Os carros de combate, velhos carros da Escola Prática de Cavalaria de Santarém, passeiam-se nas ruas de Lisboa entre a multidão pasmada e aos guinchos, esfuziante como criança tresloucada. Chegara a democracia, esse bicho estranho alheio aos jardins Atlânticos.
Um cravo numa metralhadora.
"O povo unido jamais será vencido" – ouve-se desafinado no berreiro do Terreiro do Paço.
Um colunista brasileiro de seu nome Rubem Alves, afirma peremptório e corajosamente (no seu entender, e no nosso, já que de falta de coragem ninguém o poderá acusar) ser disso mesmo que tem medo, lembrando-nos as palavras de Al Berto no ano de 1992 em Coimbra, perante um auditório de estudantes que inviabilizavam a declamação dos seus poemas, por via de incómodo ruído de fundo:
"Eu não escrevo para idiotas!".
E numa análise curiosamente histórica, o cronista relembra-nos que em tempos idos era o santo nome de Deus invocadamente repetido como fundamento primordial da ordem política. Mas com a aposentação de Deus foi o povo medíocre, volúvel e não confiável que ocupou o Seu lugar.
E Deus sempre soube que o povo não é confiável (pelo menos é o que a Bíblia ensina, e porque o diz verdade deve ser...) e Al Berto sabe que o povo é idiota e eu sei que quanto mais janota mais sendeiro é.
Escreve o dito colunista:
"Na Bíblia, o povo e Deus andam sempre em direcções opostas.
Bastou que Moisés se distraísse na montanha para que o povo, na planície, se entregasse à adoração de um bezerro de ouro. Voltando das alturas, Moisés furioso quebrou as tábuas com os Dez Mandamentos.
E a história do profeta Oséias, homem apaixonado! O seu coração deleitava-se ao contemplar o rosto da mulher que amava! Mas ela tinha outras ideias. Amava a prostituição. Pulava de amante em amante enquanto o amor de Oséias pulava de perdão a perdão.
Até que ela o abandonou.
Passado muito tempo, Oséias perambulava solitário pelo mercado de escravos. E o que foi que viu?
Viu a sua amada sendo vendida como escrava.
Oséias não teve dúvidas. Comprou-a e disse: "Agora você será minha para sempre.".
Pois o profeta transformou a sua desdita amorosa numa parábola do amor de Deus.
Deus era o amante apaixonado. O povo era a prostituta. Ele amava a prostituta, mas sabia que ela não era confiável.
O povo preferia os falsos profetas aos verdadeiros, porque os falsos profetas lhe contavam mentiras. As mentiras são doces; a verdade é amarga.
Os políticos romanos sabiam que o povo se enrola com pão e circo.
No tempo dos romanos, o circo eram os cristãos sendo devorados pelos leões. E como o povo gostava de ver o sangue e ouvir os gritos! As coisas mudaram.
Os cristãos, de comida para os leões, transformaram-se em donos do circo.
O circo cristão era diferente: judeus, bruxas e hereges queimados na praça pública.
As praças ficavam apinhadas com o povo em festa, alegrando-se com o cheiro de churrasco e os gritos.
Reinhold Niebuhr, teólogo moral protestante, no seu livro "O Homem Moral e a Sociedade Imoral" observa que os indivíduos, isolados, têm consciência. São seres morais. Sentem-se "responsáveis" por aquilo que fazem. Mas quando passam a pertencer a um grupo, a razão é silenciada pelas emoções colectivas.
Indivíduos que, isoladamente, são incapazes de fazer mal a uma borboleta, se incorporados num grupo tornam-se capazes dos actos mais cruéis. Participam de linchamentos, são capazes de incendiar um índio adormecido e de arremessar uma bomba no meio de uma claque do clube rival.
Indivíduos são seres morais. Mas o povo não é moral. O povo é uma prostituta que se vende a baixo preço.
Seria maravilhoso que o povo agisse de forma racional, segundo a verdade e segundo os interesses da colectividade.
É sobre esse pressuposto que se constrói a democracia.
Mas uma das características do povo é a facilidade com que ele é enganado.
O povo é movido pelo poder das imagens e não pelo poder da razão.
Quem decide as eleições e a democracia são os produtores de imagens.
Os votos, nas eleições, dizem quem é o artista que produz as imagens mais sedutoras.
O povo não pensa. Somente os indivíduos pensam.
Mas o povo detesta os indivíduos que se recusam a ser assimilados à colectividade.
Nem Freud, nem Nietzsche e nem Jesus Cristo confiavam no povo.
Jesus foi crucificado pelo voto popular, que elegeu Barrabás.
Durante a revolução cultural, na China de Mao-Tse-Tung, o povo queimava violinos em nome da verdade proletária. Não sei que outras coisas o povo é capaz de queimar.
O nazismo era um movimento popular. O povo alemão amava o Führer.
O povo, unido, jamais será vencido!".
Mas, Rubem, vejamos: pode o "povo" alguma vez estar verdadeiramente unido? E se estiver unido, está-o em torno de quê ou de quem? Se sim, compreendo a tua inquietação; se não, a quem devemos temer? Ao "povo" ou à união de uma minoria governativa, esplendorosa e abastada, cercada por senhores feudais, poderosos, e por lacaios inumanos, um verdadeiro "polvo", que incendeia o coração agreste e brutal do "povo" em direcções absurdas?
O "povo" é uma criatura gigantesca e horrenda com o intestino grosso ligado ao cérebro, donde apenas brotam as ideias de merda que referes. O "povo" é incapaz de se organizar, desconhece a solidariedade e é cobarde.
O "polvo" é uma organização coesa, racional, enganadora e desumana.
É verdade, concordo contigo, amigo.
O "povo" não gosta de musica clássica, o "povo" odeia o silêncio e o autoconhecimento, exorciza a poesia, esconjura os pensadores.
Nunca leu Pessoa de quem apenas sabe chamar-se Fernando sentado lá para os lados do Chiado, pensa que Cesário Verde é uma espécie de arbusto, que Pessanha é uma doença, que o Cesariny joga a defesa esquerdo num clube italiano e o Agostinho da Silva (só por ser Silva) é dono de um supermercado, decerto na Amadora ou na Reboleira, enquanto que o Al Berto deve ser uma espécie de famigerado criminoso e bom amigo do Zé da Tarada.
O "povo" adora futebol, sabe tudo sobre os jogadores, a maioria verdadeiros anormais-gigantes-pés-de-barro, treinadores, tácticas; discute, zanga-se e sente-se importante no emblema asnático do seu clube.
Embebe-se de uma música burlesca, que tamborila incessante e estereotipadamente tal martelo hidráulico, o interior do crânio desfazendo-lhe irremediavelmente os neurónios ou das brejeiras canções de feira e romaria.
O "povo" segue atentamente as novelas e os concursos televisivos. Lê avidamente as revistas cor-de-rosa e sabe de cor as vidas dos que se expõem nessa vida social carnavalesca e de outras vidas alheias, para além de afinar a língua quotidianamente à escala da mesquinhez maior:
“A justiça portuguesa não é apenas cega. É surda, muda, coxa e marreca.
Portugal tem um défice de responsabilidade civil, criminal e moral muito maior do que o seu défice financeiro, e nenhum português se preocupa com isso, apesar de pagar os custos da morosidade, do secretismo, do encobrimento, do compadrio e da corrupção.”. Não sou eu que o digo, é a Clara Ferreira Alves que o escreve, sendo o dito "povo" na sua perspectiva, um público acrítico, burro e embrutecido.
Um "povo" que se endividou por ter "fome da sobremesa alheia". Para ter um carro com mais cavalos (ou mais ou menos bestas, o que da procriação depende...) do que o dos vizinhos (aqueles pindéricos!...), uma residência (casa é coisa de pobre!) num condomínio de luxo com 4 casas de banho (porque quem muito come, muito o há-de cagar...), 5 plasmas para que cada um veja o seu concurso, novela, e futebol (o futebol não pode faltar; é como o cagar), os filhos cheios de letras da moda da cabeça até aos pés (passando pelo cu, claro está) e de consolas e computadores para os jogos e ver as gajas nuas (não esquecendo o livro das caras, um face-qualquer-coisa tão grato às escapadelas, engates e pares de cornos).
E neste corre-corre do endividamento, como escreveu assisado o advogado Barreiros, "tudo quanto era vedeta deu a cara, sendo actor, as pernas, sendo futebolista, ou o que vocês sabem, sendo o que vocês adivinham, para aconselhar-nos a ir àquele Balcão bancário buscar dinheiro, vendermo-nos ao dinheiro, enforcarmo-nos na figueira infernal do dinheiro. Satanás ria. O Inferno começava na terra.", muito especialmente nos PIGS.
E a Europa vai caindo e o "povo" que come o que não produz, dança.
"E a puta dança", diria o Tony Botto (julgo que se transferiu para o Real Madrid como preceptor...)
Como dizes, Rubem, o povo que amas não é uma realidade, é uma esperança. O povo que amas nunca estará unido em nada que valha verdadeiramente a pena. O perigo não vem do "povo", mas do "polvo".
De qualquer modo o POVO que eu amo não é o "povo", mas o desvalido conjunto dos pobres, dos oprimidos e desiludidos deste planeta. E é o "polvo" que abomino. O outro "povo", o da tua esperança, é-me indiferente.
Mas, o "polvo" unido jamais será vencido. Todos o sabemos sem que o queiramos enfrentar. Como é difícil pegar pelos cornos a realidade...E como eu sinto saudades dos antigos caçadores de polvos...
A puta dança e o Inferno fica, que do Purgatório não há vista. Veio para ficar e não há válida mezinha que o possa exterminar. A tua esperança, amigo Rubem, é uma ilusão olfactiva; merda há-de ser sempre merda e por muito que nos esforcemos nunca será sabão de cheiro.
Mas não te quedes triste, que neste fado o "povo" tem o que merece.
Assim, quando eu me ausentar, para o cimo da montanha, para um mosteiro ou para o meio do mar, por favor,
Deixem-me estar!