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Download dos textos de ANTIPOESIA ou a insustentável arte da falsa erudição em –
nós os libertinos triunfadores de novos mundos os famélicos estupradores das mais vistosas fêmeas os dominadores emplumados do progresso e algozes coloridos da razão negreiros-reais pelo papado outorgados inimigos da mente cósmica nunca conquistaremos os mistérios nem os enigmas da alma dos deuses do universo
a ciência são palavras gastas
a filosofia vã
e todo o resto nada
apenas na morte está a vida e a vida na morte vida-morta morte-viva
o cadafalso dos inculpados sangra pelos punhais de séculos cravados no coração de imaculadas feiticeiras
a cada uma a sua espada a cada amada seu punhal
há um nevoeiro infernal no carreiro do alento
que venha o caixão-das-almas
que venha sólido e durável
serventia de pobres sem-abrigo
turva-se a quimera à certeza do óbito lavrado no caminho dos inocentes macerados pelo calvário dos descrentes falece-se apenas com os caninos amarelecidos pelo fumo da erva-santa e pela sobra do alimento desesperado morre-se a cada minuto e em cada minuto constrangido pela hesitação só a tua imagem me comove vem tu benquista
vem amante
desacatemos o amanhã
vem como outrora vieste
vamos vibrar
desprezemos o passado
para que a vida revivesça
ah como é entediante todo este teatro burlesco e zoológico ninguém se compadece dos pobres defuntos que percorrem exaustos os becos à beira-rio envoltos pelo odor nauseante da mais baixa das marés e dos que palmilham cabisbaixos o lodo das margens deixando as marcas de efémeras passadas titubeantes
o rio diz-nos adeus
o rio é mais belo à noite
as luzes da cidade emergem
na promiscuidade paradoxal
dos entediados
avelhentamos num amor abortado de corsários ensanguentados por vetustas e inglórias disputas imaginários espectros vertidos nas raízes do coração por nossa própria morte enlutados o decesso de todas as esperanças
sabes talvez já não saibas nem o queiras saber
é de todo natural quando a soledade faz doer
lembro o tempo que escurecia na curva da escola por iluminar as crianças repousavam nos tugúrios com os olhos abertos ao seu mundo exíguo enquanto os velhos faziam ecoar os seus ressonos nas velhas paredes graníticas e suadas
tempo por tantos esquecido mas que eu não desprezo tempo que não retorna mas fulge nas nuvens de verão tão tímidas tão nuvens tão reais e humildes no vazio da sua singradura celeste
quando a criança cresce o coração engrandece para que nele possa caber o mundo inteiro candidez de adolescentes todas as paixões e alentos desejos emoções e sentimentos
eras magra o rosto trigueiro sardenta esquiva eu era tão jovem para amar
se é que soubesse o que isso era mas
bastava-me olhar e reter a tua imagem não era o corpo que procurava mas o sorriso os gestos a castidade das palavras e aquele jeito tão especial de andar
amava tanto aquela virgindade
- idolatramos sempre a virgindade -
que dou comigo a pensar
que o amor de verdade
está contido num só olhar ou
num sonho repleto de saudade
o tempo corre nos dias exíguos de uma vida submersa ontem de calções pescando no ribeiro com uma cesta de vime e hoje tomando nos meus braços o esquife final morta seja a nostalgia
ergue-te mulher antes que eu seja pó eternal no retorno à maternidade estelar abre portas e janelas as palmas da voracidade bate jubilosa sai esbelta da escuridão sorri com lábios em rima
cabeça tresloucada a balancear estúrdia
sonhemos imponderados como crianças recém-nascidas vamos fazê-lo na rua nas escadarias da poesia nas pedras cinzentas do tempo perdido nas entranhas ardentes da terra sozinhos
para que toda a gente veja
que o pecado das religiões
é hipocrisia de eunucos
só não ama quem não sonha ou está doente e quando amo se é que amo ou liminarmente vagueio pelos corpos da noite sem rumo ardo pirético enlouqueço nos braços da insânia
patético devaneios de jovem febril e ardente com a mesma urgência de falcão faminto e impaciente no alto da ravina rósea
sentado num banco apodrecido da avenida o vulto dela uma cinta de seda estrangulava-lhe o pescoço alcova de pérolas e coral dos desvarios
queria retardar o dia para que a geada nocturna de maio não crestasse as plantações palpitantes de sexo um pássaro verde voava no azul no vale a lentidão do gelo arrostava-se pela erva macia como corpo aberto a amadornar ao colo do luar e tu musa pouco me pedias dessa tua esquiva clausura recolhimento pejado de sentimentos pedias-me apenas um abraço apertado a versos doirados bordado
um pedir tão parco e tão escassa ambição quando o amor que embarcava e embarco não o contém o coração
pedias tão pouco e tanto em breve e vago desejar a quem louco andava por te não poder tocar e se sufocava em tal carga que não conseguia desembargar naufragava a embarcação com o peso de tanto amar
mas
o tempo passa passou pelos vãos de escada polidos por passos vacilantes de extremosos amantes já sepultados
cabeça aurífica no vão da escada circunflexa pesa-me a consciência estupidamente os remorsos corroem as carnes fracas dos ruminantes
o meu amor
ora que é isso de amor
um amor partido
uma partida de amor
por louco cravada
a andorinha pôs seus ovos no beirado luzidio
enquanto eu
- em carne e osso -
parto para a contenda
tenho saudades das diferenças no tojo quente e farto
escuta
virgem híbrida do oriente
colhe-me como eu te colhi
o sémen da esperança no teu regaço pungente
saio de dentro de mim próprio vejo com os olhos cerrados e sinto o perfume vindo de longínquo país do sol-nascente
pérsia
- sempre tive em especial apreço as mulheres persas –
pranteiam os mísseis da caridade aí nascerá a última das guerras
o princípio do fim o primeiro dia dos restos mortais do último chamem o defunteiro os gatos-pingados com seus archotes o padre ou o diácono abade sacristão e beatas tanto faz condenemo-los ao fogo eterno
as carpideiras da terra-fria esgotam-se no lusco-fusco no vale purpurino acendido pela desertificação gemem as almas dos ancestrais
quererei viver chafurdar nos botequins obscenos queimar os quadros descoloridos dos museus incendiar as bibliotecas excitar os corpos perdidos na noite tenebrosa
um cão ladra ao vento e às folhas que caem sobre os estropiados também eu
odeio políticos magistrados autoridades frutos pútridos de malparidas longe ide para longe desimpeçam-me o caminho nojo de vossos laços e gravatas
o meu coração confundido
em viagem
é sangue que se derrama
os pobres inocentes não são ouvidos porque o haveriam de ser se são as presas fáceis da burocracia rotineira e da ecolalia dos lacaios da inaptidão os exprobrados esses sem opinião nem perdidos nem achados
os poderosos larvados causam-me entejo eles que carcomem os inculpados
sobejam as fêmeas da insónia
restam sempre os despojos da batalha
amanhece trinco o mundo velho
imprestável como todas as velharias raras da montra do antiquário empoeirado até às entranhas
no meio da manhã um mar de ondas
alameda sombria ladeada por álamos
a orar
suplicante no canteiro desfigurado
a flor murchou ao florescer de improviso
com tons quentes pinto as mulheres felizes
como é perigosa a felicidade
a roda da fortuna
encanece as mãos sulcadas
por veias salientes
de sangue morno
as nuvens acendidas pelos últimos raios do sol pressagiam eterno conflito
a mais horrenda disputa enfurece os verdugos sub-humanos
no inverno germina sufocante tempestade de verão
não podemos adiar os gritos horrendos do combate
folgando no formigueiro envenenado abandonando as espadas triunfais da vitória o cadáver dos dias esgotados murchos
o silêncio mas subitamente
o toque
a percussão da alvorada
as armas devolutas
não podemos adiar a guerra dos lábios acesos presos infinitamente ao sexo dos sonhos idos
não perguntes nada seja o que for
mantém-te calada armemo-nos
amemo-nos que duas mãos temos
lá fora na noite a existência transformara-se na monotonia de um jogo de salão por falta de sustento pobre mãe ao gosto das ondas a colher as velas com tamanha doçura os tempos deram-se à costa bravia aliviados pelos trabalhos dos dias ensimesmados de males e dores
deixem-me subir subir subir ao mastro real
para salvar o amor eu
que não sou como eles
que
não faço o que fazem
não digo o que dizem
dinamite em espiga por colher
linda rosa
bela é a flor a morrer
a varanda abre-se de par em par num ramo adornado de palavras escritas ao inverso e na vertical
uma legião de ofendidos em túneis baloiçam na luminosidade do vento que resvala e ecoa no aroma das folhas desertas
a rainha de espadas escolhe o rei de oiro com chagas nodosas no ceptro eréctil e faz amor na sombra virgem de um pássaro aceso pela penúltima vez
o desejo da morte tão forte dor sem dor
dor que a dor mata dor de amor
a amante de décadas
segredou –
boa viagem
- foram tantas as viagens que fiz e tantas as que ficaram por fazer –
uma lágrima rolou
para o leito de morte
enquanto para sempre
adormecia na palavra amar
os dias fogem na fátua benquerença voam na crueza do horizonte não lhes é dado transpor as margens do céu
dias em fuga sobre mil colinas
metade ouro
metade ferro
tu és a rainha de tudo o que acaba quando eu for finado és a herdeira da falsa eloquência em pedra mole firmado o fino pensamento
a glória de marfim polido corre mais cedo a uma outra existência de manto espesso estando na alma bem guardado o segredo do alegre caminhante a vasculhar profano o futuro
a caça da mosca impertinente
o escaravelho taciturno e sideral
a mente
onde o teu rosto é uma rosa desfolhada que a terra deixou os olhos baixei
sereia
relâmpago
alimento
das vozes cheias de espinhos
embutidos
na negação
dos dentes que brilham
aroma a resina que ao lusco-fusco pousa na raiz da árvore a que te entregaste com furor divino
minha sede esgotou teus lábios a suster o peso terrífico das horas geladas sem sombras
nu no inverno trémulo entrarei no teu túmulo vazio cabisbaixo sedento no desvario do sem-sentido
sentar-me-ei à beira-mar acariciando as ondas
relembrando os tempos em que tinha a secura das escarpas dos amores vividos nos promontórios em caixas de lata coloridas tempo em que devorava a noite qualquer noite como se a última fosse
cabarés espeluncas negras tavernas nas ruelas encostadas aos candeeiros flácidos da bruma
alinhado na vertigem dos corpos por escolher para um quarto de hospedaria com a alma a restar gelada no sítio do costume
cada qual com seu poiso área demarcada a urina e ao suor hidráulico da contingência
em cada transacção inventava o amor
com a idade soçobrei na abastança das genuflexões os membros rígidos a ilusão de todos os tesoiros do coração ilusório a desvanecerem-se nos cabelos grisalhos sem brilho e nas rugas dos anos
hoje no mesmo banco
sempre no mesmo banco
dou milho aos pombos que acordam
quando a sede da noite já está enfartada
mas volto volto ainda às margens do desejo enquanto o orvalho poisa nas pétalas e o rio é inundado por bolhas de chuva quente pérolas da madrugada grisalha
uma truta acorda volteia esgueira-se na corrente das doces águas
os insectos acordam curiosos rodeiam tudo o que é movente
olho-te a meu lado
corpo alado e sereno
juntemos os nossos corações
de novo
nesta manhã
faremos florescer a orquídea selvagem
uma oração por mês nas nuvens enxutas a voz inefável irriga o jardim em farrapos a casa grande desmorona-se separação da carne e dos ossos sangue no poço cavado pelos imperadores da antiguidade
suas mãos inteiras cercavam-na espessa e abundante
os deuses proclamam agora
a vitória do sexo sobre o amor
sujeito às múltiplas injunções do prazer o amor morre matéria ideal destruída pelos sentidos do pecado venial o seu coração lamenta e chora quando se apercebe da forma extasiada como ama e a quem ama ou pelo sexo anseia até que seja sepultada junto dele no talhão destinado aos heróis da virtude carnal o deus da juventude é longínquo na virilidade inocente de aguilhão aberto ao arco de setas da tenda bárbara redonda talvez um dia se esqueça nas asas do pássaro sombrio de odioso riso a escarnecer dos olhos amorosos e dóceis que aguardam a perfuração da lança aguçada exterminando os pensamentos infelizes e destrutivos porque quem amor faz num assalto brutal à vida não os tem e é abençoado
nessa arremetida
foram muitos os teus amantes
muitos invadiram os lençóis
rendados do nobre dossel
mas quantos te serviram
em bandeja dourada
o puro néctar do amor
o êxtase de uma noite
acordada à lua
hoje nas montanhas distantes recordo o tempo pacífico em que as pétalas caídas no teu leito nos envolviam em afagos esplêndidos e as súbitas descargas de vento faziam deslizar o sexo arvorado livre de todas as aflições mundanas apenas a chuva caía ansiosa no telhado de vidro
por baixo os corpos agitavam-se em cúpula desfeita lençóis de seda desmoronavam-se em círculos imperfeitos quando a neve começou a cair
um ligeiro vagido
extremoso
clamou ao silêncio da aurora
amor agora que tarde se faz e a manhã doirada já estremece no amplexo mecânico o mecânico espasmo agora ou nunca vou amar-te nas vagas da distância esmagadas pelos dedos da querença
um cão danado no meu caminho espinhos silvestres nos pés sangrantes de viandante
não me respondes já não ouço a tua voz amo-te e esqueço-te afinal o esquecimento também é um modo do verbo amar
quando há flores no espaço o teu corpo cheira a rosas molhadas pelo orvalho corpo de estanho em favo de mel moldado
reina a ordem no universo indiferente ao seu criador
deus feito carne que semimorto de cansaço sua criação sublimou
corpo molhado possuído por extensas garras azuis arrebatamento em cascata mais quero mais dizes fundo toca-me nesta noite serena de outono atravessa a ponte da saudade e nada no meu desejo a vinho novo perfumado
mas tu e as coisas ou se quiseres as coisas que somos não são mais que coisas aquelas que vejo ou me contam de ter visto e imagino como são e vejo por outrem ou mesmo por mim no lago da eternidade onde estão todas menos eu que se de coisa me revisto pertencendo ao imaginário que é teu é porque se no que existo sinto em ti o que é meu e em mim o que é teu
e seca-se o teu corpo casto e o meu
enquanto o sol morre lentamente no horizonte coberto de paredes de betão e as sombras do dia se arrojam na pequena ilha da cidade
a praça deserta a contemplar a massa gigantesca de pedra duramente aparelhada e a maria dedicada para além da ponte de apaixonados e suicidas
os pequenos bares aconchegantes
- bystro bystro bystro –
espectros de antigos combatentes
beijos rosados no jardim do luxemburgo com saint michel a ver e ouvir pesado e pisado por caminhantes da vida abstraídos
a animação os versos e aforismos dos cerebrais embriagados
onde toda a realidade é mais realidade
quartier latin
povoado de amor imperfeito
perfeito julgado
notre-dame
a visão de dois corpos
em chama viva de amor
dois rostos transfigurados
em incandescente paixão
passos lentos
de mãos apertadas
dedos contra dedos
cerrados
uma única verdade a penetrar a catedral vazia
casa de santa maria no altar e nos frisos esculpidas as faces de santos
vivos
no ar o som da solidão das palavras macias de amor da antiga adoração
canto gregoriano a silenciar a oração
mãos apertadas percorrem a ponte dois corações em êxtase olham o rio que corre cintilante
sinfónico cantante mãos que se apertam mais e mais
um espasmo
outro
a divina sensação
do milagre do amor
repartido em orgasmos sucessivos
de pão e vinho aos dois distribuído
e o sena
pára abismado contraído de gozo alumiado
um outro arroubo de luz
o mesmo que a virgem santa
na cidade de nazaré
teve quando concebeu jesus
de mãos dadas com josé
os dias nascem e morrem como flores coloridas ao sol que as ignora
cai a noite que resvala lentamente no quarto opaco alugado a uma velha indigente o dia levanta-se apático estremunhado corroído por débil vontade que o espelho deformado do tecto não reflecte mais abaixo os salgueiros bebem a água do rio e o vinho aquece ao sol crescente não vamos ficamos onde moram os amantes entre lençóis de linho aquecidos e sorvemos o gozo que dos corpos se extrai
há uma dor latente na quietude outra diferente no movimento
ouve-me meu bem ouça-me quem amo mesmo amando parto sem que saiba se e quando voltarei
se fico farto fico se parto não sei onde ficar nem para onde irei leve-me o vento para onde levar e desse lugar distante se amofina a alma inconstante por a ti tanto te amar se parto morro se fico sofro de amor por ti meu bem
para quê partir quando o retorno é fatal onde há uma ponte líquida entre mim e a outra margem da vida e há o deserto das mãos impudicas a acenarem ao desafio de viver sem comando e sem governo de escrever o que me contenta nas páginas brancas a amarelecer de fazer amor sem que os actos e os mais íntimos gestos da pele ardente sejam aquela paixão de que os poetas falam e de que tanto se enganam
também se me parte o coração em bocados e estilhaços na tua partida sombria rosto impresso na vidraça um único dia não há em que me não morra a alma e a cada noite renasça mais saudosa e sofrida e na angústia da ausência triste consome-se a vida que súbito a morte me não dá mas que a pouco e pouco ma tira
venha de teu rosto
a graça apartada
e
a escondida beleza única
só vista por quem viu
para além desta vida
e no amor mergulhou
sem tempo
sem medida
e no outro se transformou
em carne viva
ah saudosos amores nas asas do tempo sepultados aliviai as doces dores dos eternos condenados vinde lestos que o dia escurecido adormece em lençóis brancos de leito esmorecido apagai as lágrimas coloridas de quem a morte procura e da vida nada quer porque a
guerra do coração ao louco mais transtorna
e ao sadio ensandece que de tanto sofrer
lhes perece a vida morrendo sem morrer
somos mortais que se alheiam apáticos das mazelas da alma eu hoje indiferente ao seu aparecimento como a árvore que seca e aguarda sem aguardar a chuva de verão indiferente à experiência ao desejo ao conforto à sua vinda à sua ida
ela ela vive e sofre mergulha na tarde na sombra da montanha em tristeza crescente feições agudas pés a sulcar pegadas já lavradas com uma pulseira doirada no tornozelo pérola o mundo está prestes a terminar a cada dia cada sentido mergulha na escuridão o inverno estremece o corpo frágil que nenhuma brasa aquece
nada há que não finde nada há excepção do espírito do teu amor
teu corpo santo na pura mocidade tua voz trespassada por fogo sem fumo teu nome que sacia a fome de pobre aflito em botão de rosa por abrir teu corpo esquecido pela viagem
desembarcámos em luanda marchando na avenida ornada de saias rodadas com os olhos cegos de luz
nos lábios o sorriso de quem vai beber a cicuta das delícias do amor e da guerra
é preciso inventar o amor
hoje são apenas palavras de encantamento que morrem à beira do rio ascendente a ilusão do peito submerso nos ácidos projectados em escombros miséria rastejante perdida no deserto de leis desconhecidas sarcasmo hormonal de corações falsamente compassivos umbral de porta escancarada ao engano e ao desejo alucinatório de sacros sofismas luz feérica de ruelas adormecidas no néon da praça virgem
é preciso reinventar a mentira
ensaiámos as palavras no sentido áspero da enarmonia convexa ambições o amor
jogámos como amantes nascentes os corpos suados lânguidos ausentes no palco sombreado do leito de açucenas
há uma ponte entre nós um abismo enlameado pela apoteose a lua arde e o sol no outro lado da terra desespera diz-me bonina qual é o teu nome não corras gazela os corpos estão à venda hoje domingo algures lá fora
o destino o acaso o absurdo a dama sobe a escadaria do palácio para o encontro golpe fértil atrás de biombo
um leve
gemido nupcial
perfumou o ar
nesta vida associam-se as imagens em azinhagas intermináveis sinto a tua presença no sofá que aformoseia o relógio barulhento do canto da sala empoeirada
quando chegar o tempo em que não houver ninguém para te amar em que nenhuma mensagem percorra continentes para te consolar tocarás a flauta no sopro do suspiro
como te lamento
assim envelhecida
com a luz do coração
a extinguir-se
como te lamento
nona noite os corpos já se estendiam no tacto subtil do final do dia suores fiéis dançavam rodopiantes entre membros desnudos como ramos de cipreste vergados ao desejo ouvia-se a sua voz o testemunho do acto vibrante
o quarto é assaltado pelo perfume das flores silvestres orvalhadas pela noite de lua nova
perguntas-me
solenemente
pelo anel de noivado
sem que te saiba responder digo palavras soltas nas folhas esvoaçantes de outono mas há o teu cheiro o teu corpo os teus aposentos vermelhos teus lábios de framboesa a colher
tudo para além
das meras palavras
para além dum mísero
anel de noivado
ouvia a tua voz a respiração doce o som do leve sorriso inocente a confissão de amor de quem nunca mente não sabia que ia ficar velho que ia ser amado por quem não amo na mansão do mar em que na solidão e no espelho agora por ti clamo tarde demais perdi-te para sempre
resta-me o meu corpo
se parto ou não não o sei a distância é a do biombo que nos separa da cinza do pavio aceso na escuridão de suaves tecidos púrpura a fremência do corpo em desesperança a cama rubra deserta beijam-se as folhas de lótus as nossas sombras sentam-se na colcha branca bordada pelo luar arrastando os ponteiros da volúpia na eternidade do encontro das vestes suadas
o teu olhar
cai sobre mim
como aguaceiro de verão
tens o cheiro de flores campestres aconchegadas à sebe descuidada duma terra distante onde não há geada nos vales encontro de breves lúzios à luz do círio congelado e sem significado
chegou tarde o corpo aguardava tenso corda retesada de lira no vértice do movimento com os seus ramos abertos fecharam-se as cortinas à luz das velas a nudez era mais nua e penetrava o tempo pacífico da alma no lamento de longa ausência a carne penetrante suava perfumes estrangeiros que choviam no interior dos corações inflamados banho de amor na praia da noite partilhado pelo desejo sem muralha na concórdia volátil do prazer não me deixes nunca disse vem comigo para um país sem gente de mel vinho e leite onde o veado brama o grou grita e o leito faremos de macias ervas e fetos como a neve de inverno a deslizar no colmo das choupanas vem comigo penetra-me para sempre amor amante amigo
tenho apenas um minuto para te dar neste amor ardente o passado ave migratória cega e insolente até da memória ausente feneceu o futuro como as lágrimas salgadas é pena que te dou áspera e cruel em vida escassa e incerta
resta este minuto
em que se te não vejo tremo
se te vejo temo
e se te não possuo para que vivo
sobeja este minuto eterno
consente-o
nessa madrugada de solidão na ponte de aço uma jovem em tempo de trevo florido com a alma trespassada por amor alvejada a água negra do desamparo nos olhos ternos de orvalho diz-lhe
vem
serei o que te
desabrigou
o teu eterno
amado
não encontrei palavras para a tua beleza o nenúfar brilhava ofuscante no puro vinho voavam os espíritos do gáudio madressilva ornava as janelas vieram grous e cisnes e das urzes floresciam perdizes a noite cantava com a chuva cristalina à terra encantada sem nevoeiro e à lua camuflada o mar sulcado por barcos doirados
mas não encontrei beleza como a tua
adormecera na calmaria das águas plácidas da baía de benguela sonho rasgado de saudade do agora velho soldado das terras de áfrica ausente à sua frente no areal a sua negra dentes alvos peitos hirtos e redondos olhos rasgados sorria-lhe amorosa dolente languescente
desperta envelhecido esfuma-se a nítida aparição
na face uma lágrima mordente
se soubesse que sonhava
nunca teria acordado
e a negra ainda na praia presente
já não sei de quem sou
se sou de alguém
ou se de ninguém sou
fez-me o destino errante viajante de vastos amores de chama viva em alma ardente moro no meu coração na verdade e em quem mente com o amor a caber na palma de uma mão
e se não sou de ninguém
com alma tamanha
sou certamente de toda a gente
olha-me pois nesse teu olhar de luz radiante enquanto lembro o beijo que a boca me tingiu de oiro e prata e o cheiro da laranjeira em flor a pouco e pouco se desprende das minhas faces pelas tuas tocadas
chegou o tempo frio a cama no quarto pequeno exala do gelo o aroma o sol ainda adolescente espreita teu colo resplandecente tremente
sigo uma estrela no céu
vejo a geada crescer
e aqueço nos lençóis frígidos
um aperto nos pulmões lavados pela nicotina das horas desertas a certeza de que o teu córrego acontece na direcção do remanso
pode dizer-se ou diz-se podendo ou não saber-se o que se diz que a intuição não sendo absoluta nada à superfície das dores de sangue e eu sei que travas campanha em nova vereda julgando que no beco de paredes amortecidas existe a terra prometida fico-me por aqui como sempre liberto da ilusão por ti anunciada
não levanto o auscultador gasto de palavras aquecidas pelas verdades relativas dos viajantes estelares aguardo que o sono se arraste pelo colchão sem lençóis e pelo ruído dos aviões que no alto piscam luzes saudosas os barulhos distintos sucedem-se no asfalto remendado por bandeiras de carne humana apodrecida às chuvadas intensas de verão e aos temporais a lua sobe pelas estrelas uma a uma sóbria cuidadosa e tu já não vens adormeço no regaço da solidão e beijo o meu próprio corpo
amanhã ou depois quem sabe apreciarei a neve que cai a agasalhar suavemente as vidraças do quarto quente do teu corpo desnudo nos meus braços de esperança que cinges com esses dedos delicados doces e magoados juntos bebemos a nostalgia do céu as ondas vencidas pela amurada inerte o beijo-mel dos astros radiantes nos lábios extáticos em cruz gosto do teu coração a palpitar da tua alma luz de calma lagoa gosto e gostarei do redondo de teus gentis seios pousados no meu peito amado venhas ou não
é certo que o amor mata
não a quem se deixa matar
mas a quem não quer morrer
se os teus olhos tivesse
se os pudesse sempre ter
quer na vida quer na morte
não morreria
e com olhar assim tão terno
para sempre viveria
nesse amor eterno
que quanto mais calado
mais vivo se tornaria
que esbelto o teu rosto como nunca outro vi em ninguém belo macio meigo afável doce sorriso diáfano celestial por muito que o procure não o vejo em parte alguma porque no mundo não há desejo que ao meu se iguale de não te ver desespero o coração em lume incandescente a saudade a devorar a alma
se beleza como a tua
por muito que corra não encontro
que em mim o amor morra
como um livro de amor aberto no aroma das tuas mãos de marfim li-o alto em mim em horas de ardente febre passos dados no destino errante
li-o em ti
virgem doirada
que na amargura
o amor vesperal inflama
e se nas mesmas palavras
não estão os mesmos corpos
decerto está idêntico destino
são teus olhos verdes senhora que me fazem ter de amor tanta sede e na vida ir mais além não fora a sua cor ora verde ora azul em face branda em flor já me teria ido para sul onde abunda o calor para que sofrer me não visses em rocha agreste acoitado nos seios de uma outra mulher quando por ti rejeitado porque quem deveras ama olhar tão delicado outro inverno não há-de querer
erro no mundo
em actos e passos
no mar sem fim
na terra oculta
por montes e vales
na névoa
nas chuvas
e neves
erro
grito desolado
na charneca
encurralado nos jardins
do solar da morte
a nuvens ornado
o vento assobia
rasga o peito à neblina
o que é vivo já sossega
na solidão
que se carrega
e custa a sustentar
crisântemos de outono
mulheres de jade
amor perfumado
do amar exausto
às vezes
amar
pode cansar
de manhãzinha sonhei com a tua pele macia de menina com a tua face cinzelada e cintura fina
mãos frágeis boca de mil beijos apaixonada no leito de alabastro pelo amor lavrada
sonhei e ao acordar vi-te deitada a meu lado e vendo que ainda sonhava por te tentar acarinhar não te encontrando tua falta chorei
como eram graciosos e brandos os teus gestos melodiosa a tua voz as tuas palavras lírios e os olhos negros tão macios fui eu quem em sangue vivo de amor te desvirginei o primeiro corpo fervente que amaste nos dedos longos da descoberta
onde estás alma deserta
não sei com quem te deitas pouco me importa com quem dormes não sei como te sentes nem se me mentes se em segredo tens prazer ou dor e tristeza se a visível pureza é meramente aparente e a tua leveza é pecado indiferente de quem ama gente sem gente escolher não sei não quero saber
quero-te por uma noite
desnuda
plácida
servil
amorosa
por uma noite somente
dor e morte nas deambulações noite após noite na montanha donde nascem as estrelas os corpos rasgados e em chaga soletram em vão a palavra amor
à tarde num pasquim num frio altar a fotografia da cidade em chamas
que bom que é a dor sem doer
a morte sem morrer
afastei-me da cruz não mais a carrego abominável tempo gasto na maré vazia do espírito em circulação
deambulante
reconheço o sol que se levanta
o mesmo que se deita
a lua nascente
as lágrimas vertidas a arrancar com ferocidade o peito das flechas sanguinárias e as veias salientes das carícias e dos beijos a crescer no asfalto dos caminhos desertos
carne e ossos na terra anoitece o coração de corda pára o azul coberto de nuvens raiadas de jactos
sorriem os longos areais ao mar que canta a noiva morta ao luar
primaveril o ar
duas árvores negras no horizonte
e a palavra essência
a negar o que te peço
nesse tempo tinha a febre da ansiedade estertor da dor errática salpicada pela asa gemente do maligno
minha casa minha fortificação porto seguro
as sílabas das palavras nos vidros opacos circulavam no vapor depositado da sacra metamorfose de rígidos ossos a enformar a palavra
havia imagens inquietas sem projectos sem um corpo açoitado pelo amor a transformar ideias em versos
menina dos olhos tristes cinzentos baços e melancólicos que vês que te falta misteriosa criança que corpo te não amou ilha do radioso canto do vulcão
o mundo pode findar amanhã poderia ter sido já ontem sepultado na sensibilidade inesgotável dos gestos perfeitos de amor fazer que deus a alguns dá e a outros nega
porque amar
não se aprende
não se ensina
nasce
vive
e morre
com a gente
desço ao meu inferno baía da meia-lua onde as folhas das faias murmuram estrelas nas entranhas rasgadas pela espada do amante visionário o mensageiro que os deuses enviaram na beleza da mulher palavra mágica em canção incompleta
quem não sabe amar
não merece viver
a trova de um grilo na doçura de outrora uma víbora assobia no monte farvão no mosteiro amontoam-se mágoas sempre que uma folha cai do plátano no pátio enegrecido deus chora
mãos invisíveis tocam os meus parcos cabelos e eu adormeço sem pensar se vale a pena ou não acordar mais logo
máscara que lacrimeja e sorri na caçada às fêmeas evisceradas o canto das estrelas ilumina os caçadores furtivos a cauda de um cão no giestal o silvado impenetrável
amiga quanto vale o teu peso se penetrar o meu corpo sedento e amarelecer a minha alma
como o sol se retira para os esconderijos da noite assim te retiraste tu
num corcel enfurecido iludi a existência do amor ah os fantoches do sexo outonal
brindámos com as taças vazias antes de adormecer no ventre do peixe e reunimos com a exactidão possível as sílabas verdadeiras que o pai dos vinhedos espoldrados nos doou em tempos imemoriais
plumagem maculada do amor fazer
o rastro no trinco da porta casa sem guardião na alvorada que morre lentamente amor e ódio daquele que vive só nos teus olhos cinzentos nos teus braços redondos e já mortos
o carinho das rimas matinais debruça-se nos corredores secretos da mansão um beijo de lágrimas invade a memória enevoada da retina repleta de projectos divinos tão altos e alados como sangue em suspensão que mesmo ferido de morte canta no tempo estático o eterno amor
a primavera aproxima-se como espelho a despontar no limite do universo o dia está prestes a findar flores longínquas enviam-me o teu perfume
longo é o caminho e curtos os passos do que não sabe declarar a sua paixão as montanhas brancas do luar estão cada vez mais distantes a uma hora da casa do mar penso voltar ao jardim do repouso
novamente esta maldita estação sempre presente nos meus dias cansaço de viajante sem hora marcada
sentada na sombra de uma velha oliveira cristã brincava com o fio de orvalho refulgente nas mãos brancas amparava-se o anjo do tempo perdido em meia-vida por viver com a sua fé na translúcida imortalidade das pedras e dos amores tumulados na eira deserta iria encontrar-se com o seu amante não pousando jamais em vida os pés na terra ingrata
o leito profanado pelo frio está sereno posso dizê-lo com a mesma energia que a cerejeira prenhe dissipa na primavera mal-grado o jugo terreno de que os deuses alucinados e febris se apartam ao sol-posto
a cidade nasce para o inferno do prazer estremece no ódio do passado na raiva do presente e no terror do futuro acendem-se as primeiras das últimas luzes o espanto dos olhos roídos pelo enfado alonga-se nas casas de passe o passe pergunta-me o fiscal do metropolitano praticamente vazio a penetrar os ossos da terra
procuro-o
deve andar por aí como tudo e todos afinal só quero chegar a casa recostar-me ler um velho poema de um poeta maldito quando ainda faltam tantas milhas cravejadas de espinhos rosados e a salvação se resume em fazer amor para sempre
renasço no seio do desejo longos são teus cabelos brancas de mármore tuas faces pedra ígnea o teu corpo por violentar musa de botticelli a noite é nossa ainda que apartados nem sempre o que está próximo está presente
a paixão habita a ausência o amor repartido em vinho e pão o sexo condensado no amplexo místico da vastidão cósmica
silêncio a aldeia dormita enquanto um cão ladra
quando no relógio da torre baterem duas horas as luzes irão apagar-se
repouso absoluto das almas
na mesquinhez avara da crise existencial
penso nela
pensar nela é via de mortificação o apego mata não deveria pensar em ninguém em nada como cigarra que se limita a cantar para a ralé e reis obsoletos sem apegamento não há lamento não há eu que cinge com sua túnica de imaculabilidade a vida integral
vigília sonho sono profundo
uma guitarra no canto da sala no lugar do velho piano uma estátua viva na ombreira do pardieiro enevoado a imagem da vénus doirada estirada no leito mas é tão nova um corpo nu retorce-se em sucessivos orgasmos corpo para te ter sois tantas qual escolher
louco é o afecto da ilusão querer dar ouvidos à razão o que bem ou mal está
o amor dispensa a moral
levou-ma o fado cruel
fria
em mármore
deitada
sem ela
já eu não sou
desventurado corpo
sem vida
sem mácula
sem sangue
coração desocupado
em pano
de fino linho
levou-me
a alma
a dela
no meu peito
dorido
para sempre repousa
já não sou eu
minha alma perdi
a dela tenho
já eu não sou
sou ela
por ela canto a sua canção canto as musas as castas esposas dos deuses em loa ao luar
na planura sul do vento o prodígio circunciso dos longos dedos desflorados amarelos de altar em folhas de oiro pintados
dedos fantoches do sono da primavera tombada do corcel imperial
as mãos do homem não as tocam não lhes sentem o odor a árvores soberbas alicerce do mundo com pavilhão armado no abismo dos jardins assombrados
a desgraça força a entrada em portal que se não abre a esperança nutre-se da cor das flores hospedadas nos descaminhos
musas de corpo em eflorescência alma que discorre que não corre no muro abandonado ao pedregal da tarde que no leito se estende e murcha com os olhos na mão violeta
saudara a mentira arrostada nos lençóis de fina cambraia o amante viera longínquo e exausto como réptil em águas turvas o quarto púrpura
à luz de círios erectos absorvia o odor do segredo e o desenho fulgurante dos corpos nas pregas enrodilhadas da coberta estampada decorava as paredes nuas e confidentes ela adormecera
ele tinha o pensamento preso ao retrato amarrotado no bolso coçado
chovia os campos tingiam-se de canela do bolso retirou uma fotografia antiga sépia do tempo a dela
nunca a vira tinha-a lido avidamente nas horas desafortunadas tantas vezes a lera e relera e a cada leitura a cada verso ou poema no medo da noite profunda e escura adormecera em alma rubra com vívida fotografia a seu lado acamada ela morrera antes dele ter nascido
fixava a face branca o olhar penetrante o colar suspenso a gracilidade da mão em macia invocação súplica de coração em chamas com os lábios doados à paixão em vida ausente como a queria na alma que o peito encerra túmulo eterno do amor vivo como a quis como a queria em febre incandescente sentia a sua presença almejando um amor divino tão forte como a própria morte loucura de amor
olhava-a com ternura e vivia nela dentro dele apaixonadamente
se alguém alguma vez disser
que se não pode que é impossível
amar assim tão perdidamente
morta que se não conhece
mente certamente
e se não mente
é porque já nada sente
não sabia nem sei como lhe havia ou hei-de dizer o que sinto o que sou o que desejo tão jovem rebento de árvore celeste a emergir do mais profundo azul com os sonhos mortos de amor a navegarem soltos no corpo ao destino de um beijo alheio
tão jovem no olhar melancólico de pedra talhada no deserto a oscilar entre os meus olhos brandos e os arbustos acesos da colina
boca fina de ninguém lábios que muito quero que lhe não peço e não sei se lhos hei-de pedir ou não
vê um mistério vítreo o cosmos mudo perante dois amantes enlaçados após o pôr-do-sol
por luzeiro o tacto por instinto o olfacto
partira no último raio de primavera deixando no seu lugar a penumbra do crepúsculo devoluto
na janela emoldurados os montes violáceos enquanto a porta entreaberta aguardava o impensado corpo distante rosado de noites sem sono com a brisa do mar a acariciar a túnica de seda escarlate moldada ao desejo a desfilar no sonho canção de amor
foram tantos os anos que juntos passámos são tão poucas as lembranças do amor que o não era pergunto-me hoje nesta manhã cinzenta em que nada sinto ou lembro se o que dói é ausência ou tempo em vão desperdiçado
a neve caía aves brancas no céu nascidas o desejo ardia nos corpos nus que o gelo derretia
se os olhos nada valem aqueles olhos ora verdes ora azuis no meio da terra nevada eram espelho do coração selvagem e do juramento da amada que se jura mente amor despido em alma cansada
as tuas palavras ferem
são chamas que abrasam
fogo que arde sem arder
as tuas palavras mentem
são cinzas que nas ondas vagueiam
e ao mar fazem doer
os teus olhos matam
ao mais furtivo olhar
sem remorso ou piedade
e se assim destroçam
a minha ânsia de amar
que finde já a saudade
cai o véu da noite na folha escrita de amor nela escrevera o nome dela olhos tristes como pétalas pendentes e folhas caídas o amor tantas vezes jurado de mãos apertadas e febris era agora jóia furtada nascera quando a conheceu e morria porque a perdia vendo que a não via
o vento cortante o tempo quente frio a clepsidra vazia no beijo que se nega e não se quer
fogo de amor nela extinto
morria porque a não via mesmo sabendo que no coração de uma mulher quer se queira quer não há sempre um qualquer homem a ocupar o lugar por outro homem antes ocupado
na escolha em curta vida e longa esperança enquanto busca o amor que lhe apetece adoece a alma que não encontra o que deseja e se aqui o amor teme ali espera o que a mata mais lhe valera de tão cansada amar o que se lhe apressa e entre verdes e macias ervas se lhe oferece
cantai raparigas cantai essa triste canção que um poeta à morte escreveu
dai-lhe vida dai-lhe a voz da mocidade e da alegria que o poeta está morto de vivo e a morte não morreu
acenai vossos lenços vossos braços vossa mão branca erguei vossos olhos às estrelas vosso cantar graciosas dai-lhe a vida que não viveu
o lírio do campo inclina-se sóbrio ao pinheiro nascido da rocha salteada de emoções e com as velhas raízes expostas na margem da lagoa seca
um rio de lágrimas escorre da tua sombra que junto a mim alimenta corrente de tormentos pelo carreiro adventício das orquídeas selvagens
na ramagem do amor que acaba em escuridão
como sorriem teus passos nas escadas de mármore carrara do palácio do diamante desces ora desdenhosa ora lassa em imodesto bamboleio corpo voluptuoso perfeito a despertar anseio nos olhos vibrantes da praça vaidosa soberba orgulhosa os seios quase descobertos oscilam como membros erécteis
corpo apetecido que nunca será verdadeiramente amado antes usado como um qualquer objecto
à porta aguardo que me digas como é divino o nosso amor como me engano
deus o sabe deus o criou pelos carreiros luzentes do mundo caminham estrelas de puro cristal dando-se as mãos
- as estrelas também se amam -
o frémito de nossos corpos indemnes silenciou o universo que sua alma às nossas acasalou deus o previu deus nos uniu e a mim me puniu
amei-te em sonho amei-te por toda uma noite em dia já passado não sei se no sono te amei se foi na realidade que contigo privei o sonho e a realidade existem e não existem
mas o amor é sempre verdade
as minhas mãos procuram-te macia pele de meus beijos alienados nunca te esqueci nem o louco desejo olvido por pouco que seja e se em ti a saudade é dor lamento-te sem panaceia ave de amor magoada lírio a murchar aos pés do calvário vida do amar alheia lastimo o mal que te fiz o que me fizeste esqueci queima os meus versos não os leias mais que versos são palavras e as palavras demais as palavras mentem dizem querer o que não querem os versos enganam dizem amar o que não amam fixa o meu olhar espelhado a lágrimas e vê como fala verdade nele não há falsidade erro engano maldade porque os olhos raramente enganam e se mentem não olham
diz-se que amou e foi amado por corpos e almas todas sedentas de amor transcendente amor de carne divinizada incapaz de enumerar todos as suas benquerenças no diário vermelho vivo da noite flamante páginas de sensualidade santificada
deixou-se constranger pelas paixões que a cada outono eram visitadas pela morte capitulando uma a uma como folhas ressequidas
hoje são muito poucas amanhã nenhumas irão restar nem as rememorações arrastadas para o promontório da viagem sem retornança
já não ouve o sussurro dos corpos na cidade isolou-se sofrido em abismos vivos a neve derrete as nuvens são vastas no quarto azul não suam os espíritos
tem uma tormenta de areia cortante no coração de filigrana e na despovoada noite escura extasia-se no rio que ala as orlas da alma
lua nova de camisa banhada a lágrimas
noite pálida de outono no meu peito o teu coração repousa ao luar passos de deus a caminhar por campos lavrados ponho-me a cismar enquanto teus lábios observo quantos homens não beijarei quando a ti te beijar e penso poisando de leve minha mão nos teus olhos adormecidos que de alma tão casta apenas brota pureza e só pode ser falta ou pecado o ciúme que sinto do teu prazer passado
o vento cai na cama vazia há luzes débeis no corredor antigo de tabique os passos leves e ponderados passeiam-no em todos os quadrantes da alma range o soalho gemente os olhos da mulher do quadro espreitam a insónia da vontade que se alonga às praias distantes imersas na nostalgia de outono há pedaços de corpos objectos mutilados e a podridão da carne suavemente depositados na areia molhada de volúpia
o vento veio ela não
anda o luar de aldeia em aldeia boca de luz prateada varre eiras verdes lameiros charnecas penedias vinhedos pinheirais vales e serras
busca uma boca vermelha de mulher cansado de beijar a terra a erva morta agita-se à brisa que varre as faces da terra um rouxinol canta entre pingos de chuva e raios de frio sol anoitece mais cedo as estrelas não aparecem e os teus lábios escurecem
as folhas das árvores
são as cartas de amor
que nunca escreveste
dia de lembranças
desde petiz que a amava ele de calções meio esfarrapados ela com vestido feito de chita lado a lado no frio granito da escola primária enquanto ele com a manga se assoava já lhe dizia que a adorava e ela sorria dentes brancos olhos puros divina criança distraído das letras olhos postados no azul das janelas sonhava com casório como vira no verão à porta da igreja tanta era a gente tanto convidado afinal a noiva era a filha do capitão casamento de rico não é como o de pobre não tem salão nobre tem pátio de moradia não tem casa de banho pobre tem penico não tem três pratos todos de carne nova pobre tem feijão e couves com toucinho e um pedaço de presunto mal defumado eu olhava-os da minha carteira corroída pelo bicho da madeira tão enamorados no recreio os caracolitos dela aos saltos os calções dele rasgados os segredos escritos em pedaçitos de jornal o anel de lata prateada dado como prova
que mesmo na pobreza
sempre há algo que não falta
seja paixão seja beleza
vi-os crescer sempre com aquele olhar tão meigo tão discreto tão amante tão amado e vi-os de braço dado à porta da venda o rapazola e a garota ele empertigado ela encantada namorado e namorada à vista do povo que cismava naquele fado
crescemos víamo-nos nas longas férias do verão eu estudava em lisboa ele trabalhava à jorna como tantos ela cosia para fora vestidos bainhas e arranjos mas quem os via sabia que amor tamanho não havia nas verdes encostas da rude serrania
chegou o dia manuel foi alistado era forte e corajoso fez a recruta e depois sem pena sem dó do que era o amparo de sua mãe velhinha a notícia veio guia de marcha para os rangers em lamego daí para a guiné enquanto nossa maria chorava sofrida quer de noite quer de dia pedindo à virgem mão contra mão apertada a clemência que lhe não tirasse a luz de sua existência o brilho dos seus dias
coisas do demo na picada sangrenta maldita a granada que o matou quando sobre ela o herói se arrojou para salvar a vida de camaradas
veio para a terra num saco num caixão de aço cruz de guerra no regaço eu não estava e maria não o viu descer à cova havia sido internada com mal de amar com dor tamanha pesar de amor
soube em angola e chorei lágrimas salgadas pelo amigo que jamais iria ter e que já de garoto era senhor e rei do verbo bem-querer
passaram-se meses chegado do ultramar procurei maria não sei bem porquê para a consolar para a abraçar para com ela chorar talvez para que me desse um pouco do sofrer que o amante tem e que padece quando perde seu maior bem
fui à taberna fardado perguntei por ela antes de ser saudado por ter regressado são e salvo baixaram-se cabeças o taberneiro mordeu os lábios os homens que jogavam cartas ficaram calados
o coração de maria não havia suportado tão pesada mágoa
havia-se enforcado numa velha oliveira do povoado
era a sua prova de amor eterno
oh amantes de teruel
pobres coitados
no cemitério olvidados
visitei-os e vi sem ver
os dois de braço dado
em campas lado a lado
fiz-lhes continência
por alguns minutos
como se deve
a um grande herói
e a uma santa mulher
hoje tenho saudades do tempo em que manuel e maria enfeitiçados se beijavam nos fundos da escola beijos que ninguém via mas que cada um sentia como calafrio que a espinha percorria e sinto raiva inveja pena na alma que dói por nunca ter tido amor como o seu e de não ter sido herói como ele e de não ter conhecido mulher santa como a dele
que deus me perdoe
agora e quando
nos seus sepulcros
lado a lado plantados
de braço dado
rezo ajoelhado
ave-marias
por suas almas
e meus pecados
***
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