Download dos textos de ANTIPOESIA ou a insustentável arte da falsa erudição em –
O TEMPO É CRUEL
anda cambaleia comigo sombra amiga leva-me contigo perfuma-me de nardo o caminho alaga-me a alma de confianças e desvelos vê meus olhos lacrimejantes minhas mãos brancas e glaciais os lábios floridos errático e sofrido estou sou cinza mágoa e pó oh clarões calados oh trovões que caís aos pés da minha verdura e da miragem de tantas benquerenças
fulgores de falsas dores airosa cintura de menina tão fina e quente
espera
que a tarde é oiro e o tempo filigrana
espera
afinal para além de mim já ninguém te ama
sou um vendedor de tempo
seus
lagalhés-engravatados
suas
varinas de hemiciclo
seus
abades do armistício
e
defunteiros-dos-coitados
zés-ninguém
façamos uma pausa
breve como convém
vasta-quanto-baste
a lembrança dos dias úteis
dissolve-se no martírio dos fins de tarde
pintados por clarões flutuantes
nos desfiladeiros da esperança
nada é insubstituível nem os deuses inefáveis e os anjos translúcidos
há uma ferida de assombro em cada passo
uma pedra tumular para a urgência
um enfado ansioso na moldura espinhosa do crepúsculo
as pétalas caem uma a uma cobrindo o solo de novas águas
longe a terra-de-ninguém
um coração estreitado nas mãos crispadas apoia-se no relicário
o cálix das antigas eras abre-se ao terno repouso dos frutos silvestres
a força do corpo perde-se no sono fatal da essência matinal
e no olivedo esmagado pelo peso amadurecido e pelo altar definitivamente abandonado
morrem as últimas andorinhas
na aleivosia dos dias no rumorejo daquele mirar infinito
havia sido belo e elegante ladeado por seres exuberantes trazia consigo a poesia das mais enternecidas auroras e dos arcanos do ocaso
na magia das noites o sorriso discreto antojava às mais esplêndidas mulheres
agora poucos o ouviam e os luzeiros olhavam-no de soslaio como se estivesse irreparavelmente contaminado nada lembrava as estupendas viagens na terra-da-volúpia
as luzes dos palcos rastearam na madrugada vexadas pelos passos melancólicos e desalentados dos primeiros operários e das primeiras dactilógrafas modorra do dia-a-dia
pujantes eram as súplicas que pronunciavam em sânscrito as medidas exactas da imolação
assim seja disse o cabelo ainda farto mas branco banhava seus pensamentos febris
com firmeza apoiou-se no balcão cravejado de corpos estranhos
alguém lhe perguntou quantos anos
talvez cinco ou oito afáveis os risos dos simples
algum silêncio
emudecimento
e uma última explicação
são os que me restam de vida
talvez sim talvez não
sua última palavra
um sopro indiferença
carência de companhia do desejo
nos limites da arte furibunda
falecimento derradeiro ao anoitecer
porque não
a absoluta
razão
dos jumentos licenciados
dos poderes cariados
das matilhas políticas insalubres
dos populares rebanhos disciplinados
do tempo que se esvai dos dedos deformados dos indoutos e do conhecimento-sem-sabedoria
artrite reumatoide da cultura fibromialgia dos vade-mécuns
badamecos de longo curso
está chegado o tempo do ócio
às abas vulvares e rociadas
do pantanal remoto
os infiéis sufocam
nos rebentos odiosos
do cipreste morto
a lua cheia convidativa
adivinha os teus anseios
reflectidos em pálidas nuvens
tão próximas e distantes
o objecto em si
o erro da consciência
o tempo sempre o tempo
que passa
que não passa
que escasseia
que concebe
que bebe e é bebido
que morre e mata
ilógico
impiedoso
sempre a puta da consciência
e das coisas que nela navegam
no cornudo tempo psicológico
coisas que são e não são coisas
se a minha consciência é realmente consciência
ou se as coisas que o não são o são
e há coisas sem consciência
talvez
consciência
sem coisas
as adoráveis percepções amarrotadas dos sentidos pesarosos e escandalizados
suave milagre
a terra gira amalucada da mesma forma para os embriagados do que para os cosmógrafos de sua majestade daí nasce toda a ciência obsoleta estribada nas leis arrogantes das cátedras embrutecidas
desde criança que na minha falsa timidez vi nas palavras dos tratados que à força me impingiam a magna parvoíce das deliciosas ambições dos eruditos brutos embevecidos por discursos dignos dos mais extraviados sofistas
hoje poucos são os que lembram esses mestres barulhentos e ocos como tambores em dia de comício
a cada quatro anos nova arruada para um mesmo povo que sonha com amores de encantar e adormece no colo dos demónios-sempiternos
saudemos o grunhido do envelhecimento e a morte das instituições dos nobres-sem-tostão dos estadistas da argumentação falaciosa dos trabalhadores e das promessas ignóbeis dos sindicatos e corporações
sordícia que o tempo corrói
cidade dos cem portões e mil torreões
mil eram os alabardeiros
nos semideiros sonolentos estacara a cavalaria
nela os desafortunados soldados famintos sorriam-se dos estorvos da estratégia contando as horas nos dedos vacilantes
da sabedoria
sem que soubessem
que a sua única fé
era a morte
o remordimento do final do dia
a torrente plana do recreio da vida
consciência de pesadas vestes
o ameaço circunspecto de um cerceio no estuário do denodo
crime imperfeito de pestes ancestrais
heróis-do-descanso como é fácil e pouco exigente dar voz de comando no areal ó generais-do-arneiro almirantes-do-ribeiro-manso
ide
naveguem
sempre para sul
busquem e
rebusquem
novas terras
negras-altezas
mulheres
monstros
semi-deuses
diamantes e
rubis
riquezas
barca barinel e caravela
aproai-vos ao tempo
bolinas imperfeitas
singraduras silenciosas
abatimentos fatais
o maior perigo do mar é a terra
ide
pobres
presidiários
condenados
mendigos
aventureiros
e trouxeram nos porões sujos e fedidos
escravos
escravas
crianças
satisfazendo libidinosos anseios
no convés
especiarias
oiro e jóias
sândalo
história de porcos-negreiros
escândalo
gente tão forte com os fracos e fraca com os fortes
tão temente a deus como ao diabo
gemeu e rangeu os dentes
na hora da morte
enquanto os heróis
jazem
pó
nos panteões
nos mosteiros
a vida contínua
no fenecimento eterno
o deslumbre
do despojado
um único passo
em leve movimento
pássaros voando em círculos
na cegueira
do vento
glória na terra
à madeira sepulcral
ao vinho nupcial
o esquecimento das notas brancas do alaúde
e um corpo pisado pela
chama canibalesca
quando o dia termina
os corações
regressam
aos covis
extenuados
desesperados
aguardando a irrespirável ordem de despejo dos sentimentos
certeza única do rescaldo das marés-vivas de setembro
as folhas caem hoje das árvores da alameda com a violência do vento de sudoeste
caem na minha consciência com todas as dúvidas de todas as ciências
merda para as ciências
para os afiliados das academias
capitulam como se não tombassem e o vento de nordeste amainasse ou não existisse no quotidiano filamentoso das massas anónimas
uma mulher
tresmalhada
um padre
por benzer
uma loja
da mão esquerda
contos velhos
por cicatrizar
no canavial
queloidiano
a loucura
abraça
a cidade
o repelente
de insectos
debruça-se
à janela
o crepúsculo
tarda
nos olhos
tristes
dos transeuntes
as coisas
nomeiam-se
transitórias
na desordem
do quebranto
só o rio
desagua
no mar
a terra abraçada por vaticinadores
desvelos em tempo de outono
impaciência vertida por deuses embriagadores estremecidos em ferais a engrandecer as almas mortas
campanários velhos gerados nas águas cristalinas das fontes secas
antediziam a dádiva do fim da brecha entre céu e terra
do meu quarto viam-se os jardins anediados pelas névoas matinais
trespassando incólumes as entranhas das flores
bem perto o ribeiro murmura embalado por estilhaços de sol
nele corre o pretérito incendido pela música cega composta pelo gotear surdo das cascatas
e a dor da remigração caiada por agonias
um poeta bondoso
sentou-se na minha mesa em convulsiva e falsa reconciliação com a profissão
falou de amor da revolução dos oprimidos do partido das massas da força do povo da virtude do vício da verdade e da mentira
de tudo o que cresce
do que morre
das leis do acaso
dos seus livros-sátiras
e suas consequências
bebeu o café que paguei
os poetas-profissionais andam sempre à míngua de óbolos
tamborilou com os dedos na toalha desgastada pelo lodaçal das palavras sujas de anos
cerimonioso pediu-me um cigarro
e emudeceu na nuvem do fumo pecaminoso
estupidificado e temente como alma-viva constrangida ao crematório
estou aqui por estar
nestas páginas
grotescas
doentias
sem fotos
dos antepassados
putrefeitos
espelham a transpiração da noite acesa
nos feitos dos que partiram e que
tiveram nomes
cartões bancários
carros velozes
mulheres
alguns filhos
um círculo do nada ao nada
bastardos
as mãos acordaram
subitamente
sustendo a curva da estrada
no reflexo labiríntico
da malícia
estar por estar
o poeta
o trem
as letras
rasuradas
pelos trilhos
o poeta
a gare
a pulsação da chuva
perpendicular ao
regresso
na vertigem
medonha
da escuridão divina
apenas estar
sem ser
sem-tempo
ouvir e olhar como quem vê e olha
entrámos no túnel
parecia não ter fim
o cheiro a carvão queimado
sonho afogueado e feliz da puerícia
onde a palavra agora se confundia com saudade
e a arraiada com eternidade
o sidónio caminhava lentamente na calçada romana a vida consumira-o
a morte do único filho entregara-o à sua própria morte
tinha sempre os olhos rasos de água plácida lagoa desabitada
o sidónio existe digo eu
existe porque eu existo
quando ele morrer eu deixarei de existir
se eu morrer primeiro será ele que perderá a sua triste existência
o mundo
será um amontoado
de destroços
sem lembranças
mas a realidade verdadeira ou falsa existe
e eu
vindo sem saber donde
ouço o eco de longínqua galáxia
no vazio cósmico
dos destroços de vidas passadas
e no ar
o cheiro adocicado da seiva do martírio inglório
lugar distante onde os cristais brilham no topo dos mastros amarelados
afasta este cálice de mim este é um país de escombros
múmias e palhaços à presidência
pierrôs e arlequins ao governo
histriões e parlapatões ao parlamento
vendilhões de tradições
esquerdas e direitas e nauseabundas arqueações
tratados convenções e falsas intenções
mutilados mentais transfiguram amor em ódio e pedem-me que os aceite no meu regaço
turba de corsários reinventai-vos forjai-vos bebedores-de-cataménio apresentai-vos aos rebanhos de gado miúdo com nova catadura convencei-os de que não cagais
merdosos fraldiqueiros pajens de vossas ventosidades
vendedores de quimeras flatulosas bolsas fartas de ignomínia insensíveis aos
soluços biliosos nas veredas e às tenebrosas alcovas onde as brisas se embebem de penúria e
as flores silvestres se refugiam nas pedras roladas do muro derribado
em todas as palmas das mãos abertas ao firmamento com cravos ferruginosos expostos à adversidade estulta ilusão dos desvalidos que vos alimentam
imemorial voo da prostração da fome cercada por um mundo gerado pelo desdém do esquecimento
nona hora na quinta
debaixo deste céu
todos os homens são iguais
vencer os poderes da natureza da impermanência oculta na sua concha dourada
esta é a terra das armadilhas
dos génios orgulhosos talentos do rocambole de terrail
servos da devoção e da inacção
um anjo desamarra-se do mais profundo dos sorvedouros e esfrega os olhos na face poenta da claridade
paciência diz-nos
perseverança bisa
esperança insurge-se
caridade desespera
compaixão enfurece-se
tudo com feridas abertas infectas e virulentas
voz que clama e ruge num planeta em pranto
ora
estou para além
da ilusão
do mundo
de mim
por segundos
toco o real
suma heresia
de um crepúsculo
final
o
norte
da infância
partir para o norte
definitivamente
decididamente
irreversivelmente
assassinámos a realidade dos montes desertos
giesteiras do nada contorcem-se ao som dos raios de sol
na encosta os povoados são bandos de aves em devaneio
e a estação deserta apenas uma passagem negra e húmida na voz do silêncio
crisálida ilusória de alma tumultuosa
contemplada num fio de prata a emergir das montanhas
a vereda vazia da brisa mental
a morte derramada nas águas verdes do lagoacho
da erva-da-fome
que venha o manto róseo da solidão e da enarmonia
contraponto do fatal homicídio do pensamento
e do tempo
o sul
da adolescência
tardia
mar
mulheres
sexo
e rum
para amar
onde o mênstruo das águas
circula serenamente
música divinizada
dos passos da morte enleante
meus amigos golfinhos do espichel
olhos nas lágrimas do oceano arado por mágoas e alegrias infindáveis
hoje digo-lhes definitivamente adeus não nos tornaremos a ver amigos como tantos outros nascidos nas derrotas dos navios mercantis nas jornadas costeiras nos portos atlânticos e mediterrânicos e nos bares dos cais das amarrações
acidentais como vós criaturas marinhas que ides continuar a vossa dança noutras vantes
na graça dos cânticos faustosos erguidos ao paredão das vagas
vagueio pelo terraço
vejo-os no reflexo da barra
no assombramento dos velames espectrais
as estrelas
entravam
pela frincha
do través
na serenidade
da noite
o mar a sul
jazigo de naufragantes
dos erros de rumo e estima
vítimas dos rituais macabros de torrentes balsâmicas
devotava-se descontínuo aos surtos lunares
párpado cerrado ao destino colorido de insustentável penar
e dos gestos das tormentas numa alma seca de amores
a despedida é uma parte de nós que se arreda
é um amor que se dá sem se dar
um dom sem palavras ou gemidos
um padecer que não nos basta
no infeliz apartamento do mar
qual a menor distância
a maior separação
a mais pequena ambição
a maior paz
linha
recta
ou
curva
elíptica
às de espadas no tempo que passa
às de copas nas pernas virgens do desejo
brota a túlipa-negra
da rua escura
nada há sem ela
que me importa se os carris estão fixos na sua trajectória e as estradas delineadas por montes e vales e se cada cidade do mundo tem uma estrela que cai sobre ela à hora certa norteando a rota do mareante sem tino se o teu jovem rosto é o sossego insistente desta tarde epidérmica em que as abadias envelhecidas desagravam a soledade da derradeira rosa no cálice derramado se o novíssimo cárcere sangrante de neblina púrpura está vazio e manso sem o menor estrépito da ampulheta
fundamento
dos elementos
verticais
das sombras enviesadas das patas da existência
no firmamento
o tempo
jaze
numa translucidez
concreta
e num
equilíbrio
couraçado
por
relâmpagos
que regressam
em cada ensejo
à fonte modelo
da inocência
que invejo
na alma desvendada
pelos dedos
da morte
branqueada
no coração
das aves
que
aos primeiros
alvores
perfumaram
o céu
com vozes
lustrosas
para além das montanhas ressequidas de longas rugas a dança circular das estrias
das nuvens esventradas por cimitarras malsãs
das cidades incendiadas por archeiros inoportunos
o silêncio aborta nas vísceras do desalento
o feto apodrece no ventre nocturno da sinagoga alcoolizada
o nascituro sucumbe às mãos da impiedade do sol que se põe
as ruas estão de luto vazias timoratas e entontecidas a mesquita desprezada
em cada esquina a semente escarlate da discórdia
em cada porta um símbolo execrável desenhado a sangue novo contrastando com a falsa religiosidade da cristandade
nau que se embebe nas suas próprias asas
proa virada às vagas quentes do invejável cantar pelágico
o través cercado das mais violentas blasfémias
um mar de todas-as-dores tingido de vermelho-vivo
trágico-cómico
e sem que se veja
há algo que percorre o tempo
corroendo-o
traça que devora lentamente a catedral do acaso
ninguém escolhe a alma visceral ou a dádiva de um nascimento desapropriado
os passos contados ao peso e com o gume acerado da velha respiração arquejante
onde o amor se apaga e o mar se encapela
medito na lei que desconheço
aves silvestres sobrevoam a noite
o sono morreu nos portais da angústia
nada de novo
no tudo-visto
a árvore da vida entoa seus cânticos fúnebres
lamentações da irmandade dos seios com as ancas sustidas entre muros do rio calmo
folhas asfixiadas pelos ventos mutantes
ápices que consomem os frutos ainda verdes e a palha seca da seara por ceifar
os leitos de amor desfeitos cumprem a profecia
de idosas ânsias coroadas de espinhos taciturnos e neutrais
virtuosa arbitragem das linguagens ulceradas
sepulcros fermentados pela ambição
demais visto
ao fim da tarde
a luz desceu magnífica
sobre os meus ombros
o tempo escasseia
ergui os olhos
fingindo pensar
com a gravidade
de uma súplica
tão artesanal
como a paixão
o embrião da solidão
no prado a égua agitava-se a cada respiração
calcando desdenhosa a erva do templo
invadido por uma multidão de crentes minúsculos
insignificantes
uma cigarra
não páres de cantar amiga
vem ver o meu pensamento
a ressumar amarguras
na planura os lábios vegetais as asas atrozes da luxúria
sombras que se iluminam
na sonoridade
do impossível perfeito
estou no campo é natural que existam formigas num percurso incompreensível um cão ladra ao longe enquanto alguns pássaros vão preenchendo a paisagem
um cão
um latido
um vagido
um verso lido
sem arte sem ti
sem a pontuação dos teus seios
as formigas são milhares num carreiro que parece evitar-me
umas vão outras retornam tocando-se amorosamente em que estarão a pensar
eu penso nos meus mortos
sentado no milenar banco de pedra da quinta apuro a visão o olfacto e a audição
de quando em vez ouve-se uma rã enquanto duas vacas pastam na quietude da encosta
a noite
debruça-se no orvalho
um corpo ascende à janela dos fundos
é bela
sonho que oculta devaneio
deixo de a ver
leio nas formas apagadas
de permeio
a essência do desejo
lâmina temporária
de humana crueldade
a minha tristeza que não é mais do que uma plangência sem causa deve ser idêntica ao insulamento do colossal aranhiço que deambula na banheira
ainda não me decidi a aniquilá-lo não é este o seu tempo diz o eclesiastes digo eu justificando o sumo da misericórdia
não desejo ou se desejo finjo não desejar tomar banho não me apetece nada trotear a buena-dicha
dormir sem sonhos tão-somente
tão-sem-tempo
o peso das revelações
é sempre um fragmento
da melancolia
abatimento que não cala
o corpo dolorido pelo medo cinzento
humilhado pelo desconcerto mudável da
esfera toldada de um qualquer lugar feliz
o amor e seu horizonte
de utopia e boqueirões
estava presente no rumorejo
da noite e na blandícia
erma enquanto
lá fora o rafeiro ladrava
às ramagens e rameiras
com a ternura
de quem se amplia
e porfia na capitulação do espaço
é triste quando os nossos olhos
já não vêem
a alegria esplêndida
do doirar do dia
o desassossego da dança
frenética de
uma tarde ventosa
ou a paisagem
revestida a anjos
no voo em fuga
das mulheres nuas
as ruas
cantam
sobrepostas
o burburinho
do retorno
à mesma
existência
opressiva
sem rasto
das horas
de metal
poisadas
na transparência
do cimo
das árvores
em penitência
quando era petiz flutuava no ribeiro alheio ao perigo e penetrava a realidade com a claridade simples dos santos e inocentes nesse tempo de paz
bastava-me
consumia as estações gloriosas
o tempo discreto das amoras
sem confidentes
e havia na aldeia um triste homem
tinha nos olhos
a inquietude do tempo
procriado por gerações
de inúteis
seus ombros
desconheciam a amplitude
da sensualidade
e o odor táctil das chamas oblíquas
que convergem
na fissura de todas as escuridões
trazia a bagagem
às costas
o mundo apagara-se
nas espáduas
escavadas
pelo declínio entrançado
do escurecer
num lugar tão distante
de andrómeda
onde se haviam urdido
todos os futuros
e aberto
todos os covais
agora estava junto de si
como albatroz só
no grande mar oceano
adormeceu isento
de revelações sob a
ramagem de um ulmo
tendo por cabeceira
os reflexos do nojo
eis que a claridade surgiu
fastienta escorria pela forte e farta cabeleira de deus
prostrando-se aos objectos deteriorados pela maresia das memórias
uma melodia
derramava um som
impuro enarmónico
nas veias do muro
da casa deserta
quis escutar
mas estava surdo
quis falar
mas estava mudo
aquela amaurose que nem o mais genuíno dos concertos concerta
estamos juntos nos meus pensamentos ébrios voláteis ternos e desnecessários
eu e eu
em criança quando chovia abrigava-me na igreja da aldeia e rezava trinta padre-nossos e cinquenta ave-marias pelas almas do purgatório
achava como quem não acha nada e não tem nada para achar ou que achar que as beatas eram santas mulheres e os padres santos homens mas não comiam-se mutuamente sabe deus só visto porque contado ninguém acredita enquanto soletravam credos em latim
ah portugal dos enganos e dos bastardos dos falsários e iletrados
na minha virgindade corpórea e intrépida inocência espiritual vivia a escuridão masturbatória das noites-sem-fim em desvirtude boca cerrada esgaravatava para aromatizar os pérfidos pensamentos julgando-me o maior dos pecadores o merecedor das penas eternas
pareciam-me felizes as pedras as árvores os rios e as nuvens sem desejos ou instintos
lamparinas alumiavam-nos as silhuetas nos fins de tarde ao som das novenas ou das missas de sétimo dia
em latim
sempre em latim
como convinha a quem nem sabia ler
as beatas adoravam todo aquele magnificat e outros prazeres nupciais decadentes foda-santa aspergida a água benta conação borrifada por sacrossanto-esperma
não havia rata que resistisse ao encanto de um pau-santo e entre paters e avés iam nascendo uns tantos
enquanto os chavelhudos-domingueiros tiravam ao senhor abade respeitosamente o chapéu
estarão suas santas-mulheres no céu
afinal era obra tão necessária ao povoamento
envelhecer faz-se num grande silêncio
nascer e morrer a cada instante
saber estar desacompanhado empoleirar-se no trampolim pendente dos acontecimentos
sem criar raízes no tempo
levantar
esquecer
renascer
no parapeito
da impermanência
sem direcção
filosofia ou
ciência
ser o que não tem nome
tocar as vestes da vida com as mãos dormentes
o nada que é tudo
soberano e
adocicado
pelo amor gratuito
nas alegrias
nas feridas
profundas
da infelicidade
bendito o que está em todos os lugares e em nenhum
enquanto a vida vai respirando a poeira que se acumula no fluir das horas
o sino
aquele som inconfundível das horas
envio-te uma mensagem nas asas do vento
já não és aquela jovem terna
viçosa como o jasmim da floreira de pedra
do jardim desocupado e escaldante
és mais uma no tempo de verão
que flutuou nas águas redondas
do dulçor de meus dedos
e agora
sem amante que te contemple
a eterna ausente
um abraço
voltei a ver-te como te vi
na primeira vez
desabituara-me
agora um outro céu alberga o alento
ninguém sabe
que mentimos
a nós
e
omitimos
aos outros
suspensos no prodígio de um simples olhar
na tarde o enlaço
um beijo fugidio
e um novo adeus
quantas vezes quis dizer que amava
levantar a voz ao céu surdo
ter na alma as pupilas das nuvens
e nas mãos o sacrário salgado dos despenhadeiros
falemos então digamos as palavras frenéticas da borrasca
o que nos é proibido
a verdade cai como mortos no outono e as lágrimas das crianças com fome
corpos estendidos no areal sem fim
cercada por bruma laçada converte-se a uma qualquer religião mente e minto
vamos diz o amor é apenas instinto
uma desculpa para estar vivo
visitei-a na mesma rua de sempre
junto ao mar
depois de longa viagem
percorria-a um hálito de tristeza
a certeza do fim
estava doente
os ossos iluminados
a carne em sombras
dá-me a tua mão disse-lhe
sabes que vamos morrer
morremos sempre
nas ruínas do prazer
não chores
afinal a morte na orla da praia deserta
deixa nas covas do areal nossas dores
não chores
vá
dá-me tua mão
como é cruel o tempo
sou o que te espera sem esperar
o que julga ser a tristeza natural
que nada busca nem quer buscar
que sempre aceita por bem o mal
que acontece e que o não magoa
o que lhe parece que chamam dor
que vem e vai como a ave que voa
e mais não é do que de alguém favor
sou o habitante lunar
o monstro voador
o senhor do mar
apenas mais um sonhador
que nada tem para dar
nem ninguém para amar
e nessa suprema liberdade
sem ser e nada ter
feito nada e verdade
poderei morrer
sem a crueldade do tempo
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