as rédeas às suas reflexões, a minha
boca deu livre passagem ao seu discurso. De certo e errado, de lucros e perdas,
não tinha eu conhecimento, tanto no que a mim se referia como no que dizia
respeito aos outros. O interno e o externo tinham-se fundido na unidade. Daí em
diante, não havia já distinção entre olho e ouvido, ouvido e nariz, nariz e
boca: todos eram o mesmo. A minha mente estava gelada, o meu corpo dissolvido,
carne e ossos fundidos numa só substância. Não tinha a menor consciência
daquilo sobre que o meu corpo repousava, ou do que havia sobre os meus pés. Era
transportado para um lado e outro, na asa do vento, como palha seca ou folhas
caindo de uma árvore. Em verdade, não sabia se o vento me cavalgava ou se era
eu que cavalgava o vento.
Mesmo
considerando que a iluminação não depende de qualquer texto dito sagrado nem
poderá nunca ser expressa por palavras, constatamos que todo o Zen está contido
no seu primeiro escrito: o SIN SIN MING.
Quem
o entender e praticar estará a um passo da iluminação.
Alguns
Mestres encararam o Zen de uma forma aparentemente simples.
Lin-Chi
disse:
“Quando
chegar a altura de te vestires, veste-te. Quando tiveres de andar, anda. Não
tenhas a preocupação de te tornar num Buda: sê apenas tu mesmo.”
Também
Kokusen se referia ao Zen “como o acto de empilhar pedras e recolher lixo”.
Mestre
Yuansou disse: “No Budismo não existe nada que exiga esforço. Tudo nele é
normal. Vesti-vos para vos proteger do frio e comei para não ter fome. E é
tudo.”
Um
discípulo perguntou a um Mestre Zen:
-
Qual foi o teu caminho para a Verdade, para o Absoluto?
-
Quando como, como; quando repouso, repouso - respondeu o Mestre.
-
Mas, Mestre, isso todos nós fazemos, mesmo os que na vida não têm aspirações
para além das que os bens materiais alimentam.
-
Não, não é como dizes. Essa gente de que falas, quando come tem o seu espírito
absorvido por múltiplas questões, por futilidades, e quando dorme, vagueiam no
seu cérebro universos imaginários. Por isso, quando comem não se limitam a
comer e quando dormem não se limitam a dormir.
Eu,
quando estou a comer, estou realmente a comer e quando durmo estou realmente a
dormir.
É
esse o meu caminho para a Verdade – finalizou o Mestre.
Mestre
Foyan costumava perguntar:
“Porque
é que vos dirigis a um centro Zen? Deveis seguir a vossa vida por vós próprios
sem ouvir o que os outros dizem.”
Não
há pois necessidade de rituais para dar os primeiros passos no Zen, muito
especialmente os dos mosteiros. Os seus horários rígidos, a sua disciplina,
constituem-se como rotina e sofrimento, que por sua vez são a causa directa de
um fracassado dispêndio de energia. Os certificados
de iluminação são papéis levados pelo vento e que devem ser consumidos pelo
fogo. A iluminação não se certifica. O zazen
é uma verdadeira tolice, uma infantilidade. Uma outra perda de energia.
Para
Mestre Foyan o Budismo é um ensinamento muito fácil de compreender e que
relativamente aos outros ensinamentos poupa muita energia. No entanto, os
mestres antigos contactavam amiúde com pessoas que se encontravam completamente
perdidas, tendo-lhes dito para meditar tranquilamente. Na altura este foi um
bom conselho, mas os meditantes não compreenderam os motivos que levaram os
mestres a fazê-lo. Assim, fecharam os olhos, anularam o corpo e a mente e
sentaram-se imóveis à espera da iluminação.
É
precisamente esta a tolice de que vos falei.
Alguns
dos comentários ao poema devem ser entendidos como meras interpretações
pessoais, com todas as suas imperfeições e erros de percepção.
Tenho
perfeita consciência de que este trabalho nunca conseguirá transmitir
correctamente a “raiz” do Ensinamento.
Caber-vos-á
a vós fazê-lo sob pena de desperdiçardes as vossas vidas na ignorância.
Como
disse o Sexto Patriarca Zen: “Aquilo que vos digo não é nenhum segredo. O
segredo está dentro de vós”.
Não
tendes tempo a perder. Este é o meu último aviso.
***
NOTAS
(1)
Não há nada de
complicado na grande Via,
Mas é essencial
evitar preferir.
A
grande Via não tem nada de difícil. O Grande Caminho não é difícil de atingir
desde que evitemos preferir.
O
Zen tem por essência a liberdade psicológica.
O
grande obstáculo para nela ingressar é a mente objectiva – não a Mente Verdadeira -, carregada de pensamentos, emoções,
sentimentos, memórias e todo o material inconsciente que nos condiciona,
inviabilizando a visão purificada da Realidade.
Mas
não nos libertamos de todos esses condicionamentos, bem pelo contrário,
interpretamos, comparamos, julgamos, desvirtuando os factos. Passamos toda uma
vida de terríveis rotinas a fazer escolhas condicionadas pelo nosso cérebro
mesquinho e estreito.
Não
podemos eleger tudo o que nos parece aprazível, fonte de alegria ou felicidade,
e desprezar o que nos repugna ou causa sofrimento e pesar. Temos de aceitar a
vida como um todo. Não podemos aceitar o que nos alegra e repudiar o que nos
faz sofrer, assim como não podemos adiar ou evitar a morte.
Não
podemos exterminar a parte da nossa vida que queremos recusar. Mesmo que o
intentemos fazer, apenas a conseguiremos recalcar remetendo-a para o domínio do
inconsciente, e os recalcamentos estão sempre preparados para entrar em acção,
redobrando as suas forças a cada manifestação ao nível do consciente.
Na
morte tal como na vida não podemos fazer escolhas. Quer queiramos quer não,
ela, a morte, levar-nos-á na nossa integralidade.
Veremos
em momento posterior que a vida não é diferente da morte; que para viver é
necessário morrer todos os dias, em todos os instantes.
Especulamos
sobre o livre arbítrio. Até que ponto este se constitui como uma realidade? As
nossas decisões são tomadas com base nos nossos condicionamentos de milhares de
anos, da nossa educação, do meio social onde estamos inseridos – vivemos sobre os ossos dos nossos
antepassados.
Precisamos
de “ver e ouvir” a realidade relativa – e
dizemos relativa porque está limitada pelos nossos sentidos –, vê-la tal
qual ela é na sua aparência, lavrando o terreno para que a penetração na sua
essência não seja uma quimera.
(2)
Libertos do amor e
do ódio
Ela aparecerá com
todo o seu esplendor.
Se
nos libertarmos do ódio e do amor a grande Via surgirá em toda a sua
luminosidade, com clareza.
Do
ódio praticamente todos concordam com a necessidade de o exterminar.
Mas
o amor? A nossa sociedade criou conceitos irreais e
ilusórios de amor, fruto da actividade mental. Nesta perspectiva ele é prazer,
desejo, medo, ódio, ciúme, posse, ambição, apego, dominação, uma longa e pesada
cadeia de argolas de aço que em vez de unir, dividem. É a angústia, o iminente
sentimento de perda da aquisição passageira. É triste e contente, extasiante e
depressivo, riso e lágrimas, memória do bom e do mau, do agradável e do
desagradável. Na maior parte das vezes, dor psicológica.
É deste amor que temos de nos
libertar e não do Amor que não tem oposto: O Amor que é sensibilidade e paixão, que incide sobre
pessoas e coisas, observadas como são, indiscriminadamente, de forma espontânea
e gratuita. Que não é exclusão, bênção derramada sobre a totalidade da vida,
nascida do silêncio, sem os limites do espaço-tempo.
O
amor popularizado e propagado, tal como o conhecemos, e o ódio devem ser
totalmente ultrapassados caso queiramos ter acesso à grande Via.
(3)
Se nos afastarmos
dela pela espessura de um cabelo
Será como um imenso
precipício entre o céu e a terra.
Se
nos afastarmos dela, nem que seja por um milímetro, se por um momento que seja
capitularmos na tentação da escolha, afastar-nos-emos da verdade, separação que
poderá ser irremediável.
Se
nos afastarmos do caminho, preferindo e distinguindo, céu e terra ficarão
infinitamente distantes.
Quando
alcançarmos o ponto em que os sentimentos findam, as visões desaparecem e em
que a mente está nua e limpa de todas as poluições, estaremos a um pequeno
passo da compreensão do Zen. Mas não nos podemos quedar por aí. Temos de ser
perseverantes, mantendo sempre a mente pura e livre. Existindo a mais pequena
das oscilações, nunca transcenderemos o mundo – Mestre Yuanwu.
(4)
Se a quisermos
atingir
Não podemos estar
nem a favor nem contra nada.
Se
quisermos “encontrar” a Mente Verdadeira não podemos ter opiniões sobre nada, a
favor ou contra coisa alguma.
Nem
a favor nem contra nada. Como é difícil.
Aqui
vale o que referimos quanto às escolhas ou preferências.
O
estar a favor ou contra enraíza-se nas comparações, interpretações,
julgamentos, bem como nos nossos juízos inconscientes.
(5)
O conflito entre o
a favor e o contra
É a autêntica
moléstia da alma.
Este
conflito entre o que gostamos e o que não gostamos, entre o que perfilhamos e o
que repudiamos é a doença da “alma”, é o que faz que nos afastemos definitivamente
da Verdade.
(6)
Se não divisarmos a
essência das coisas
Afadigar-nos-emos
em vão para serenar o nosso espírito.
A
importância da profunda significação das coisas. Se não formos além das
aparências penetrando na essência das dez mil coisas – o mundo dos fenómenos – nunca conquistaremos a serenidade do espírito,
nunca desfrutaremos da paz da mente que é inutilmente perturbada.
E
para termos paz é absolutamente necessário que os desejos se desvaneçam. Quando
estes desaparecerem a Mente Verdadeira emergirá com todo o seu esplendor.
Os
desejos desvanecem-se a partir do momento em que o mundo deixe de acorrentar os
nossos afectos e sentimentos.
(7)
Tão perfeita como a
vastidão do espaço,
Nada lhe falta,
nada está fora dela.
A
Via é completa, tão completa quanto o espaço infinito, englobando o Cosmos.
O
espaço infinito é vazio como a Mente Verdadeira. As coisas preenchem-no, mas em
essência ele não se apodera delas. Daí a sua perfeição.
À
Via nada falta e a Via nada exclui. Nada lhe falta e nada está em excesso.
Por
muito que queiramos rejeitar o que não gostamos, se entrarmos na Via teremos de
o fazer carregando tudo o que efectivamente somos e não apenas o que nos
agrada.
(8)
Acolhendo e
repelindo as coisas
Não somos como
devemos ser.
Quando
aceitamos ou rejeitamos não vislumbramos a verdadeira natureza das coisas.
Se
escolhermos entre as partes da Via perderemos para sempre o conhecimento da sua
essência.
Se
acolhermos e rejeitarmos algumas das múltiplas facetas do nosso ser, deixamos
de ser o que é. Se optarmos pela aceitação ou rejeição das coisas nunca veremos
a sua verdadeira natureza. Assim a Via excluir-nos-á. Ou somos o que somos ou
optamos por falsear a nossa existência. Se a falsearmos, se rejeitarmos o que
não apreciamos em nós mesmos, recalcando-o ou sublimando-o, não teremos lugar
no Veículo que conduzirá à libertação ou iluminação.
(9)
Não intentemos
alcançar o mundo submetido à causalidade.
Não adiramos a uma
inanidade que exclua os fenómenos.
Não
podemos viver apenas atidos às coisas externas nem acorrentados à sensação de
vazio interior.
Vazios
interiormente e harmoniosos exteriormente estaremos como devemos estar.
Quando
perseguimos a parte da existência que nos agrada, que nos causa prazer e
alegria estaremos sujeitos à decepção que sobrevém ao seu desaparecimento.
Depois
da bonança vem a tempestade.
Esta
atitude nunca nos permitirá atingir uma paz estável, pressuposto de uma
verdadeira revolução na consciência conducente ao despertar.
Temos
de dizer “sim” à vida na sua totalidade e dela não excluir nada que nos
desagrade.
De
nada nos serve sentarmo-nos num canto, em profundo silêncio, num vazio absoluto
que exclua o mundo que nos rodeia.
A
meditação deve abranger tudo. Ser consciência constante do que se passa em nós
e ao nosso redor, sem interpretações, comparações ou julgamentos; sem escolhas.
Não
podemos excluir o mundo com toda a sua violência, ódio, ganância, hipocrisia,
inveja…
(10)
Se o espírito
permanecer em paz no Um
As visões dualistas
irão desaparecer por si próprias.
Depois
da compreensão do mundo na sua multiplicidade o Uno manifestar-se-á.
O
múltiplo está no Uno e o Uno contém o múltiplo. São indissociáveis.
Quando
o espírito permanece em paz no Um a nossa visão modifica-se desaparecendo a
dualidade – nem atracção nem repulsa –;
as falsas vistas desaparecerão por si mesmas.
O
Sin Sin Ming insiste constantemente de modo directo ou indirecto no facto da
escolha ou da preferência ser a verdadeira doença da “alma”, doença esta que
subsistindo nunca nos permitirá atingir qualquer estado que se encontre para
além da tacanhez do cérebro e das suas racionalizações espúrias.
(11)
Quando a actividade
pára e a passividade impera,
Esta, por sua vez,
torna-se mais activa.
Quando
nos esforçamos no sentido de parar a actividade para alcançar a passividade
estaremos a retornar à actividade.
Aqui
a passividade é o mesmo que o não-agir. Esta passividade não se identifica com
a inércia, mas com uma atitude de independência relativamente à acção.
Diz-se
“sim” ao que é. Não nos envolvemos emocionalmente com os acontecimentos, com a
acção propriamente dita.
Subjugamo-nos
à Realidade, à Verdade, se assim se quiser à vontade de Deus.
Esta
passividade tem alguma similaridade com a oração dos monges de Tai-zé:
“Senhor
estou aqui à espera de nada”. O monge não pede, não busca, não quer nem recusa.
Em
suma, não estar pessoalmente envolvido com a acção.
(12)
Permanecendo no
movimento ou na quietude
Como é que
poderemos conhecer o Um?
O
movimento, ou seja o tumulto da vida exterior com todas as suas alegrias e
tribulações, a vida interior dos pensamentos, sentimentos, desejos, apegos e
afeições.
A
quietude obtida pelos múltiplos métodos de meditação, por si só, não nos
permite conhecer o Um. O mesmo se diga da pura não-acção.
Enquanto
não ultrapassarmos esta dualidade ser-nos-á de todo impossível conhecer o Um.
Enquanto permanecermos apenas no movimento ou pelo contrário na quietude, nunca
conheceremos a unidade.
Como
terá dito o terceiro Patriarca Zen, se tentarmos parar o movimento
remetendo-nos à quietude, a tentativa de estar quieto aumentará o movimento.
Temos
de poupar as nossas energias no meio de todas as ocorrências angustiantes do
mundo. Se o fizermos transformaremos o inferno no Céu.
(13)
Se não
compreendermos a unidade da Via
O movimento e a
quietude irão conduzir-nos ao fracasso.
Precisamos
de compreender a unidade da Via. A profunda significação das coisas que nos
conduz à visão da Unidade.
Se
nos quedarmos pela meditação silenciosa nunca a alcançaremos. Se nos apegarmos
ao mundo fenomenal, também não a alcançaremos.
A
Via não exclui nada. Não podemos opor a meditação e a sua serenidade à vida e a
toda a sua agitação. Fazendo-o cairemos na angústia do conflito.
(14)
Se nos apartarmos
do fenómeno, ele absorver-nos-á,
Se perseguirmos o
vazio, virar-lhe-emos as costas.
Se
nos tentarmos afastar ou negar o mundo dos fenómenos, estes exercerão sobre nós
uma grande atracção.
Se
negarmos a realidade das coisas ou afirmarmos o seu vazio, acabamos sempre por
perder a sua realidade.
Quanto
mais recusarmos o mundo mais ele nos há-de acorrentar. Temos de o observar e
escutar.
Quando
buscamos o vazio este esgueira-se por entre os nossos dedos como água corrente.
O
vazio não nasceu, não principia e não tem fim, não tem qualquer causa, é o
Tudo.
Se
o desejarmos ele repele-nos.
Não
apegados ao mundo dos fenómenos, sem qualquer apego ao vazio, podemos encetar o
nosso caminho na Via.
(15)
Quanto mais
falarmos e racionalizarmos,
Mais nos
desviaremos da Via.
Quanto
mais dissertarmos, quanto maior uso fizermos da razão, em vez de nos
aproximarmos da Via afastar-nos-emos dela.
As
palavras são pensamento e o pensamento é o fruto da actividade do cérebro. O
cérebro está limitado pelo tempo-espaço.
Não
temos palavras para descrever o Inominável. Os nossos pensamentos nunca irão
atingir a essência da Mente Verdadeira, do Absoluto omnipresente.
Quando
muito, os ensinamentos das escrituras budistas não são mais do que dedos a
apontar para a Lua.
(16)
Suprimindo a
linguagem e a reflexão
Não existirá lugar
algum onde não possamos ir.
Quanto
mais usarmos o intelecto, gerador de hesitações e conflitos psicológicos, mais
retrocederemos no caminho.
Se
suprimirmos a acção do intelecto, isso operará uma revolução na nossa
consciência e todos os lugares estarão à nossa disposição na nossa caminhada,
sejam eles exteriores ou interiores.
Não
haverá nada que não possamos conhecer.
(17)
Regressando à raiz
obteremos o sentido,
Correndo atrás das
aparências afastar-nos-emos do princípio.
Existem
os fenómenos interiores e os exteriores. Podemos vislumbrar as aparências, mas
para além delas está a raiz, a sua essência.
Para
atingir a compreensão temos de ir além da aparência, atingir a causa ou raiz,
não nos atendo única e exclusivamente ao efeito ou consequência.
A
essência das coisas e dos seres não pode ser atingida pela reflexão por mais
profunda e lógica que seja. Ela nasce na quietude compreensiva da mente de cada
um de nós. Do vazio que advém da observação e da escuta e não da reflexão.
A
realidade relativa aparentemente é múltipla, mas em essência é Una – realidade relativa por ter a sua observação
limitada pelos nossos sentidos.
(18)
Se por um breve
instante nos olharmos introspectivamente
Ultrapassaremos o
vazio das coisas deste mundo.
Depois
de atingirmos o vazio, a essência das coisas do mundo, não podemos parar no
caminho.
Temos
de ir mais longe do que esse vazio, ao “lugar” onde tudo é Um – aparência e essência, múltiplo e uno.
(19)
Se este mundo nos
parece sujeito a transformações
É consequência das
nossas visões falsas.
Neste
nosso mundo está tudo em movimento, em constante transformação.
Nada
é permanente e estável.
A
nossa visão do mundo e dos dez mil objectos é relativa. Depende dos nossos
sentidos e dos nossos condicionamentos.
“Vivemos
sobre os ossos dos nossos antepassados.”
Um
mundo em transformação constante não nos transmite qualquer segurança. Não
podemos ter paz quando intuímos que após-túmulo vingará o Nada.
Mundo
onde há um tempo para tudo. Para nascer e para morrer.
Haverá
algo para além desta impermanência? Algo que não pereça, permanente, que não
tenha início nem fim?
Não
há tempo no que não tem começo nem fim e o que não principia nem acaba é
eterno.
(20)
Não é necessário
buscar a verdade
Basta terminar com
as falsas visões.
Quando
se observa e escuta, numa atitude passiva, compreendendo todos os movimentos do
pensamento, o que é falso apresenta-se aos nossos olhos e à nossa mente sem
hesitações. Daí irromperá do nada, subitamente, por si própria, a Verdade.
Do
mesmo modo entendemos de imediato o que é falso, o que não é verdade.
Conhecendo o falso, dissipadas que estejam as falsas visões, a Verdade surge.
(21)
Não nos apeguemos
às visões dualistas,
Evitemos com todo o
cuidado perfilhá-las.
Há
uma dualidade que podemos considerar natural, nomeadamente o dia e a noite, o
frio e o calor.
Mas
o intelecto também gera dualidades. Há o que gostamos e aquilo de que não
gostamos, o que julgamos bom e o mau, o mal e o bem.
Se
nos estabelecermos na Realidade esta dualidade desvanece-se. O impermanente
transforma-se numa via de acesso ao que é permanente.
Precisamos
de compreender essa dualidade e os conflitos a que conduz.
O
conflito psicológico angustia-nos e não nos deixa progredir no caminho. Temos
de evitar toda a dualidade.
(22)
Caso exista o menor
vestígio do sim e do não
O espírito
perder-se-á num labirinto de complicações.
O
nosso “sim” deve ser um sim absoluto e não relativo. Sim ao que gostamos e ao
que não gostamos; sim à felicidade e à infelicidade.
Dizer
“sim” à vida sem réstia do seu contrário “não”; eis a questão.
Caso
exista um vestígio, por mais pequeno que seja, disto ou daquilo, do sim ou do
não, do certo e do errado, a mente perder-se-á em conflitos intermináveis.
(23)
A dualidade existe
como consequência da unidade,
Mas não nos
apeguemos a essa unidade.
Por
vezes isolamo-nos do mundo e pela meditação penetramos no âmago do Um.
A
paz e a serenidade invadem-nos e aí apegamo-nos a esse Um recusando a
multiplicidade dos fenómenos externos.
Enquanto
não resolvermos as nossas questões com o mundo dos fenómenos, com as dez mil
coisas, não conseguiremos estabilizar-nos na unidade.
O
puro apego ao Um é pernicioso.
(24)
Quando o espírito
se unifica sem se apegar ao Um,
As dez mil coisas
são inofensivas.
O
espírito unifica-se quando por uma atenção compreensiva penetrou todos os seus
recantos, mesmo os mais recônditos, onde estão acumuladas as memórias do
inconsciente.
Deixa
de haver consciente e inconsciente. O material psicológico contido no espírito
está livre de mecanismos psicológicos tais como o recalcamento, a sublimação, a
compensação ou a substituição.
O
espírito liberta-se mas não se apega ao Um. Liberta-se apenas dos seus
condicionamentos e conflitos, que são sofrimento psicológico.
Liberto
e para além da dualidade, dos opostos, podemos suportar com uma enorme energia
e paz todas as provações e tragédias que são consequência directa do nosso
nascimento neste mundo, v.g. a
doença, a fome, a velhice, a morte.
Quando
o espírito se liberta sem que busque seja o que for, sem recusar o sofrimento
psicológico que advém da existência neste planeta de predadores, as dez mil
coisas são inofensivas. Elas não desaparecem como num passe de mágica, mas
mesmo existindo deixam de nos fazer sofrer psicologicamente.
(25)
Se uma coisa não
nos ofender é uma coisa inexistente,
Se nada se produzir
não haverá espírito.
O
mundo está em mudança constante. Nele nada há de estável.
Não
podemos permitir que as coisas do mundo nos ofendam. Se não nos ofenderem
permaneceremos em paz. Onde não há ferida não há necessidade de cura.
Se
nos mantivermos na Realidade estaremos afastados das mutações constantes e das
suas consequências.
(26)
O sujeito
desaparece atrás do objecto.
O objecto
desaparece com o sujeito.
Sujeito
e objecto. Encontramos de novo o conceito de dualidade, dualidade que deve ser
definitivamente ultrapassada.
Quando
o espírito atingiu a liberdade a dualidade desvanece-se irrompendo com todo o
fulgor a Unidade.
É
necessário aniquilar os pensamentos discriminatórios. Deste modo, a mente velha
deixa de existir. Se os objectos do pensamento desaparecem, o fundamento do
pensamento desaparece. Se a mente desaparece, os objectos também desaparecem.
(27)
O objecto é pelo
sujeito que é objecto.
O sujeito é pelo objecto
que é sujeito.
As
coisas são coisas por efeito da mente. A mente é o que é por causa das coisas.
Quando
ultrapassarmos todas as dualidades seremos todas as coisas. Objecto e sujeito
não serão mais do que uma única coisa.
Por
isso se diz que “o sábio tem por corpo o universo inteiro”.
(28)
Se desejarmos saber
o que é que eles são na sua ilusória dualidade,
Saberemos que não
são nada para além do que um vazio.
A
dualidade ilusória não é mais do que um vazio.
(29)
Neste vazio único
os dois identificam-se
E cada um contém em
si as dez mil coisas.
No
que não nos é mostrado todas as possibilidades do exteriorizado existem no seu
estado oculto.
No
vazio único, todas as potencialidades que possamos conceber, todas as que se
realizarem e mesmo as que não tenham realização, tudo está contido no estado oculto.
Um
grão de poeira é único e infinito; uma gota de água do oceano Atlântico abarca
todos os mares.
No
vazio único os opostos identificam-se. No entanto cada um contém em si as dez
mil coisas.
(30)
Não devemos fazer
distinção entre o subtil e o grosseiro.
Como poderemos tomar
partido disto contra aquilo?
É
uma ideia que se repete no ensinamento.
Quando
comparamos, interpretamos ou julgamos, fazemos as nossas escolhas. Essas
escolhas estão condicionadas por tudo o que nos envolve.
Tomar
partido por alguma coisa do mundo exterior pode afectar permanentemente a nossa
liberdade na Via; afectada perder-se-á definitivamente.
(31)
A essência da
grande Via é vasta,
Nela não há nada
fácil nem difícil.
Aqui
temos novamente de ultrapassar a dualidade fácil/difícil, questão que já foi
tratada múltiplas vezes nestes comentários.
Temos
de ir além do próprio ensinamento, mais além, sempre mais além, para além do
além.
(32)
As visões
mesquinhas são hesitantes.
Quanto mais
depressa pensamos que vamos mais lentamente o fazemos.
Não
podemos carregar connosco nesta vida as visões mesquinhas que nos são impostas
pela rotina da vida, pelo nosso egoísmo, ciúme, inveja, egocentrismo.
Precisamos
de uma revolução na consciência.
Eu
quero atingir o despertar, a iluminação. O desejo absorve-me e corro com o
tempo na sua busca.
Quanto
mais depressa julgo ir mais lentamente vou.
O
caminho para a grande Via começa aqui e deve ser percorrido passo a passo.
Precisamos
de compreender o mundo e o nosso interior. Ser um com o Cosmos.
O
desejo de iluminação consolidado em apego é um obstáculo ao despertar.
(33)
Apegando-nos à
grande Via aniquilamos toda a dimensão
E comprometemo-nos
com um caminho sem saída.
Se
nos apegarmos à grande Via iremos perder-nos e entraremos num caminho sem
retorno.
Não
devemos apegar-nos a qualquer crença, dogma ou ensinamento para atingir a
Verdade.
Seja
qual for a crença, religião ou doutrina, não devemos agarrar-nos como náufragos
aos seus dogmas ou regras. Isso causar-nos-á ansiedade, angústia, em síntese,
um profundo sofrimento psicológico.
Qualquer
ensinamento genuíno deve avisar-nos dos perigos que corremos quando nos
apegamos às suas rígidas instruções que intentam perscrutar a verdade.
(34)
Se a deixarmos ir
as coisas seguirão a sua própria natureza.
Em essência nada se
move nem permanece no mesmo lugar.
Deixemos
que a grande Via percorra o seu caminho.
Na
essência nada se move.
Na
aparência tudo se move, nada permanece no mesmo lugar.
Necessitamos
apenas de ser. Ser-se aquilo que se é e ir além, mais além, para além do além.
(35)
Obedecendo à
natureza das coisas estaremos de acordo com a Via,
Estaremos livres e
seremos libertados de todo o tormento.
Obedecer
à natureza das coisas é dizer sim à vida, seja o que for que ela nos traga.
Quando
dizemos sim à vida, caminhamos de acordo com a Via, libertos do sofrimento.
O
nosso sofrimento não tem única e exclusivamente como causas factores internos,
como a doença, a fome, a velhice e a morte. Tem também causas endógenas: o
conflito, o medo, o desejo, o apego.
Dizer
sim ao que é e ao que efectivamente somos.
Não
ao que queiramos que seja ou ao que queremos ser.
(36)
Quando os nossos
pensamentos estão acorrentados viramos as costas à verdade
E mergulhamos no
desassossego.
Os
pensamentos estão acorrentados quando se sucedem ininterruptamente, quando fazem
com que o nosso cérebro esteja absorvido pela sua ruminação.
Em
regra é o passado que nos atormenta, passado que se projecta nas angústias do
presente e se propaga como medo do futuro.
Precisamos
de nos libertar do passado. Morrer para o passado.
Só
o agora existe. Para compreender o agora temos de nos libertar dos
condicionamentos e conflitos, do medo, do tempo e do sofrimento. Só assim viveremos
o agora e só morrendo para o passado saberemos o que é morrer, o que é morrer
fisicamente.
(37)
O desassossego
fatiga a alma.
Para quê fugir
disto e acolher aquilo?
Já
dissemos noutro lugar que o conflito entre o a favor e o contra é a doença da alma.
O
conflito esgota-nos, exaure as nossas energias. Tem o efeito da dúvida
permanente ruminada pelo intelecto. Esta absorve-nos, não nos liberta para a
vida e muito menos para o “caminho”.
Se
o conflito cessar, se deixarmos de escolher isto em detrimento daquilo, a paz
envolver-nos-á.
Mas
infelizmente vivemos continuadamente no conflito.
(38)
Se desejarmos
adoptar o trilho do Veículo Único
Não poderemos
amparar nenhum preconceito contra os objectos dos seis sentidos.
O
Veículo Único é o transporte de que dispomos na nossa progressão na Via. Tal
como o nome indica, o único transporte.
Estamos
habituados a referenciar os cinco sentidos, que são os que produzem as
percepções.
Neste
verso fala-se num sexto, que é o que gera o pensamento.
As
coisas são o que são. De nada nos serve criar barreiras contra as mesmas, assim
como julgar os pensamentos que podem surgir.
Ver
e escutar os pensamentos. Apenas isso. Sejam eles o que forem, mesmo os mais
perversos e vergonhosos. Se os escutarmos atentamente, numa vigilância passiva,
acabarão por se dissipar sem que para isso tenhamos de despender energia, sem
esforço.
(39)
Quando deixarmos de
os detestar
Então atingiremos a
iluminação.
Quando
já não detestamos os objectos dos seis sentidos estamos em condições de atingir
a iluminação.
Quando
as dez mil coisas forem idênticas perante os nossos sentidos, quando as
olharmos e escutarmos do mesmo modo é porque a iluminação está prestes a
surgir.
Não
é assim que nos habituámos a reagir. Estamos sempre a tomar partido. A gostar e
a detestar. Deste modo negamo-la e inviabilizamos o nosso despertar.
(40)
O sábio perdura sem
fazer nada,
O louco enreda-se a
si mesmo.
O
sábio encontra-se em paz. Age sem se envolver com a acção, sem se comprometer.
Não se esforça ingloriamente para atingir objectivos.
O
louco tropeça nos seus próprios passos. É escravo de si mesmo.
Somos
nós os responsáveis pelo sofrimento psicológico.
(41)
As coisas não
conhecem distinções,
Nascem do nosso
apego.
As
coisas não conhecem distinções. É o nosso apego, fruto de comparações e
julgamentos que as cria.
Há
uma parte da nossa vida que nomeamos como parte feliz. E outra que nomeamos
como parte infeliz.
A
oposição que geramos entre as duas nasce dos nossos julgamentos.
Queremos
a repetição dos eventos felizes, dos momentos alegres, das experiências que nos
satisfazem e recusamos, enquanto repelimos e recalcamos o que nos torna
infelizes. Desejamos a repetição do agradável e o desejo vai-se transformando
num apego consolidado.
No
entanto, os nossos julgamentos são subjectivos. O que é bom para mim pode ser
mau para os outros.
Nada
é bom e só bom. O peixe que eu hoje comi, foi um bem para mim e um mal para
ele. A chuva que alimenta os campos cultivados é boa para o agricultor e má
para o banhista.
(42)
Apoderarmo-nos do
seu espírito para nos servirmos dele
Não será o mais
grave de todos os desatinos?
Servirmo-nos
do espírito na perspectiva da dualidade, ou seja do que é bom ou mau para nós,
do que nos é favorável ou não, mantendo-nos na ilusão é o mais grave de todos
os desvarios.
Se
vivermos na dualidade nunca acederemos à Realidade Suprema.
(43)
A ilusão produz
quer a serenidade quer o transtorno.
A iluminação
destrói todo o apego bem como toda a aversão.
As
ilusões são provocadas por visões deturpadas ou falsas.
Se
obtivermos uma iluminação súbita ainda que imperfeita – à qual se podem seguir novos episódios do despertar -, esta fará
com que toda a aversão, desejos e apegos desapareçam.
O
fim da prática do Zen não se dá, em regra, num único momento. O culminar da
prática Zen pode ser vivenciada múltiplas vezes, fazendo com que a compreensão
se aprofunde. A própria Grande Morte – ou
satori – não constitui a última realidade do Zen, mas antes um despertar
relativo à nossa natureza, à do universo, à Mente Verdadeira e indica-nos sem
qualquer possibilidade de erro ou de errar no Caminho, uma nova vida, uma morte
e um renascimento.
(44)
Todas as oposições
São fruto das
nossas reflexões.
Todas
as oposições são fruto do intelecto, da nossa ignorância.
É
nele, por via da nossa actividade mental, condicionada e egocêntrica que se
geram os conflitos.
E
os conflitos são sofrimento.
E
onde houver sofrimento não pode haver paz nem vislumbre do caminho para o
despertar.
(45)
Visões em sonho,
flores do ar,
Porque é que nos
devemos dar ao trabalho de as proteger?
Retornamos
neste verso ao conceito de não-dualidade. As dualidades são como visões em
sonho e flores no ar. É sandice tentar capturá-las.
Basta-nos
ser. Se formos aquilo que realmente somos, se não aspiramos a ser algo mais
daquilo que somos por via da ilusão – hoje
não sou bom, mas amanhã serei; hoje não tenho tempo para pôr em marcha uma
verdadeira revolução na consciência, mas amanhã terei; hoje sou pecador, mas
vou fazer tudo para que a partir de amanhã seja santo – não teremos
necessidade de suster as visões e concepções falsas.
(46)
O ganho e a perda,
o verdadeiro e o falso,
Que desapareçam uma
vez por todas.
De
novo a dualidade.
O
ganho e a perda, o verdadeiro e o falso.
No
ganho e na perda está contido o ter. Mas ser não se identifica com o ter.
Ser,
simplesmente ser.
O
verdadeiro e o falso são concepções subjectivas. Praticamente todos têm ou
aspiram à sua verdade. Todos nós estamos preparados para assumir e interiorizar
o que é falso.
Nas
religiões, onde cada crente aceita os seus dogmas como verdades indiscutíveis –
sabemos historicamente ao que conduz este
tipo de adesão –, na política – onde
a todos assiste a razão –, no corporativismo de certas profissões – nomeadamente os médicos relativamente às
medicinas não convencionais – e genericamente na própria estupidez humana.
Sim
à não-dualidade. É esta a mensagem já múltiplas vezes referida no poema.
(47)
Se o olho não
dorme,
Os sonhos irão
desvanecer-se por si próprios.
Se
observarmos os nossos pensamentos, sentimentos, emoções e o mundo fenomenal que
nos rodeia, esta observação fará cessar a ilusão, o sonho que se contrapõe à
visão da realidade tal qual ela é.
É
certo que esta observação está limitada pelos nossos sentidos e intelecto. Por
isso mesmo, tem de ser a mais apurada possível.
(48)
Se o espírito não
se perder nas diversidades
As dez mil coisas
já não serão mais do que uma identidade única.
Quando
o espírito não se dispersa em si mesmo e no mundo exterior as dez mil coisas são
apenas uma.
Tudo
é Um. O Um que se manifesta aos nossos sentidos com um número incalculável de
formas.
Um
que será uma energia infinita.
(49)
Quando
compreendermos o mistério das coisas na sua identidade única
Esqueceremos o
mundo da causalidade.
O
mistério das coisas. Depois da aparência, quando penetramos na sua essência e
percepcionamos a unidade, a causalidade desaparece.
O
Um não teve início nem terá fim e ninguém o criou. O Um não tem qualquer causa.
(50)
Quando todas as
coisas forem consideradas com equanimidade
Regressarão à sua
natureza original.
Este
verso repete o que já foi afirmado noutras passagens do poema.
Observar
com equanimidade é sinónimo de liberdade de espírito. Ver as coisas tal qual
elas são e penetrar na sua essência.
Compreender
a sua unidade no que está para além do espaço, do tempo e da causalidade.
(51)
Não procuremos o
porquê das coisas
Porque iremos
precipitar-nos no domínio das comparações.
Ao
procurar o porquê das coisas, estruturados na razão, acabamos por cair no
domínio das comparações, da interpretação, do julgamento.
Quando
aprendemos a observar as coisas, as emoções, os sentimentos, a mente
aquieta-se. Deixa de existir a turbulência incoerente de pensamentos que
inviabilizam uma percepção nítida.
Quando
observo, vejo e escuto num estado de equanimidade e por via dessa observação,
sem mais, ultrapasso os portais da aparência, para depois penetrar sem qualquer
esforço ou racionalização na essência das coisas.
Se
estiver deprimido ouço atentamente esse estado de espírito. Se estiver com medo
escuto esse medo com toda a atenção. Ao escutar atentamente sigo o movimento
desses sentimentos e emoções com serenidade e aos poucos percebo que eles se
vão desvanecendo.
O
porquê não é importante, importantes são as coisas em si, os pensamentos, os
sentimentos, as emoções, e o que na realidade somos.
(52)
Quando a paragem se
põe em movimento deixa de haver movimento,
Quando o movimento
pára, deixa de haver paragem.
Estamos
perante afirmações paradoxais.
A
dualidade paragem/movimento.
Observemos
as coisas. Parecem-nos parados mas estão em movimento.
No
universo tudo é energia
No
entanto, os místicos afirmam a existência de um ser em si mesmos onde reina a
imobilidade suprema – imobilidade que não
é o contrário do movimento.
Tal
como um pião ou as hélices de um avião. Quando a criança o lança vigorosamente
gira tão rapidamente que parece imóvel.
Mestre
Linji disse. “Se tentardes agarrar o Zen em movimento, ele torna-se quietude.
Se tentardes agarrar o Zen na quietude, ele torna-se movimento. Ele é como um
peixe escondido numa nascente, saltando nas ondas e dançando, independente.”
(53)
As fronteiras do
derradeiro
Não são guardadas
nem por leis nem por regulamentos.
O
budismo zen apercebeu-se desde os primórdios que leis e regulamentos eram um
obstáculo ao despertar, contrariando toda a actividade de Buda nesse sentido.
As
leis são pedras de tropeço no caminho para a Via.
No
Zen, o praticante, deve caminhar sozinho sem os grilhões de regulamentos que
possam obstar à libertação e muito menos dos dogmas impostos pelas religiões
sejam elas quais forem.
Como
ensinou Mestre Dazhu o tesouro que está dentro de nós contém tudo, e somos
livres de o usar. Não precisamos de buscar no exterior. Assim, devemos saber
por nós mesmos o que é sagrado e o que o não é, o errado e o certo, não nos
preocupando com o julgamento dos outros – Mestre Fenyang.
(54)
Se o espírito
estiver harmoniosamente unido à identidade,
Toda a actividade
se apaziguará nele.
Quando
o espírito penetra a essência do mundo fenomenal e aí se estabelece, o
intelecto apaziguar-se-á.
Estará
atento, numa vigilância passiva, terá o seu movimento próprio na quietude do
Um.
(55)
Quando afastarmos
as dúvidas,
A fé verdadeira
reaparecerá confirmada e reerguida.
As
nossas dúvidas, os conflitos gerados entre o a favor e o contra são as doenças
da alma (ver 5).
O
querer e o não querer, as opiniões contraditórias, minam o nosso intelecto.
Se
no caminho varrermos as dúvidas, nasce a fé, fé esta que pela sua própria
verdade não necessita de ser afirmada ou demonstrada.
(56)
Já nada permanece,
Nada de que seja
necessário recordarmo-nos.
O
verso refere-se à morte do passado.
Não
interessa o que fomos, o que fizemos ontem, nos últimos anos.
Estamos
a florescer em bondade. Morrendo para o passado estamos vivos, vivendo cada
acontecimento como algo novo.
Se
a tua memória viver morrerás, se morrer viverás.
(57)
Tudo é vazio,
luminoso e radiante por si próprio.
Não fatiguemos as
nossas forças espirituais.
Quando
penetramos a essência das coisas tudo se tornará luminoso.
Quando
observamos a realidade sem recurso ao intelecto, esta ilumina-se. Ou seja,
quando nos observamos e observamos o mundo que nos rodeia numa vigilância
passiva, a essência do observado manifesta-se sem que para tal sejamos
obrigados a esgotar-nos espiritualmente com exercícios e preces obnubiladores e
que obstam ao caminho a percorrer na direcção da Via.
(58)
O Absoluto não é um
lugar mensurável pelo pensamento,
O conhecimento não
o pode sondar.
Já
escrevemos sobre esta temática.
O
intelecto, o pensamento, está limitado pelo tempo-espaço.
Pode
o finito, o limitado, alcançar o infinito, o ilimitado, o Absoluto?
A
mente dual nunca o conseguirá fazer por mais especializada que seja ou se
torne.
Só
a mente desocupada do seu conteúdo, a mente onde deixou de existir dualidade,
onde não há “eu” e “vós”, “eu” e os “objectos” poderá tocar o Um.
(59)
No mundo da
verdadeira identidade
Não existe outrem
nem si mesmo.
Na
sequência do verso anterior, aqui o poeta expressa a consequência do
esvaziamento da mente.
Encontrada
que seja a verdadeira identidade, não existe “eu” e “outros”, “eu” e os
“objectos”.
Negada
a dualidade só existe Um.
(60)
Se desejarmos
adequar-nos com ela
Bastar-nos-á dizer:
não-dualidade.
Para
atingir o Absoluto basta-nos dizer: não-dualidade.
Basta
atingir a não-dualidade.
(61)
Na não-dualidade
todas as coisas são idênticas,
Nada há que não
esteja contido nela.
No
verso refere-se que todas as coisas são idênticas.
Não
podemos interpretar literalmente a expressão utilizada.
Atingida
a não-dualidade, o iluminado percepciona todas as coisas como expressão do
Absoluto. Tal facto não diminui, obviamente, a sua capacidade de as distinguir
na sua aparência ou natureza. Como já assinalámos, na não-dualidade não há
exclusões. Não há nada que não esteja nela contido.
(62)
Os sábios em toda a
parte
Chegaram a esse
princípio primordial.
Os
místicos, os iluminados, os liberto-vivos, os despertos, todos em toda a parte
do planeta, independentemente dos seus credos e fé, chegaram à conclusão de que
não há nada que não esteja contido na não-dualidade.
(63)
O princípio não tem
pressa nem se atrasa.
Um instante é
semelhante a milhares de anos.
O
instante não é tempo. O instante transcende o passado, o futuro e o próprio
presente.
Para
o iluminado o instante é eternidade. Nele, o tempo esvai-se, desaparece.
O
eterno agora.
(64)
Nem presente, nem
ausente,
No entanto, em toda
a parte diante dos nossos olhos.
Nem
ausente nem presente. Estranha afirmação esta.
O
Absoluto está ausente e presente.
Mesmo
que o não consigamos ver ele está presente. Basta que apuremos a nossa visão,
que digamos “não-dualidade” para que ele esteja em toda a parte, diante dos
nossos olhos.
Devemos
ultrapassar esta dualidade: ausente/presente.
(65)
O infinitamente
pequeno é como o infinitamente grande,
No esquecimento
total dos objectos.
O infinitamente
grande é igual ao infinitamente pequeno,
Quando o olhar já
não se apercebe mais de limites.
Quando
não nos apegamos aos objectos o infinitamente pequeno é como o infinitamente
grande.
Quando
a nossa observação já está purificada e se expande na Mente Verdadeira, o
infinitamente grande é igual ao infinitamente pequeno.
O
infinito está sempre presente.
A
mais pequena partícula de um átomo é tão infinita como o Um, o Todo.
(66)
A existência é a
não-existência.
A não-existência é
a existência.
Enquanto o não
compreendermos
A nossa situação
permanecerá insustentável.
Quando
navegais nos mares, a onda é o oceano.
Mas
o oceano também é a onda que se forma pela acção do vento.
A
realidade é o que é. Não o que nós egocentricamente queremos que ela seja.
(67)
Uma coisa é ao
mesmo tempo todas as coisas.
Todas as coisas não
são senão uma coisa.
O
Um manifesta-se pelas dez mil coisas e pelos dez mil seres.
Todas
as coisas são uma e o Todo é todas as coisas.
O
Cosmos é um “organismo” que tudo abrange e o que é abrangido é também o próprio
Cosmos.
(68)
Se pudermos
compreender isto
Será inútil
atormentar-nos quanto ao conhecimento perfeito.
Sejamos
simples como as flores dos campos e as crianças.
Um
antigo Mestre Zen disse: “A nossa escola não tem slogans e nenhuma doutrina
para dar às pessoas.”.
Somos
nós, por nós mesmos, que temos de dar o primeiro passo no Caminho e perseverar
na continuidade, alcançando o conhecimento sem esforço.
De
que serviram tantas teologias e filosofias?
No dia 6 de Dezembro de 1273 – festa de
São Nicolau de Bari –, três meses antes da sua morte, enquanto celebrava
missa no convento de Nápoles, S. Tomás experimentou uma espécie de êxtase, após
o qual abandonou a escrita da sua obra mais conhecida, a Suma Teológica,
obra que estava a terminar. A partir daí, não escreveu mais uma única linha.
Questionado pelos monges de tão estranha atitude, respondeu: “Já não posso mais,
porque tudo o que escrevi me parece palha”.
O
que é que a ciência nos trouxe?
Pequenos
conhecimentos que não resolvem nenhum dos mistérios mais apetecidos. Por vezes,
até uma atitude de sobranceria inqualificável, de intolerância. E douta
ignorância.
A
aproximação ao Absoluto não pode ser obtida por intermédio da especulação e da
experimentação.
Para
quê atormentarmo-nos com mistérios?
Unamuno
começou a rebelar-se contra a fé por causa do Inferno. O seu terror era o
aniquilamento, o nada para além do túmulo. Face a este terror, questionou-se:
“Para quê mais inferno?”
(69)
O espírito da fé é
não-dualista.
O que é dualista
não é o espírito da fé.
Aqui as vias da
linguagem param
Pois não existe nem
passado, nem presente, nem futuro.
O
que é a fé? É a atitude do crente que se liga a Deus por intermédio de um acto
voluntário. Esta fé tem a sua origem num testemunho de origem sobrenatural.
Pode qualificar-se como afeição.
Mas
a fé não pode ser dual. Por um lado eu, por outro a minha fé. Esta dualidade
cessa quando o homem desperta.
O
iluminado é a sua própria fé. Ele é a fé. E onde a fé permanece não-dual as
vias da linguagem param.
As
palavras são a forma como se expressa o pensamento. E onde existe pensamento
está o tempo, o sofrimento e a morte.
Não
havendo pensamento o tempo cessa e com ele o sofrimento e a morte. Assim nasce
a eternidade.
A
cultura ocidental é dualista. O Zen ensina que todos fazemos parte da Mente
Verdadeira. É nessa Mente que temos a nossa origem e é a essa mesma Mente que
um dia voltaremos.
No
encontro com a Mente Verdadeira passamos para além de antes do nascimento e de
depois da morte.
“O
atalho do Zen é deixar o presente e experimentar directamente o estado anterior
ao nascimento, anterior à divisão da totalidade. Quando alcançarmos isto
seremos como um dragão na água, como um tigre nas montanhas. Calmos em toda a
parte, livres para dar vida ou para matar” – Mestre Mi-An.
O
mesmo, por outras palavras, disse o Mestre Yuansou: “Os zenistas verdadeiros
colocam um único olho no estado anterior à formação do embrião, antes de
quaisquer sinais se tornarem distintos. Isto abre e torna clara a mente, de tal
forma que penetra todo o universo. Então eles não são, em nada, diferentes de
Buda e do fundador do Zen”.
Esta
meditação é apelidada de Meditação Suprema.
E
quando chegarmos à fronteira da vida e da morte, quando elas se entrecruzam,
mas não se misturam, partiremos serenamente, imperturbavelmente. Este é o Zen
de encarar a morte – Mestre Yuanwu.
E
retornando à Mente Verdadeira não existirá para nós mais passado, presente ou
futuro, nem horror vacui nem horror nihili.
***