Download dos textos de ANTIPOESIA ou a insustentável arte da falsa erudição em –
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mais uma manhã tardia a admirar os compradores do mercado cinzento
neblina matinal e frio húmido
encostados às paredes marmóreas e coçadas do café bugio íamos alvorecendo lentamente entre monossílabos e escassos ditos arrojados ao encontro das janelas ao abandono cerradas
alguém articulou talvez uma ou duas frases esbranquiçadas acerca da morte como quem refere pernas esbeltas em curtas saias rodadas a esvoaçar à brisa favorável ou o verde das hortaliças frescas e asseadas ou o aroma do peixe de olhos esbugalhados das bancadas do primeiro piso a devastar as narinas das jovens criadas violadas pelo eflúvio do tabu e pela sudação sováquica dos amos excitados à vista de pasto tenro
bancas pétreas e algentes
do pão nosso de cada dia
para uns
e da abastança para outro tipo de gente
convivíamos quase quotidianamente com os carros fúnebres e lúgubres ataúdes gatos-pingados viúvas de branca face em invólucro negro a desmaiar ao som do requiem de mozart mães e pais de jovens destroçados em campanha nacionalista do sem-sentido ornados por bandeiras verdes e vermelhas homens de farpela preta consumidos por cigarros sucessivos
- naquele tempo era de homem fumar e esfumaçar não matava –
noite fora na capela da misericórdia com o deleitável jardim envolvente antecâmara da viajem gratuita para o paraíso que morava uma rua acima
aí havíamos brincado com pobres e ricos de coloridos bibes às guerras e às mortes
reinando sobre todos os mistérios os tempos haviam mudado as mortes eram fiel acompanhamento das horas a morrer uns iriam para frança ou diziam querer ir para não abalar para o quente inferno do ultramar outros a querer voluntariamente partir perseguindo uma cruz de guerra de 1.ª classe ou podendo ser a torre espada com palma honrada com transmissão televisiva a 10 de junho
ele era como todos nós dezasseis anos talvez
eis que magistralmente diz –
já posso morrer pouco me importa não me assusta a dor posso morrer já fiz amor
olhámo-lo assim como que dormentes fitei-o nos olhos negros luzentes alcancei em parte o leito de sua alma não queria morrer sem o fazer sem construir a cúpula do júbilo e do prazer do modo como o fizera poderia partir sem medo sem condecorações
passaram-se anos tantos anos desvarios erros pecado luxúria delírios lascívia e desacertos agora entendo-o
para viver é urgente amar
só aquele que ama vive
e existe sempre sem cessar
viver é viver de amor
o amor presente
o amor sempre
e assim
viver para amar
eternamente
as almas descem constantemente ao inferno da sua negritude
a viajem ao inferno dos suicidas nostálgicos tem a hora marcada pela danação sorvida nas vigílias da inquietação e está destinada aos que do catecismo que guardaram de crianças só conseguem ver as ilustrações das palavras expurgadas
almas excomungadas sem arte para pintar a vida de azul e rosa
entretanto deitas-te comigo no meu corpo sorvido de azul vazio como a desolação da incerteza
o sono arroja-se no espaço da insónia e há uma dádiva furtiva em cada gesto em cada cigarro que se acende
já não uso isqueiro queimei as fotografias no lusco-fusco do passado
fósforos inacessíveis ao medo
toda a obra devora o presente nos lençóis de todos os mares
de braços abertos o quarto repousa canibaliza-se e na janela onde está a linha do horizonte secou o olhar do teu corpo intocado
uma gaivota sobrevoa-me na madrugada enquanto disserto na minha incapacidade para amar com a paixão que amedronta os olhares acutilantes dos videntes
ponho alguns objectos sem significado no canto da sala
anoto que hoje é domingo
e sem saber
sem o querer
sonho contigo
encontro-te no retrato de um pintor antigo e à luz das velas planeio as tuas formas passos e afectos na escrivaninha de pau-brasil uma folha com a letra a
que mais hei-de eu escrever
que outras letras a poderão seguir
se o meu querer só existe no teu
pálpebras de seda no peitoril avistam um corpo nu com as medidas da escuridão
a leste a lua impávida obscurece
o cabelo maduro nas costas descuidadas
a sombra metálica de uma cintura
a carne inundada do brilho
exausto da orfandade
da neblina incensada de sinais nascidos nas constelações de outono duas folhas caem no teu vestido da tua boca um clarão emudece as palavras enquanto o leite corre dos teus deslumbrados seios
o vento vem do mar e traz-me o nome que deixaste na penumbra
hábito vestido de promessas nuas em passos iridescentes
a noite da adolescência desenrola-se nas palavras líquidas do envelhecimento nas flores murchas que flutuam no interior da melancolia dos animais aturdidos pela poesia e da memória arrastada pelas correntes
a seiva da alba
enumera as ilhas
que percorreste
alisadas pelos teus cabelos
e pelos sobejos da morte
nessa tua inocência excelsa criança olha-me de olhos rasgados por divino arado lavrados
olha-me nesses olhos amendoados cobre os teu seios carne de veludo num estudo de perfeição cinzelados e que deus tão gentilmente te deu
olha-me a mim que te amo e não te quero
não temas que pela carne não desespero
olha-me
não olhes mais ninguém
porque a olhos assim
só eu quero bem
o teu sorriso é libertador como o mês de abril que se abre a misteriosas flores
não reconheço os teus defeitos as raízes obscuras do pecado a misericórdia da tua boca errante
sei que estás confiante e indiferente à peçonha dos homens-pedra e até às sombras do mal
passei por tantas experiências
as luzes cruzavam-se no coração do asfalto enquanto mulheres seminuas deslizavam na calçada enregelada
ofídias natas
o sangue fervente das víboras dos becos orgíacos contaminou-me arruinou os castelos de cartas soprados por ventos macabros que a boémia gera de dentro para fora
terral dos monstros furibundos dos assexuados dos loucos ensopados em esponjas de vinagre
roupagens esfarrapadas da novíssima realeza
uma garina suada na quinta porta da última esquina coçada da avenida
poiso milenar do prazer na anunciação de viagem ao purgatório das reses indefesas
o meu olhar cansado mas penetrante como adaga rasgava as fêmeas em grupo como pombos estagnados aos pés da sé
lembro o dia da aterragem no aeroporto militar vindo da guerra
um garoto vestido de azul pronto a sorver a vida numa mesa de prata com os três talheres do marfim pecaminoso
o adeus definitivo às praias e densas florestas equatoriais às mestiças esmeralda e palmeirais
um vazio do coração na esperança das mais vivas e libidinosas urgências
o mar da dor não tem vento o vento do mar azul a dobrar cabos e alcantis verdes
nas noites intermináveis das escadas em derribamento dos pântanos que escorrem para as valetas das marés fazíamos um barco de papel com velas de era-uma-vez
havia carros de bombeiros com os rostos encobertos por momentos de silêncio havia bocas a rolar na água encostada aos mortos cegos pela memória
meia-noite o relógio toca no mármore nu
limpo
na poeira iluminada por fios de luz da cidade prisioneira das badaladas comprimidas e o resto da existência a medo de joelhos em penitência atormentada por flechas de luz insuportável dói na insónia do teu ombro ausente
partira
a dama desconhecida de longas tranças sem trocar palavras ou olhares com ninguém
corpo de deusa dos deuses pertença
ficou-nos a sua imagem áurea de pele prateada ao vento e olhar distante o que nos é demais ou já é bastante
como numa pintura uma pintura é um personagem que entra em cena e desliza no corpo do rio a jusante é tinta é palavra é semifusa tela pensante que diz nos círculos nas linhas nas pinceladas das faixas brancas nas cores vibrantes quentes frias esmaecidas nas jóias incrustadas rubis e diamantes
as palavras e as emoções
mais verdadeiras
dos verdadeiros amantes
se desta vida parto depois de tantos trabalhos de injustiças e desilusões farto cansado de tantos escolhos e se nada deixo que valha lembra-te amada do amar que naquela noite de luar fez vibrar o mar da palha
nesse tejo dos amantes que perdidos de amor içam as velas dos navegantes nas almas em flor e se eu pela vida esquecido te olhar dos confins do céu acredita que não há olvido nem olhar como o meu
que hajam cantigas na eira de estrelas amealhadas pelo vento norte
trazei-me aquela jovem de tenra folhagem cabelos de trepadeira olhos de amêndoa ao luar cerejeira a florir
trazei-ma na barca do amor do rio da saudade
sinto-me envelhecer quero dormir sonhar amar antes que tudo finde me vá e o mundo acabe
festa na aldeia o coreto de solho e barrotes toca desconcertado
há vinho um bombo à distância e frango assado
zé ferreira de cabeça rachada sangue vivo na camisa
a mulher não o queria a dançar agarrado àquela rapariga
tu também lá estavas e no telheiro escurecido trocámos beijos enamorados que por serem os primeiros nunca serão esquecidos
são como os rios que correm nas palavras secas
uma multidão apressa-se a roer pedaços de horas ridicularizadas pelo cataclismo dos pulsos
uns lábios grossos abrem-se no sorriso dos passos incertos
ter-te assim com a ternura de uma antiga guerra à beira-mar
na mesa colam-se os copos vazios e o vidro fosco arrasta-se pelos raios de sol onde acostam embarcações tais facas de salteadores divinos
hoje haverá vida volúpia transcendência e aquela gigantesca paciência dos amantes liquefeitos
um astro nos varais do terraço cingido a orquídeas
percorro-o enquanto aguardo sem que o frio ocupe o espaço dos meus nervos a tua imagem rompendo a noite
rasgando o silêncio o canto exacto da solidão a abundância do desassossego e os gestos hercúleos das nuvens migrantes
creio e não creio em deus
por ora não penso nisso
penso no fracasso que reluz nas minhas entranhas
creio em ti
há luzes no tejo e num outro terraço a roupa estendida
lençóis suados dentro dos corpos enviesados
querem que fale de amor
todos os poetas e seus aprendizes devem falar do amor salvífico beatificante sereno como as colinas da antiguidade
o amor dos poetas é a masturbação dos adolescentes engolfados nos seus quartos onde as respirações se aceleram e os ventos se excedem
os poetas mentem porque a mentira é bela e a ilusão uma pauta melodiosa em clave de sol radioso
escrevem nas linhas brancas do papel encardido o que não sentem na raiz do sexo
ferem a música a arte da vida o sentido do orgasmo o nexo dos sentidos
os poetas são o lodo da verdade
os falsários da felicidade
o sol espreita nas nuvens esfarrapadas
varre-me a face aquece-me o coração
se dela tenho saudades
tenho
de nada me vale mentir
não a escuto não a vejo
tenho-as como da minha infância as tenho
se ainda a amo
não há longe nem distância
o vento chama-me ao rio ao lodo das margens secretas onde braço com ombro te farei insondáveis confidências
no vaivém da maré o rio chama-me pelo nome
um mergulhador emerge sem rumor sem notícias do corpo calcinado entre pedras enredadas por troncos imolados cicatrizes negras de tempos passados
nas margens com um só beijo
aprendera a palavra amor
o mergulhador foi-se e eu sorrio de todas as alegrias sonantes que libertam a terra escura dos seus algozes de todos os beijos semeados em terreno fértil e seguro como trigo nas searas e sangue nos recém-nascidos e há os mistérios nos ramos dos salgueiros assombros amorosos chorados ao luar de agosto
no rio na antiga ponte de pedra surda
aprendi numa vertigem a palavra morte
a ti te escolho corpo e alma na lonjura e recordação constante
tu a que estás perto e não desejo para ti guardo o esquecimento
cabelos entrançados a oiro e lírios ornados bocas rosa de meus pecados sois vós os meus únicos vícios
sentara-se numa pedra de granito fosco aquecido pelo sol ardente do pensamento
a mente divagava pelos corpos macios e expostos na colina
a carne ansiava pelas sedas a esvoaçar no oriente lânguido efervescente e pelos palácios suspensos de fino mármore
os prazeres do leite derramado em coxas vivas e do néctar sulfuroso das taças sem fim esmagavam cruéis toda a ânsia de libertação no sentido da existência
tarde o compreendeu cometia um crime contra si mesmo era a sua perda e destruição
o mais calamitoso dos delitos
quero construir uma cabana de troncos onde poisem mochos em torrentes sem fim onde meu amor pesque nos fundões nos baixios e o aroma do vinho novo como nova é a hora paga com moeda de sangue a ilusão desvanecida nos ribeiros de mansas águas a escarnecer os grãos de pão no vale semeados pela amada sem nome
tinha algo para te dizer
não o disse não te contei a minha orgíaca aventura de corpo fatigado nascido na flor do mar
o outono sossegado dir-te-á na paz dos ramos molhados que os dias contados não poupam os males de minha alma pela saudade moldados
o sonho tem avenidas próprias no rumo incógnito da palavra ilusão o sonho tem asas e um puxador que o abre a meio do sono intranquilo e revoltoso
o sonho levava-me ao altar do afago na derrota bem ou mal estimada o sonho entristecia-me
faltava-lhe a realidade dum embate de um olhar aos pés do sacrário de lábios em lábios esmagados
promessas de amor em corações perdidos palavras vis na penumbra de mãos amigas com tanto para dar
o leito perfumado velas incendiadas camisa de cetim bordada toalha de linho à cabeceira e palavras ingénuas na frescura de um sorriso
dias de pranto dias do mal a medir os erros que se esquecem nas frases escritas em ramos de cedro que o lume irá queimar
canas aos céus rondam o sepulcro com arcos flechas e trevo florido onde os veados correm fugindo ao teu olhar
estertor esmagado pelo peso dessa dor que na morte é recompensa de quem tristeza ganha e infelicidade não pode mudar
promessas vãs
em vida esguia
na pradaria um bisonte desmarcado juba luxuriante barba exuberante ombros altos como possante homem das estepes nas omoplatas armas letais
afastara-se da manada apesar de ser macho dominante o mundo a seus pés
cavalo branco seguia-o nas terras de caça afastando-se do acampamento de verão
na tenda à porta triste e sofrida sua amante ave vermelha esperava
o búfalo alado voava voava
com cavalo branco esgotado
passaram anos anos e anos a cavalgar em manta gasta numa mão a imagem do bisonte na outra a da amante
fora vencido
queria voltar
ao lume doce da sua tenda
aos braços de sua amada
nunca conseguiu encontrar o caminho de regresso
morreria de saudade a florescer no coração
com ave vermelha a definhar em choro de dor
já não era cavalo branco
o grande guerreiro
o caçador
seria eternamente
saudades de amor
e seu nome
saudades sempre
ó vento triste como eu sem mulher nem amante duradoura
alma cansada da mudança de muitos amores com enfado modelados
nas serras as cores pintadas as fontes claras como vidros em espelho laqueadas os cabelos a esvoaçar transparentes
uma mulher outra e outra estátuas vivas da volúpia a abrasar a neve leve e suavemente
vento de muitos amores meus teus até que a morte nos apague e acenda porque a brisa que ofusca a luz também a anima
quero uma torre
altaneira
de grandes pedras armada
com janelas
para o céu viradas
onde só entre
quem sentir e conhecer
a palavra dor
e também
a emoção do amor
e se não houver quem as sinta
quem delas nada souber
que então
não entre ninguém
era inocente trazia-o preso por um beijo quente oferecido na intimidade do rosto
funda verdade no dia da ternura incircunciso
ei-la no seu voo de falcão
de amor ninguém a tomaria arredondada rolava no seu coração
lá se vai um amante outro e um outro penas semeadas na noite ampliada de planícies em flor
um ano e um dia chegaram com o som da flauta dor que a alma toca numa única nota
a vida entristecia-a agora megera incontrolada a quem ninguém um beijo dava
chamaste-me irmão baixinho no giestal do nosso coração fechar os olhos devagar a adormecer a colina terra de rosas e jasmim e vi-te bela corpo de vinho e pão em humilde vestido de chita debruçada no lago graça das fontes abertas sobre a brisa lânguido beijo sombrio em tarde doirada
sol suave a aguardar
o silêncio do luar
construíra castelos em ruas ermas torres nos atalhos ermidas nos outeiros com a alma em cinza dolente pela atroz ausência da para sempre bem-amada de olhar enlouquecido percorria as veredas melancólicas da saudade mortal procurara-a nas areias doiradas de inóspitos desertos nos jardins em flor nas florestas virgens nunca antes por humanos visitadas mosteiros e conventos
ela o fulgor da aurora deixara no infinito a sua sombra a benção de seu perfume na morte penitente do riso ele ficara na penumbra do perfil altaneiro a gelar a imagem do sonho desfeito
apoiado na cruz da agonia
resineiro sem seiva em noite escura alheia ao luar onde estará o colmado de sua amada
os seus seios nesta hora exânime serão a imagem em chamas de seu coração onde estará o colmado
que deus lhe valha no dédalo cruel antes que ela seja fogo e cinza
envelheço e à noite sinto saudades estupidamente da mocidade dos amores juvenis impulsivas paixões
triste penso que se voltasse a amar uma boca rosa e breve com milhões de beijos hoje a teria ainda porque a boca de uma mulher nunca deixa de ser bela
sonho que voltas que o amor retorna nos teus braços brancos que o meu olhar vagueia dolente no teu corpo
as gralhas ao crepúsculo anunciam a tua vinda por caminho rasgado nos abismos do mar a estender-se na longa e infinda estrada do céu onde se não te encontrar sempre te verei em noites de luar
levanto-me e vou ao terraço o frio geme nas águas do rio e há crisântemos nas luzes de navegação das embarcações suadas
penso nas paixões de outrora no tempo em que nos olhávamos nas tardes rubras numa realidade sem fragmentos passo os dedos pelos meus lábios ressequidos e por momentos sinto as bocas apaixonadas e silentes de todas as mulheres
um gosto salgado percorre-me as entranhas
na nostalgia dos insectos que tacteiam a epiderme indiferentes ao labirinto do corpo sofrido
não esperava a tua imagem o dia curvo sulcado no círio da algazarra não fazia prever a sinuosa ilusão do teu corpo intocado
ao fim da tarde nos centros comerciais as mulheres passeiam-se em frias canções como roseiras bravas poisam os passos vaginais na penumbra da iluminação artificial equilibradas por saltos ruidosos e bruscos
são como símbolos expostos nas mesas da consoada aos quais beijamos os ombros nus de cítaras encantadas cardumes gaseificados na estranha imagem do amor
lá longe no fundo do corredor de óculos escuros um predador e aquela virgem esplendorosa que faz tremer o pensamento delicia-se com um cachorro em exposição
os jardins das fábulas arquejam na desarrumação dos desejos a virgem acocorada ergue-se incrustada aos olhares simiescos da voragem
olha-nos intacta na sua carne rosada riqueza de corpo intocado os dedos trémulos entrelaçam-se no bosque que se veste de esperança e perdição
o seu dia virá
irradiando labaredas
e sangue
e desaparecerá da tela grotesca
a virgem desejada
sento-me à beira da cama que ladeia o rosto da aridez incendiado pelas visões de veludo
procuro-te
o eco dos papéis soltos pulsa na avenida deserta
o corpo estremece propício à embriaguez na margem do cais imobilizado pelo odor da cidade deixo que a lâmina de aço faça maliciosamente o seu trabalho no sepulcro da saudade
ao anoitecer
quando as vozes morrerem
saberei a verdade
tempo e amor rareiam na concisão da vida
época de incerteza
a noite é minha perdoem-me não cruzem displicentes a vereda de quem pelo suor e fadiga lavra o seu destino
a alma se consumida pela vileza do mundo não acolhe a eternidade
compreender em altura que meia-noite é meia-vida
perdida a hora
perdida a vida
candeia que alumia sem que veja o que se esconde e o que se deveria ocultar na escuridão da alma vazia torpeza do que vegeta no esterco da evolução
abundam os iníquos e o mundo dos humanos é a imagem espelhada exacta de mil e um demónios
jerusalém esquadrinhada e desocupada
como é vã a ambição vertida no palácio dos espelhos disformes no fim nada resta e a vaidade esboroa-se em odiosas cinzas negras
noites não são sono
são alegria sem fim
sem cansaço em mim
umas vezes atento
outras mergulhado
em doce letargia
dispenso companhia
renúncia amorosa de quem sente em mundo menor um amor maior
ventura silente de peregrino tardio
fiquem-se com vossos projectos ilusões desejos agonias eu quedar-me-ei assim só probo e desacompanhado do que é mundano do que tenho e tinha transmutando a cada passo a noite em dia sem pressa nem demora sem hora
a noite é minha
se é hoje que partes leva contigo a minha tristeza e ao chegar não a guardes deita-a ao mar nessa beleza que não amealha mágoa ou saudade porque a vida de quem ama é mudança e viver de amor só se vive em liberdade mesmo que nada reste da esperança
nunca os anos são perdidos e os amores desperdiçados no terno coração dos amantes porque há sempre um pedaço do amor passado lembrado em vívidos instantes
barreiras azuis debruadas a marfim avelhentado
beethoven apura a diminuta orquestra no canto do salão purpureado
um pagode de madeira dourada aformoseia a porta das traseiras um flautim ouve-se ao longe nas suas notas agudas comprime-se o coração a felicidade do novo veleiro oceânico na doca do bom sucesso a infelicidade da partida angustiosas luzes no firmamento pestanejam
quem estará a bordo ao findar da madrugada
quem estiver não vai voltar farol a abalroar a imensidade do abismo com os seus dedos prateados
e para quê
há um tempo de partida e outro de chegada
e o reencontro é mais doloroso do que a separação nos dias que velozes se ausentam
uma embarcação ligeira faz-se ao mar decerto pescadores
ansiedade desta noite
sem princípio nem fim
com lentidão
avolumam-se vorazes
saudades
dor
lágrimas
nenhuma oração te irá trazer
nem súplica nos fará reviver
os dias esmeralda do remanso
a arar incessante o amor
aguardarei pela madrugada cansaço deitado ao lado do corpo em chagas no orvalho matinal ressoará a tua voz
ouvirei o ribombar dos motores irei sentir o sono dos viajantes com as cabeças vazias tombadas nas asas cinzentas as mantas as almofadas o enfado
a alma constrange-se o ventre dói a escuridão não se dissolve
nada tem sentido para além da reclusão sentido que se perde nos ponteiros do relógio anacrónico das gerações
tudo procria o véu amargo da ilusão
árvores que ardem na floresta jasmins que murcham nos jardins gaivotas que planam em terra eiras de raparigas desertas
coração do temporal
sudoeste de tempestade espiritual melancolia nas nuvens cortadas pelo aço da ausência
o que é que me irá trazer o dia de amanhã
que importa se alegria se tristeza vida ou morte se depois da borrasca a calmaria na demência da solidão
vida nas lajes polidas da eterna estação dos deuses embriagados
um movimento surdo arrasta-se penoso na mente
que interessa ou pode interessar o corpo quando o espírito se queda doente
o sono tarda movimento contrário aos ponteiros corroídos pela maresia para além dos muros do terraço o tejo sobrevoado invenções demoníacas da lonjura máquinas infernais do apartamento
por ti já não clamo
para que inventaste tu o amor deus de moisés mirra e aloés esbanjado na corrente da maré padecimento dos que no ventre da sua mãe juraram não voltar a renascer
não voltarás
que importa se já vivemos um presente um instante transmutado em eternidade
a manhã desperta no seio de uma fadiga abençoada beija as águas amorosamente
destino indelével de tintureiros oceânicos
na barra um cargueiro para onde irá
porque não me leva a mim triste marinheiro
levanta-se uma brisa de leste o horizonte clareia o espaço macio o sol nascente te veste de espuma e luz acaricia teu regaço leva-te para onde a lua é quente as águas cálidas e brilhantes como pedras preciosas
diamantes
eu sou a sarça que seca o cedro do líbano pelo lenhador despedaçado o que sabe que tudo é assim e assim deve ser que o tempo mata o impermanente deixando em cada amante uma semente que só germina quando a pena abunda e é afectuosamente embargada pelo sémen da mente
que assim se impõe que seja natural tão natural como o amor e a morte quando os amantes tendo o mundo por tálamo se sintam agora e sempre em sua eterna mansão
e tenham no seu opressivo grito
a verdade de que o amor é real
a cada instante e no último hálito
nas caves negras dos palácios verde-orgíacos derrama-se sangue e esperma
o espaço e o tempo desposam amores mortais
uma ave índigo voa em círculos imperfeitos
amontoam-se leitos na escuridão
carnes brancas pretas mestiças
bocas escancaradas a rogar o líquido vital
lá fora a tempestade parece não ter fim
o vento estremece o roseiral daninho a chuva inunda a terra do caminho ladeado por buchos-anões os trovões assustam o sono das crianças que dormem alheias ao temporais os relâmpagos aquecem o ar
na cave escura faz-se de tudo
e chamam-lhe amar
caminhámos com as mãos nos restolhos do pensamento escutámos o ruído das facas que rasgam a carne dos inocentes
sede de beijos que se escondem no ventre do tempo pintado com uma chuva de cores
alizarina naufrágio púrpura com a ilha celeste no campanário do horizonte
pelas brechas do telhado de colmo espreita um corvo pensativo reservado
pobre do penitente transfigurado em sonho de vida piloto errante no mês em que as tempestades de lembranças se vazam nas fontes translúcidas
uma ponte romana
a ponta dos teus dedos toca a ponta dos meus como se escrevêssemos uma carta de um longínquo país para um outro mais longínquo ainda
palavras-mariposas
letras nuas nesse manto de pura lã
como tu
o amor perdura poderia escrever-te com a afeição dos meus lábios
ofício de amor em que estou só
as lucernas ardem e há luzes nas sinagogas folhas de trevo por pisar
improviso novas linhas na salamandra acesa
sentirás que te olho com aquele olhar que perdeu todos os seus poderes
vozes e árvores milenares comprimem-se no alto dos mastros
o sol da noite arrasta-me para os distantes espaços da dolência
um cântico purpúreo varre a terra vento solitário nas mãos frias da madrugada coalhada
uma ilha deserta na vida de todas as coisas
uma estria de morte percorre a pele de um novo equinócio
como sempre sem jeito para o negócio
gasto-me no que tenho o toque suavizado das teclas no piano sopradas pela mão esquerda do diabo e a angústia a reluzir nas alturas
serão assim o resto dos meus dias
o cosmopolitismo da palidez na carta que te enviei
recebe-a
é a minha derradeira palavra
tu que abandonaste esta terra no mais secreto de todos os mistérios recebe-a
só no interior da flor que do meu peito jorra encontrarás a resposta negada aos vivos e que aos mortos é dada
imagino-me de azul no laranjal as mãos cruzadas no peito o silêncio das nebulosas na brisa redonda do ribeiro choroso
a praça dormia nas lágrimas prateadas da cruz melodiosa dos ecos trinados
sombras serradas pelas estrelas nos bolsos de mendigos gastos
os pássaros ocultavam suas cabeças como velhos soldados de máscaras de vidro sujas baças coçadas e medrosas
ninfas de cetim em gemidos atravancavam as frestas dos muros e as arestas do meu coração ornado por mil e um louros
o céu nomeou-se à terra no remanso das águas virulentas a mais bela de todas as mulheres incrustada a prata e oiro desceu o rio amarelo numa barca
um cravo encarnado em alto promontório demarcava o paraíso das crianças por baptizar cana esguia da calma ilha de vales secos
nos ventos a mensagem de deuses esculpidos no espírito dos homens
música golpeada por espadas de dois gumes o filho do viajante revolve a luxúria
fonte que chora a penúria do lugar precipício sem início torreão de todas as tribos bárbaras confundidas nas vozes dos pastores
o fosso dos senhores arranca-nos os olhos fumegantes
enquanto mãos e bocas ardem em instantes
diante de ti onda em rebentação me ajoelho
nos céus vejo santa bárbara em cada trovão entrado pelo ferrolho da noite
naufraga um diadema na fronte da que partiu
ditoso é quem parte
destino aziago de quem fica
o dia leva a noite nada há como dantes sonhos de glória fama das cidades enigmas desvendados por filósofos displicentes
na rua pés e cabeças de porcelana
os descobridores de abismos celebram os seus feitos enquanto na quinta hora o poeta se retira no dó de si
já não se ouvem sons celestiais nem os cantos que rumavam de oriente para ocidente nas noites estreladas nos nossos dedos vitrais de cores vivas na nossa mente rumor das ondas entristecidas como vosso olhar flor rubra desistente do mundo e dessa fé que aniquila a magia do luar tão taciturno e contemplativo na nervura dos seus raios que nada assim vistes nesta erma negrura onde não cabe a palavra amar
o regresso das aves nocturnas à mancha esverdeada do testemunho dos infiéis o sol cai no mundo dos homens entre placas de mármore carregadas de distantes e altaneiras montanhas
ela esperava-o naquela estação cinzenta e fria adornada a mendigos e ouriços solitários na vastidão do desejo o lótus encarnado e entumecido agitava-se no fumo branco de uma lágrima
ah as luzes naquele mar imenso da planície ribatejana sonho de um orgasmo com ramos crescentes
era impossível descrever a ânsia primaveril do coração submergido nas longas noites de incenso devastado o beijo do encontro já possuía a essência da peçonha de todas as partidas
árvores verdes brotavam das searas sumidas no êxtase oculto do biombo lacado
um ceptro adocicado modelou a escuridão de seu corpo incendiado
na alcova um pássaro gigante
um enlevo da noite passada perdura na humidade salobra do riacho de verão
as horas crescem no tecto espelhado e os pensamentos são botões por desabrochar num qualquer dia de primavera
a luz das velas as sombras entumecidas o terraço dos corações afogados em fumo de incenso tudo como num sonho assombrado
o lótus encarnado estremece na esmeralda pendente do alvorecer
há um caminho deserto para cada coração solitário
o amor não a palavra mas o acto o grito o gesto deveria ser uma pedra lavrada como aquela casa azulada na colina arremessá-la-ia longe com a força ingénua da criança que há em mim nos momentos audazes e felizes e nunca a iria procurar procuraria outra e outra e outro tanto noutra que lançaria ainda mais longe na adolescência do sexo larvar na utopia da paixão e no coração incandescente e fascinante da ilusão primigénia
pedra a poisar nos arbustos selvagens em silvados intransponíveis nos sôfregos matagais
por ali ficaria ao som dos madrigais espiando amantes furtivos noivos cativos e sem bulir ouviria as palavras amenas de curta vida e vasta esperança
na caverna negra dos tempos arde o fogo primordial
sombras bailam nas rochas firmes como seios intocados
dos veios subterrâneos corre o sémen do ser prazer de sangue novo e quente recolhido no odor dos freixos anseios doirados e incriados do nada nascidos
a neve gela na floresta virginal correm os lobos famintos predadores da lascívia animal
o homem nu nas peles ocres do inverno sonha com gazelas e veados e na alma lisa de pedra por talhar desenha o primeiro nu sem tela sem sais de prata nas pedras salpicadas de cores exaustas sabendo que amar se inicia com um lânguido olhar
desejo da carne
do coração primitivo
tão longínquo à razão
e anela
truta em pedra lavada pela torrente das sensações inexplicáveis o corpo nu que desde o alvorecer aguarda o despertar de quem só ama e caça num fogo que jamais se apaga
não és uma
és múltipla como o rio grande que beija furiosamente o cais ferido pelo movimento eternal das aves nocturnas
mistério infernal de quem quer que uma seja a que tantas é
na espreguiçadeira do quotidiano renascido nos gemidos abafados por lustres em chamas
não és uma és tantas e eu quero-te uma a uma no frémito dos beijos molhados a maresia no amplexo dos corpos desdobráveis em prazeres viciosos do júbilo da morte das tardes de névoa obscena quero-te para que possa tocar em cada crepúsculo veneziano um dorso quente e diferente quero-te em cada dia na luz sombria ano do dragão vermelho
quero-te ainda que teu olhar
de mim esteja ausente
vieram as trevas cobrir as fontes do estio secaram os rios caudalosos da esperança
ó liberdade ferida de morte desordem nascente de choro por curar
passara ano e dia e o corpo sombrio afogava-se na disforme hora da desolação
a porta aberta ao amor exalado por nuvens térreas
o sono primaveril é sempre mais curto propício ao frémito dos músculos lisos
feliz é o amante que vive com o sono ao lado penetrando a noite com a espada sacrificial
teu corpo regozija-se no meu em longas penetrações seguidas noite a violar os vales de breu com tuas coxas ainda húmidas
amante sem sono e fadiga num assim libidinoso movimento de sublime anseio algo que não se cria foi nascido em mim no dia em que minha alma ao mundo veio
encontrar-te foi apenas a consumação arrebatamento de águia em volteio que ao aterrar de suas garras fez mãos e do bico adunco delícia do meio
quando te tenho com sofreguidão te amo se partes fica-me o corpo na alma vazia a latejar a sombria imagem de orgasmo que não vem nem na noite nem no dia
morre a jornada com o sol-pôr da esperança
morre minha carne nesta terrível indiferença
a luz que brilha no meu coração apaga-se
das janelas amarelecidas vê-se o lago quase seco os gemidos das plantas aquáticas cortam os ares sibilantes
no quarto os lençóis bordados aguardam-te
um pecado nunca vem só
mesmo que perfumes e incensos
floresçam na noite
sexta-hora a madrugada dá os seus primeiros passos
um curto aguaceiro de verão cobre as vidraças de lágrimas olho através delas não há vivalma no caminho
o sono
só acomete
os corações apaziguados
dos corpos exaustos
condenado à morte por crime de amor
nas mãos ainda o sangue coalhado e as marcas do velho punhal
naquela tarde de outono a imagem no fúnebre pinhal
tinha pousado entre grades seu olhar alucinado
dia após dia ano após ano
o vento em mangas de camisa murmurava obscenidades
o azul do céu desencanto angústia dor
doce pensamento era agora o seu
a amada
que deus lhe deu
que deus lhe tirou
a ele que matou
bem que era seu
e deus sabia que ele o faria
sempre o soube desde o princípio dos tempos
se não soubesse não seria deus
olhou para dentro de si negrura lamentos
então para que lha deu
a ele que agora gemia
mais por a ter perdido
que da morte o medo
as folhas também morrem e nos túmulos abertos repousam almas penadas
as árvores essas tombam-nas com o machado
e aos ribeiros cortam-lhes o leito por maldade
seu destino o inferno
na aldeia nessa noite haveria estrelas no charco trutas em descanso espectros de gente mau-olhado cavacas ao lume mais um doente desenganado vingança e ódio encarnado
noite de insónia
seria amanhã
ao nascer do dia
a corda a resplender
não há amanhã pensou o condenado
e quando o padre o foi buscar para ser enforcado
rezando em latim
ouviu ao pobre homem silencioso e toldado
matei o que mais amava
não tenho mulher nem mãe
matem-me pois a mim
que em vida morri também
a lua existe para que os amantes se amem em hospitaleira penumbra
raios débeis a alumiar leitos e desejos que dando mãos partilham corações sem a nítida real e dolorosa imagem das definições de amor tão falsas e várias que à luz do sol não resistem
escrevo-te hoje esta carta de amor
poderia tê-la escrito há anos ou no porvir
ardem as flores no olival cai um santo do pedestal
- cai sempre um santo do altar quando um louco fala de amor -
passam putos e remendões sem que saibam o que faço eu também não escrevo
são voltas do aparo no cérebro enegrecido da rapaziada estouvada e no meu
alma que vigia a neve que rodopia no céu vermelho a fechar olhos ao sol que é de todos nós
poeira e terra na promessa que havemos de pagar quando a terra nos comer
os sexos desfeitos nas mãos descarnadas
meu amor
amo-te
- uma carta acaba sempre assim -
a navegar em nau de fantasia e esperança e mete-se no correio
porque me julgo honesto ainda digo
amo-te
hoje sim
amanhã não sei
- que hei-de eu saber do amanhã -
no campo estercado da ave as penas ensanguentadas
no terror mudo de cinzelada mascarada
uma sensação de trovão fresco penetrava a tarde quadrada do outro lado do rio
estrada orvalhada no deserto
hálito de iras nas mãos frias
tudo é vaidade dizias
e à meia-noite começo do meu dia observava-te sereno como figueira em penhasco seco
talvez seja um curandeiro do prazer que morde e é mordido em acto de amor fazer por coroa de pássaros tropicais talvez o que grita e não é ouvido o mais esquecido dos sonos de inverno o rio poderoso das terras negras do fim do caminho o fio de sol que aquece os gélidos aromas
uma mão é-me estendida com a paciência das nuvens em movimento
quanto mais me aproximo menos vejo
névoa matinal bosque de mil e um encantos
nos tocos velhos vigiam duendes fadas antigas agitam varinhas estrelas despertam folhas que acenam nos ramos silenciosos dos abetos
braços erguidos abertos aos céus no destino dos sexos arvorados e furtivos
as águas da lagoa erguem-se em minúsculas ondas
o vento do sul não traz o teu odor
as pequenas cristas de espuma desfeita são orgasmos de mar mas tu não estás presente neste silêncio devastador
o meu corpo e a criação incompleta completam-se nos lábios da saudade e nas mãos da dor
depósito velho e gasto inundado de estrelas do anoitecer
o trem avança vagarosamente em painéis de azulejos azul-pálido
ruínas de casas onde o amor dormiu em camas de ferro e colchões de palha no sono das crianças embaladas pelo ritmo seco das molas desgastadas
as telhas roçam as silvas das paredes
não tenho notícias tuas
ramos de árvores quebram com o peso do gelo em coração petrificado branco como o teu corpo para sempre ausente
dia de angústia e desesperança
ainda que eu fale a língua de homens anjos e arcanjos serafins ou querubins se amor não tiver serei como o bronze que soa ou o címbalo que ecoa
ainda que tenha o dom de profecia domine o saltério e conheça tudo o que é mistério enigmas ciências filosofias teologias se amor não tiver nada serei
ainda que a minha santa fé mova todas as montanhas da terra se mostre às criaturas penitente encante feras e seja assombro de animais e gente se não tiver amor nada sou
ainda que entregue todos os meus bens aos pobres e desvalidos e meu pobre corpo confie à fogueira em arroubo desmedido se não tiver amor de nada me valerá
o amor é paciência o amor é prestante maravilhoso e excelente
não é invejoso nem arrogante nem orgulhoso
nada faz de abusivo gratuito e excelso admirável e portentoso não busca conveniência não se agasta não se ofende nem se ressente e desobriga penitência
é inocente não nasce nem morre eterno e omnipresente não sabe quem ama porque ama nem o que é amar não exulta perante a injustiça odeia a iniquidade mas rejubila com a verdade tudo desculpa tudo entende tudo aguarda tudo suporta
o amor não passará jamais
as profecias terão o seu fim a ciência será inútil as filosofias palha ardente
o amor não findará jamais
como o nosso conhecimento imperfeito e degradado do que é perfeito ausente um dia o que é perfeito virá aí o imperfeito desaparecerá
oh amor que tardas e que minha alma de amor matas
quando criança falava como criança pensava como criança
homem abandonei as coisas da criança a dança das ilusões vejo como num espelho a imagem imperfeita aguardando o tempo em que face a face verei o amor que deleita
ainda conheço de forma imperfeita em alma impura mas em breve conhecerei na altura como conhecido pelo amor sou e
se três coisas permanecem
a fé a esperança e o amor
louvor a ti senhor
que a maior de todas é o amor
oh amor que tardas e que minha alma de amor matas
louvor a ti senhor
na escuridão da noite doirada longos dedos penetrantes tocam com leveza o pássaro negro de luz oculto nas colunas de jade
as pétalas ardentes dos seios da flor encarnada por plumagem etérea acariciada contorcem-se na canção dos espasmos das corolas abertas aos profundos gemidos do corredor que brilha nas magnólias virginais
um sorriso no próprio riso do espelho sujo e mudo um tudo que se embroma na falta do siso de quem espera do que sem aviso vem e por momentos se deleita nas formas que ela tem
espelho que se converte no que espelhado se não confessa e confia na mentira pela vida tecida de quem nela ingrata se perde e à quimera se converte
estamos sós tu nos teus próprios olhos brilhantes com as estrelas que cintilam ao anoitecer
eu alguns metros distante sangue fervente nas veias queimadas pelas arestas da solidão
se juntássemos os corpos
mas como te hei-de dizer que palavras podem exprimir o sentir a sensação que nasce do instinto vital no sossego da mente
se juntássemos os corpos
os braços frementes
os lábios rubros
a clamar por amor urgente
não seríamos dois a sós
seríamos um para sempre
os meus olhos nasceram para te ver as minhas mãos para te tocar minha boca para de ti me embeber todo o meu corpo para te amar
se a outras em tempos amei em noites desventuradas a nenhuma me entreguei e todas foram mal amadas
se a ti sempre te tivesse amor meu pela luz do mundo alumiada a ninguém daria o que é só teu
não vivendo nesta culpa dolorida nesta pobre alma angustiada que por toda a parte é foragida
na noite fecunda os olhos azuis do mar sem lágrimas ébrios de lua nova nascem para o dia ausente
olhos de mar na noite escura
lábios macios de medusa
um motivo para sonhar
um sonho para amar
um sorriso singelo numa alma sofrida em lábios docemente desenhados
uma dor tão interiormente sentida nesses olhos profundos a mel pintados
um tempo que se julga perdido na juventude madura de mulher beijos de um tempo já esquecido em amor que se não deixa colher
mãos brancas esguias delicadas dolentes corpo alvo de pureza imaculada nascente com brandos e longos cabelos de oiro ornado a cair em seus seios tal rosário encantado
se eu ainda soubesse se eu soubesse amar nestas velhas mãos de passado distante e não houvesse tristeza no meu olhar a ti feiticeira escolheria para sempre e com a leveza de uma nuvem tocar-te-ia a alma nua e com a doçura de uma mãe levar-te-ia mão dada pela rua segredando-te ao ouvido
que quem muito ama
nunca mente nem trai
e nem na morte olvida
o amor que em vida o atrai
observava o teu quadro bouguereau quando todo de verde me vi quando de verde tudo vi
verde é o teu manto
verde o mar dos amantes
o verde em que te escondes
verde a cor de teus olhos
verde o tição do amor
verde a feição da traição
verde te visto
verde te alcanço
verde te dispo
verde te vejo
verde te amo
verde amor que beijo
verde partes
verde te desenho
verde te sonho
verde vivo
verde padeço
verde morro
não sei se existo se sou ilusão não sei se existes se neste mundo vives mas quando te penetro e dessa fonte bebo a água na tua concha muda acariciada a azul e verde a humedecer a coluna do meu desejo de incenso submerso em lençóis de linho rendados a moldar os mais soberbos dos movimentos mesmo que não viva e se é que não existo
não te resisto
imagino-me na veia por cavar da transluzente noite escura sem ninguém que me acolha nas brasas reconfortantes da quietude
depois
a porta lúgubre de um bar cravejado de seios-rubi e o sorriso das esmeraldas líquidas derramadas no balcão pétreo onde as palavras das sensações desgastadas se perdem nas frestas do fumo cinzento exalado por exaustos corpos
o cheiro suado da nudez
na dependência do desejo vítreo os libertinos amontoam-se pelos cantos perscrutando com os derradeiros olhares da madrugada as presas que de mesa em mesa se arrastam
répteis da decrepitude ensolarada por membros de fios luminosos ali mesmo
cresce a escuridão por entre as cortinas de primavera primeiras são as flores do teu quarto
lá fora um cavalo
enquanto a noite passa na indolência do incenso queimado um encontro fugaz um beijo fugidio à sombra do luar
parca união
o adeus à chuva que tépida escorre dos olhos dos deuses
não sei o que mais me dói
se o encontro se a separação
o sol de inverno brilha na geada
o vento da montanha nua faz o frio ser mais frio
à porta da capela dois velhos esfregam as mãos
tremem acocorados
ao longe ais de pobre mulher
lavadeira em tanque de água gelada
com ganchos a prender o desalinho dos cabelos
som de violino na filarmónica
geme chora
corta o ar da janela entreaberta
e pousa no meu leito vazio
onde escrevi a palavra amor
olho-te da minha janela bordada a heras que roçam com seus leves dedos o granito da parede rude
vejo-te nessa tua nudez material e esplêndida
rosa-sopro de morno dorso
o sempre e nunca visto a ponte palpitante dos sexos que carrego nos braços azuis e húmidos do estio que a memória já não visita
entre todas te alevantas braços ermos abertos ao céu tragicamente erguidos aos deuses gementes nas noites em que a fome açoita no desembarque dos náufragos de praias ebúrneas e desertas entre tantas que esquivas te foram por pesados braços de bronze impuro sem chama
e imploras
que te nasça o amor dos vivos orgasmos que tão cruelmente te são negados
voltas-me as costas como a outros voltaste
afinal não sou diferente sou apenas mais um amante com aquele jeito especial de amar que instante a instante constrói orgasmos sucessivos disseminados pelas noites de luar
eretismo alvo e prateado que quando findo te faz esquecer em breve momento o corpo e alma que tos deu e agora geme e pranteia a indiferença do corpo que pensava seu
teu corpo maduro emerge das águas turquesa ó deusa
na concha das minhas mãos ávidas surge em esplendor o marfim das tuas formas concha por outra concha tocada
sopram os ventos de oeste alento cálido do amor absoluto da carne que no espírito se move enquanto a deusa das estações te intenta ocultar em manto a tulipas bordado
três graças
nas noites longas entreguei-vos o meu sémen de mãos abertas ao egoísmo e ao ócio à desgraça escavada no coração da escuridão
nas manhãs frias de inverno bordadas por corcéis nas tardes débeis quando o mundo ainda estava em flor e a adolescência exilada retornava célere às curiosidades da memória
envolvi-vos com palavras silentes e desesperadas adormeci-vos com a oração gestual da manhã e penetrei vossos frutos macios até ao esquecimento do meu próprio corpo
duas velas iluminam as sombras vivas do êxtase
dois corpos servidos numa única bandeja
na madrugada da rua um automóvel gane
um cachorro buzinou três vezes
o som suado dos corpos nus ainda não cessou enquanto
a manhã se instala doirada no cadeirão bordado a horizonte tropical
sonho com os alísios da volta de mar
tal caravela redonda de um novo amor
vou chegar tarde
o banho fica para amanhã
o amor também
virgens semelhantes a deusas
por essas encruzilhadas de campos tenros e mares de primavera deixais o rasto do prazer no aroma adocicado das flores campestres
filhas das águas e dos céus brandos fazeis a sementeira do amor na beleza das formas como trepadeiras doentes dos níveos bosques confundindo a fera que por misericórdia habita este lugar sombrio conformado à vossa arteira santimónia
por vós e à minha volta flutua o tempo a sussurrar obscenidades
no outro lado do mundo um ilhéu de sorriso brando sabor doce de mangueiral na frescura do primeiro beijo onde habita a paz do esquecimento
o velho pavilhão chinês encheu-se de memórias
os longos cabelos ao vento do crepúsculo desposam o sorriso róseo de teus lábios
usarás para sempre as tranças da infância
há uma distância que me separa da tua inocência onde nem o mais puro desejo derruba fronteiras
talvez voltes um dia a preencher os meus dias no sono eternizado de poemas lavrados no coração
êxtase de uma noite em quietude sem estremas
um amor para além
das palavras dos gestos
do estulto tempo das exigências humanas
***