Download dos textos de ANTIPOESIA ou a insustentável arte da falsa erudição em –
***
está exaurida
retira com gestos dóceis
a caneta do tinteiro
e escreve segunda-feira
com um olhar penível
antes de se devolver ao leito
pensa
as minhas irmãs fazem turnos
para cuidar de mim
o som de uma pequena caixa de música
abafa a angústia e o desespero
observa as mãos envelhecidas
o perfume de uma rosa branca
fez com que sorrisse
um sorriso que iluminou o aposento
melancolicamente decorado
a retratos falecidos
***
nunca devemos dizer adeus
a vida começa antes do embrião e
passa incólume pelos acanhados laços da morte
devíamos tê-lo escrito nos cadernos da escola primária
quando desenhávamos letras em duas linhas paralelas
na construção
de vocábulos de coisas coesas
***
mantenho-me vivo
como um qualquer mendigo
e morro a cada dia
em cada acto
em cada palavra que digo
***
ser tantas coisas
sonhar outras mais
desbravar selvas
florestas virgens
sulcar mares
acreditar em fadas
em mistérios e milagres
ser um nada
como os demais
***
rios de luz nas nuvens
o ocidente renasce das sombras
e nelas os guerreiros de antigamente
***
suor que corre nas cartilagens
da chama
que no corpo se extingue
junto ao cascalho do caminho
pingos de sangue confundem-se
com o areão avermelhado
a estátua desmembrada sorve a luz do dia
uma cruz com os pés nus
fez-se rodear de flores de água
os mamilos decepados
tudo tão verdadeiro e tão falso
como outrora
***
os pobres lavradores
cavam a cada dia
um palmo da sua sepultura
***
na sala de visitas
os manequins do fundo
meneiam-se em gestos
arrebatados à obscuridade
pelas paredes negras
passeiam-se
as sombras
do mais aterrador silêncio
na atmosfera deprimente
as mentes adulteradas
buscam ávidas um
sonho que ninguém quer sonhar
***
a cada hora
que passa
enfureço a insónia
agita-se o corpo
sonho acordado no lodo
argiloso do tempo
quando se dorme
não se sofre a verdade
podemos nascer
ser crucificados
morrer
por asfixia
exalar o último suspiro
e depois
acordamos
renascidos
por vezes
pensando no suicídio
***
os cães do arlindo ladram a toda a gentalha
mas a mim não –
que espécie de cão serei eu
***
olhos floreados empalecem
pétalas emurchecem
estrelas que se extinguem
na escuridão do quarto
uma vela alumia
o velho jarrão de porcelana
e os crisântemos artificiais
não se ouve
nada
qualquer sussurro
para quê manter aberta a janela
ou a porta no trinco
quando nele vage a alma
***
florejam
abismos
fráguas
rios
miragens
entorpecem
sílabas
palavras
frases
poemas
falsidades
***
toco os teus seios
estão frios
as mãos paralisadas
as faces amarelecidas
os olhos cerrados
não não pode ser a morte
falo-te suavemente ao ouvido
digo-te
amor acorda sê forte
donde provém tanta paz
quietude e indiferença
não pode ser morte
começo de nova vida
em mim e em ti
na minha alma dorida
***
embravecimento eterno que me cinge o coração
não o sei descrever
nem sequer sei se é fúria dor ou paixão
***
querer ou não querer adormecer
a esta hora da madrugada os pensamentos dispersam-se
rememoram-se extinguem-se mesclam-se
não quero acordar
fico só com as coisas comigo como coisa
sem pensar sem sonhar
assim tão só
tão acompanhado
tão serenamente tudo
***
livros
e fios de prumo –
inutilidades
***
desorientado agitava-se
levantou-se descalço
laborou descalço
deitou-se descalço
as folhas caíam
das cerejeiras mortas
os fantasmas
do medo
vagueavam nos arretos
por cultivar
***
sem destino
abriu a porta do casebre
na mesa
coberta de pó
um prato partido
com restos de comida
corrompida pelo tempo
num dos cantos
um corpo
em decomposição
de quem seria
habituado à morte
sentou-se num banco de três pernas
e ficou-se por ali
a contemplar o cadáver
sem resposta
sem nada
do que ali restava
partiu acompanhado
pelo silêncio do sepulcro
desprezado
***
sol na eira água no nabal
a palha mortífera
dos meus versos
***
a vida embriaga as saudades
quando escrevo ao alvorecer
o som das palavras que constroem o momento
na casa ao lado instalou-se o vazio
enquanto os teus olhos se apagam
só as rosas as hortênsias e as dálias
não padecem
não pensando nem sabendo
que deixarão de ser as
tuas fiéis companheiras
***
os ossos da morte espalhados no mato rasteiro
que cresce entre fráguas incendeiam os instintos
e os desejos dos monges do mosteiro
***
canto o esquecimento
da transgressão e
do remorso
da culpa e
do pecado
da angústia e
do sofrimento dos que
em mau momento ofendi
penso em vós em ti
no mal que a mim próprio fiz
e quanto mais o canto
mais me atormenta
o arrependimento
***
uma pedra preciosa
uma águia errante
no jardim o lago dos nenúfares
o beijo das aves domesticadas
a senhora desce pausadamente os degraus do palácio
acaricia os fragmentos de um falso adónis e
olha para o céu
onde uma nuvem negra ameaça
chuva de solidão
o amante hoje não veio
***
procurava nas pequenas coisas
disformemente mundanas
o motivo último
a causa primeira
o poema aquoso
o símbolo inicial
do criador amoroso
***
os ramos de cerejeira desabavam floreados
contra as vidraças das janelas do luxuoso restaurante chinês
as pétalas começaram a tombar arrastadas por pequenas gotas de vento
dentro as mesas estão cheias
palavras palavras
flores que ninguém vê
***
o mapa de todas as ganâncias
com todos aqueles recifes de coral
revelou-se fatal
***
um punhal de sol
rasga o sobreiro
que tem na sua sombra
a história solitária
de gerações
de velhos pastores
***
somos todos mendigos
do oiro ou do céu –
todos sem excepção
***
junto à fogueira
erguem-se os braços da cruz pintada de branco
as pedras que a cercam
carpem
o fedor da carne queimada
na distância
uma mulher e duas crianças
pranteiam abraçadas
***
no caminho
pedregoso
a face lunar
oculta as estrelas
e as galáxias
tão distantes
tão surdas
ao meu brado
***
bebemos a seiva
do esquecimento
voámos nas asas
das aves nocturnas
sorrimos felizes
à água pura
das nascentes
***
à luz das estrelas
caminho com a urgência
da mágoa sem tino
que amargamente dilacera
as peugadas
dos passos submersos
como
um velho monge
sem fé e
sem destino
***
as memórias fenecem no rio pantanoso
do sonho inquieto
trespassado pelas garras das aves nocturnas
alguém desce as escadas emparedadas da zona antiga da cidade
parece conhecê-las como ninguém
talvez o hábito de anos de trabalho
sem qualquer significação
sem qualquer sentido
vida perdida no vazio da multidão
***
não conhecem a vida
os que a cantam
mas os que a consomem
***
a voz da criança moldava-se ao nosso corpo
cujas linhas a escuridão definia
no meio de tantos sonhos que convivem com o ar respirado pelos pinheiros mortos
lá onde jazia uma lareira extinta
pendiam os gritos do espaço ermo
a constrição dos aflitos
a festa dissipava o tédio e o furor dos cântaros
o som planava em todas as direcções
havia vozes no côncavo das mãos gretadas
imersas na transparência das cidades perfiladas como vaginas ardentes e
das palavras repetidamente inalteradas
***
um arbusto baila ao vento na paisagem
num dos seus ramos mais envelhecidos
canta uma ave casta que inunda a planície deserta
no arrebatamento da paz sem-nome
***
nas dunas brilhava uma estrela
indicando o outro lado da ria
movimentos subtis nas ervas ressequidas
rastejavam à superfície
os monstros da noite haviam recolhido
aos fluidos engrinaldados por pequenas algas
cabeleiras de lágrimas
das flores das trevas
***
dois pássaros mortos
no telhado em ruínas –
ah a efemeridade do mundo
***
folhas secas acasalam com a lama
a chuva inundou as bermas
o sol apareceu entre duas nuvens e
por momentos fez brilhar
algumas gotas espalhadas pelos
troncos emudecidos
longe um pastor toca flautim
sem que saiba ou queira
saber que o oiço atentamente
***
no funeral dois anjos
rondam uma cova nua –
número 23
***
vejo na rua antiga
as árvores que morrem
os rostos enegrecidos pela fuligem
pombos doentes poisam
nas estátuas
num prédio devoluto
uma família vive amontoada numa
cave húmida e fria
desesperança onde brilha
um candeeiro de petróleo
nos rostos deprimidos
das crianças
***
visões tenebrosas
presságio do fim
que se aproxima
não tenho
nenhum negócio
que te fascine
***
as palavras soltam-se
saem de si
abandonam-se à luz do crepúsculo
quando o sol morre
e o poema nasce
***
um velho corvo entediado
sorri ao frio
que magoa as mãos amarrotadas
das bruxas
prostradas à porta dos infernos
de maldições e assombros acusadas
as cordas penduradas nas muralhas
aguardam a arraiada
do reino das trevas
***
o tique-taque do relógio da sala
a respiração ofegante e os vagidos insuportáveis –
depois um silêncio de morte
***
os teus olhos acendem-se
o sono nasce
enquanto a insónia morre
invadida pelo cansaço
agora posso sonhar contigo
num mundo diferente
***
os pássaros acordam
e eu
sem conseguir dormir
***
a esperança
adormece
solenemente
no casebre da colina
uma coruja
conta-nos histórias
de antigamente
quando o inverno
ainda se sentava
à lareira
dos nossos enigmáticos
devaneios
***
no beco
o som do violino esgadanhado
por um louco no seu desatino
***
a densidade do desalento
a opacidade do coração
os versos nascidos
instintivamente na canção
o ódio que nos prende à vida
e o assombro de sermos nós
os homicidas da realidade
desagua no murmúrio da água
que sustenta a raiz
de todos os desejos
***
há uma alma
em cada ser vivo –
recuso a melancia
***
oiço e não vejo
porque ver seria ouvir menos do que oiço
uma ópera desconhecida
a voz dos cantores
sopranos e tenores
e os acordes da orquestra
inundam-me a mente
não deixando lugar para mais nada
que me apoquente
ou angustie
***
vem pirilampo
canta-me nesta noite de breu
a tua luminosa canção
***
a luz filtrada
pelas copas
rasga o tronco nu
do camponês
desnudo e doirado
dorido e cansado
sem qualquer esperança
sem o fado
da sorte ou do azar
***
o prazer é um instante
envolto de angústia –
um casulo sem borboleta
***
a escadaria sem fim
o olhar dos traidores fascina
os operários que congregam edifícios nas cidades
uma maçã perdida numa das suas ruas sujas
o seu coração ainda bate
desprezado como as flores mortas
da varanda da casa vazia
***
as raízes do mundo
petrificadas
destruindo a vida
nos desertos
e extinguindo
a luz dos astros
***
a candeia apaga-se
entre vírgulas
caligrafadas ao frio
as mãos emergem
dos braços cruzados
como asas negras no branco da noite
esqueço-me de mim
humilho-me
permaneço no cais
reduzido a nada
lembro o meu pequeno quarto
e o corpo que deixou de existir
na união dos espíritos insanos
***
em conformidade com a minha vontade
deixo que o azul do céu me invada e
embale amorosamente até à exaustão
***
as flores do canteiro sul morrem no meu pensamento
a sua existência é frágil como a memória esmaecida
como júbilo de olhos turvos
o que nos lembra a efemeridade
desta passagem pelas criptas do tempo
***
o peito comprime-se à minha loucura
tenho dificuldade em respirar
custa-me pensar e apetece morrer
***
orvalho que goteja de bocas furiosas
as árvores suspensas ostentam os frutos flutuantes
em cada um de nós há um eremita
habitante do mundo infernal do desassossego
onde aberrações da erudição balizam fronteiras
da liberdade que só existe nos livros amarelecidos da estante de carvalho
a que apenas se limpa o pó
nada mais
***
a borboleta saiu do casulo
esvoaça liberta do passado
e precipita-se com júbilo
para a luz da morte
***
a árvore mantinha-se imóvel e indiferente
poisada num dos ramos morto e sem folhas
uma ave cantava a melodia da primavera
***
o sol queima as vísceras do eco
testemunho do medo infinito
lavrado no pátio dos claustros desaparecidos
o espectro do monge
silencioso na montanha que se debruça
vigia nas antigas ruínas
a planície inundada
por uma olvidada luz branca
profeta ou vidente
ervas viçosas crescem na campa
do último penitente
na lápide
senhor tem piedade de mim
***
uma pequena nuvem
atravessou o céu
enquanto eu adormecia
tendo por tecto o luar
e por leito
o meu próprio corpo
***
homens sem rosto no empedrado
uma ampulheta esvazia-se com rapidez
atabalhoadamente
o desmantelamento da história
alheia-se dos gemidos
nascidos de ventres fumegantes
doando os membros
às mãos do areal deserto e
do mar inerte
***
a voz gélida da estepe
no dorso do velho lobo
que se arrasta para a morte
***
as gárgulas estendem-se
pelas paredes rochosas
setenta e sete alimentam
a curiosidade patética
dos turistas bestificados
um padre negro
- brancos são muito poucos –
diz a segunda missa da manhã
trezentos e oitenta degraus
separam da terra
os setenta metros e
os treze mil e trezentos quilos
de ilusório misticismo
***
os nossos corpos de argila
envoltos pela voz da manhã
experimentavam em segredo
o êxtase dos antigos místicos
***
a saudade esfria o rumor intimista de uma alma esventrada
na ruela uma idosa ressequida chama a filha pelo nome
a adúltera sempre tão conforme aos seus impulsos
na terra nova
cerrando as mãos ao gelo
um dóri balança suavemente na cadência de umas poucas horas de calmaria
o pescador observa o mar cinzento
enquanto segura a linha que lhe magoa os dedos crispados
e sonha sonha com a mentira do amor ausente
***
o símbolo da liberdade
não és tu estátua fria e servil
nem tu bandeira falsa e frágil
és tu borboleta sem idade
***
aqui sentado nesta posição desconfortável
exibo a forma sublime de um cão magro sob o arco do céu
a água parada ao luar
fez serenar o parque que tem a marca do fim
a seiva da vida segreda aos campos
alados de penadas almas as virtudes do passado
como aquele rapaz que aparece e desaparece
na bruma terrífica do além
força misteriosa do que não existe
para além da razão cega e manca
***
não creio em mim
nesta ou naquela parte do meu ser
creio na existência do meu grito
***
o caminho das estrelas
no melhor vinho da última colheita
na mesa abunda o pão da vida
depois da travessia do oceano
com os pés em terra firme
todas as tormentas amainam
e o teu corpo intocado
dilui-se no meu desesperado
***
desânimo
dos versos
subjugados
das emoções
desencarnadas
dos desertos
suicidários
de cães
danados
***
ouvia-se o apelo dos primeiros botões de primavera
à beira do rio as noites revisitadas pelos amores de verão
um cavalo com rédeas de oiro flutuava sobre o luar que deslizava nas águas tépidas
uma luz ténue no casebre da ponte romana
alguém pede socorro uma voz abafada
nascida de um ventre exasperado
no clamor das últimas horas
***
silêncio
a doçura da solidão
***
os santos
não têm asas
têm túnicas
vegetais e
sandálias de raízes
por isso
são santos e
escarnecidos
***
o tempo das colheitas nasceu com um sorriso nos lábios dormentes
à sombra das árvores sentaram-se os trabalhadores
comendo um naco de dor e
bebendo o seu próprio suor
***
a sombra ergueu-se nua e perfeita
rastejando no caminho traiçoeiro
das ruas e vielas da cidade cinzenta
o calor de um abraço
a crueldade da servidão a dor
a humanidade de um simples beijo
bela é a erva calcada pelos trovadores e a alegria das raparigas que em ranchos colhem as urzes em flor
***
o pássaro o dono
a prisão
e queria que ele cantasse
que fosse feliz e gracioso
***
rosa-dos-ventos
a rosa que nunca se ergueu no horizonte
perfume rouco no limiar do silêncio
os deuses também dormem
um bando de patos selvagens cruza o deserto do céu
no descampado uma gazela observa-nos receosa
teme ser crucificada
o seu coração aflito adivinha a armadilha
enquanto o medo acorda num sobressalto
***
vieram do nada
envoltos nos ramos da discórdia
venceram o tempo
e
a origem das coisas
cultivadas
nas cinzas do passado
***
havia um eremita nas montanhas da aldeia
tinha dado o salto da fé
era uma criança que brincava com as aves e com os animais da floresta
falava aos arbustos de bagas vermelhas e colhia-as
às nuvens e às pedras amontoadas do casebre
ao frio e à neve
ao fogo nos dias de inverno e
ao riacho donde bebia nos dias de verão
tinha uma coroa feita de flores silvestres
um trono redondo de ervas secas
e um coração bordado a esperança
***
projecto-me no infinito
nas chuvas ácidas da eternidade
espantado pelas galáxias itinerantes
e pelos cometas que o nosso pequeno universo vomita
tudo tão real
tudo tão falso
tudo tão absurdo
***
a pele pálida
a dissimulação no olhar
que brilha no espelho embaciado
a indiferença
nos lábios avermelhados
já não és a mesma
***
uma flauta
canta a calúnia
benevolente
humilde
generosa
alheia à injustiça
das bocas famintas e odiosas
***
a maldição mística da insónia enovelada
em perversos pensamentos
na mansão
o tecto pintado
move-se à luz das velas
relâmpagos iluminam os trovões
que ecoam pelos cantos do aposento
o tempo apagou as recordações da infância
***
o vento da estepe
caminho contigo
canção da terra
e
desenho
uma linha indefinida
no simulado azul
do céu
***
nos jardins junto ao mar
os ossos
dos navegantes
imploram
pelo florescimento
da carne
***
disseste que vinhas
é tarde
adormeço por breves instantes
o vento passa
nos canaviais distantes
e a cada sobressalto
caio nos braços da eternidade
onde já saudade não existe
nem nasce
***
dizia-se que voltara do reino dos mortos
mas estivera morto desde sempre
no sem-sentido da rotina e da ambição
***
em torno da fábrica as cruas lamentações dos operários
a estatueta do jardim descuidado tinha séculos
sofrera os golpes da erosão das gerações passadas
as sebes por podar o fracasso de uma vida
naquela batalha pela sobrevivência apenas o canário do gabinete do administrador cantava
alheio à dor e ao mundo fracassado
***
repartimos o pão e o vinho
ofertámos um ao outro os nossos corações
como era belo o seu rosto
a chuva rolava pelos vidros das janelas
a flor iria transformar-se em fruto
as tempestades em bonanças
o amor em saudade
***
quando os homens morrem finalizam uma história de aprendizagem
ganham por direito divino um espírito sereno sem memórias e pesares
dormem sem créditos nem dívidas e não disseminam palavras inúteis
são copas de troncos mortos a florir em planícies intangíveis
***
outono o frio de inverno intempestivo
observo aquela pobre mãe
naquele vestido branco e puro
que a levou à sepultura
numa tarde fria e húmida
***
da varanda
nas noites de verão
iluminadas pela lua
víamos os túmulos
do pequeno cemitério
ladeado por
imponentes cedros
lá
jazem os nossos mortos
e já jazemos nós
***
nasce da alma
o desejo que me devora
teus olhos
no rosto lívido
estreitam o azul do céu
ao meu coração
***
quis ser marinheiro ou sou mas diferente
velho marinheiro com o seu cachimbo de cana
o olhar perdido no horizonte entre hálitos de fumo
navegar sem destino com ventos a favor
aterrar em ilhas perdidas com mulheres seminuas cor de bronze nas praias
florestas impenetráveis
a liberdade do alto
a maresia
melodia da proa a rasgar o azul
quis ser marinheiro alma plácida da liberdade
embalada pelas ondas de través num sono tranquilo
perfumado pelo odor das algas
agora não navego em mares de azul navego em mim
sem rumo ou porto de destino
***
quero estar só
neste sonho que me domina
ausência do mundo que me determina
ser o que sempre fui e serei –
cinzas e pó
em alma eterna
***