Download dos textos de ANTIPOESIA ou a insustentável arte da falsa erudição em –
ANTIPOESIA
já não sou humano não trago nos bolsos esfarrapados a pestilência da ganância e da hipocrisia a camelice do povaréu a encardida delinquência dos parlamentos e das presidências mumificadas em rituais diabólicos sempre conspurcadas pela cumplicidade dos desgovernos rocambolescos maneirismo do século alimentado por quadrúpedes ruminantes de galhos redondos e ramosos
pertenço a outra raça estirpe bravia em supressão
raiz desnuda e insondada a errar pelas estepes gélidas da fome anacrónica do espírito rude e selvático
não clamarei pelo pó da esperança
nem pela violência sanguinária dos pássaros azuis que giram na meia-luz do logro
arcanjos ultrajados
remetidos ao limbo na resignação violenta que cresce e esfria no reflexo das amendoeiras floridas da terra descoberta
no hálito o sabor amargo do sol que se consome no horizonte das ânsias não
não erguerei as armas inflamadas
revolvendo as estrelas chamejantes e os cometas inesperados
quero um novo mundo sem o excremento ignóbil do poder e da injustiça sem deuses sem senhorios e servos da gleba
os juízos universalmente válidos juízos eternos de quem não tem mais nada com que se desassossegar e
que consagra o seu tempo às banalidades enquanto aguarda a indeclinável morte
olho para o relógio que não tenho está na hora de passear o indomável
tem as suas urgências
mas o indomesticável já não existe
eu não tenho relógio e as necessidades são somente minhas
ouço o relógio da torre basta-me
nas horas neutrais
chega de querer ser seja o que for o que for é sempre o que ainda não é
de contar para as estatísticas da angústia das almas sôfregas de ruído e lágrimas mais
de ser lido
nesciamente lido
estupidamente citado
que venham as metafísicas
que venham como frutos podres
do velho abrunheiro envolto em sarças
sanguinolentas
venha a alma
venha o deus-morto
venham virgens intocadas
que venha a imortalidade dos incontaminados
que venha a razão pura dos iluminados
e a ilusão dos moribundos
e a raiva dos furibundos
que venha a dúvida e o escrúpulo
que venha o temor e a ousadia
a coragem e a cobardia
que venha a exactidão
que exactidão pode haver para além da realidade que é apenas minha
a cada um segundo a sua consciência
a cada um segundo a sua realidade
dêem-me mais um sentido
nada ficará de pé
afinal a consciência não se julga a si e tem por maleita a fé
sabe o que sabe
e mais nada para além do que sabe
vejo com a clareza de quem vê os limites da razão
o esterco das filosofias em ruínas desmoronando-se ruidosamente no tempo e no espaço
mas o espaço-tempo é uma propriedade da consciência e também das coisas
das palavras das letras e sílabas
deus não casa com a razão
nem que seja a pura
o poeta a flor o corpo a virtude o amor
palavras inventadas que se colam à pele adormecida
o agrado persistente da chuva a escorrer pelas penas da estátua e no mármore cinza dos pássaros nocturnos
a imagem inventada de deus
ofertada à terra lustrosa da alvorada
soluços e lágrimas do desejo trajado por letras de amor tão adornadas como o guardanapo bordado pela velha criada
ou do jardim cuidado pelo jardineiro corcunda
o mundo definha nas miseráveis obscuridades
pendentes das frestas pardas dos livros vindos e vindouros
evocando as flores ressequidas da justiça lamacenta
ajoelhada em aras de rostos rasgados pela putrefacção verminosa das nuvens sombrias
tempo que se escoa pelas fendas das ramagens sem ninhos
tão belas as aves na sua prática matutina cantos e cantos harmonicamente sobrepostos de quem canta porque tem voz para cantar
canta porque nasceu para cantar
cânticos fulgentes
cansado desta pátria ascorosa
mas eu não tenho pátria
os imbecis nacionalistas
os críticos mentecaptos
patéticos politólogos
idiotas de pederneira crestada por reflexões ineptas sobre o arco-da-governação
o arco-do-ladrão
tocante
comovente
recapitulo os fogos ancestrais do ventre das imaculadas
diluo-me no orvalho do princípio de todas as coisas
coisas-sem-sentido coisas só
as noites-pontos-de-luz não deixam de ser frescas
as brisas do arcaico coração salgado enevoam o entendimento asas de falsos-anjos sobrevoam o remorso perpétuo olhos vagos pesadamente inclinados sobre a carne embriagada
há poetas que só falam de anjos e que têm visões de budas excêntricos e imaginações compostas de veias floridas querubins da cegueira
soberbos nas suas espirais místicas são os estandartes das orquídeas do pântano carmesim
não consinto que me devorem que me invadam que me usurpem
que me digam fim
a disciplina partidária é para ignaros
sempre os ignorei
enoja-me a subserviência
o oportunismo
a decadência
os abutres do lusco-fusco infernal
o sacramento da irreverência e da subversão é sempre definitivo como a velha bola de trapos da infância tão colorida ao pôr-do-sol
vi tudo o que tinha para ver
e vivi tanto no tudo que pouco mais tenho para viver
na galeria norte da mansão
livros e quadros desalinhados
a madeira envelhecida pelos
relâmpagos
regressados de viagem
na carruagem de um outro mundo
arrefece nos fogos bravios
de mágicos ventos e bruscos pensamentos
a excelência do nada estendida no leito vago
dormita na impensável pausa do verão impudico
os grifos da alba
vejo-os no demo que se ergue do forame pálido
embuchado e ardente
oxidado hipócrita do despertar
mistério sujo do poema iridescente
cínico anoitecer da geada que teima em não vir
abutres-de-capuz que se transfiguram na palavra bando
maltrapilhos nascidos das entranhas da descoragem
este povo que carrega o jugo insípido da bestialidade nasceu do amor liquefeito de infelizes e enfadonhas palmas perfuradas
anojado abatido engaiolado opresso por armadura unhada a espadas cintilantes
salpicado por gotas efémeras de arenosa alegria embebida no sebo da história
falsa jovialidade amestrada
lulus de circo
engolidores de fogo-fátuo
saltimbancos do medo incandescente que floresce silente
rafeiros calvos de profanas honrarias
ah que gente pategos
saio e fico-me pelo alpendre
sinto-me órfão as formigas cercam-me enquanto morro por momentos
a morte é sempre uma dádiva na minha idade por vezes ouço os seus ecos as pérolas das suas lamúrias a espuma branca do seu vinho
abre-me a porta do desfiladeiro
derradeiro prazer perfumado a nove das mais belas flores
morrer por instantes para o remordimento
o passado sim o passado
a voz dos mendigos dos fanáticos dos ladrões e dos assassinos do espírito
não tenho pátria já o disse mas nada como engrandecer a soberba que nasceu no dia em que nasci
este país enoja-me
a reminiscência
quinta do crestelo
a noite declinou vacilante nos lenhos das árvores
a serra era um mar amplíssimo de granito talhado por lágrimas de gelo
as pedras também choram
a primavera acoitou a neve e abriu os corações dos botões a florir
uma borboleta perdeu-se numa pétala reluzente esculpida no seio de um sublime arbusto selvagem
o meu perfume misturou-se com o jardim de folhas frágeis e com a fragrância das águas do lago
a mãe pata e os seus três filhos exímios comedores-de-moscas percorrem-no como se dessem a volta ao mundo um mundo melhor do que o meu
o sol iniciou o seu fantástico repouso
os animais adormeceram no regaço do luar enquanto eu submergia na insónia insensata do amor
o m tinha-me trazido um livro autografado sobre a transumância
descendo de pastores do sete-estrelo e dos cometas gloriosos da aurora
tenho no sangue o aroma de todos os mares
serra e mar
o largo da aldeia
rigorosamente geométrico
como a paisagem a cândida paisagem da infância
tão jovem
no frio da noite
no tecto do mundo as noites glaciais do planalto a casa do juiz na nave da mestra o curral dos martins
a lapa do ronca no relvão do vale do conde
o crepitar do fogo na invernia das noites de verão
o degelo
os dedos crispados
perfuram o silêncio
cicatrizado a cidade com a alma queimada
escava os passos
sonoros do alpendre
na casa rosa
soa um relógio
de horas perdidas
orfandade da penúria
beijo as mãos daquele lugar distante
implacável metal que lavro a sangrar com o dedos
dor de canto soluçante dos escravos acantoados em torpes porões
país de negreiros e santos adulterinos
sou um novo transumante
conheço a verdade das serranias sem gente
dos mares sem os grandes veleiros de antanho
não é minha a vossa raça
cambada de imbecis corja de cobardes alarves de gel gerados nos leitos pútridos das cidades em escombros
campónios do modernismo
estou a traduzir um poeta-morto expirou antes de ter sido inumado
pouco entendo do que escreveu mas traduzo-o
nem sempre
as palavras
vivem como anjos
nos lábios abandonados
dos poetas-mortos
na mesa circular do café dois surrealistas e um experimentalista
lá fora a correria dos operários dos bancários engravatados e outros não-sei-quê-esfaimados
espremidos não dão nada
nomes de poetas mortos e por morrer
este é o meu preferido assentimento geral
a colagem tem sempre um limite
o cadáver-esquisito um fim
para mim
suicidou-se digo
mas
um poeta não se sacrifica nem se suicida
diverte-se com a poesia com as palavras ditas e com as que ficam por dizer palavras soltas e versos alados que permanecem por compreender
eu não escrevo poesia
antipoesia
divirto-me com o sem-sentido absurdo da desconstrução poética
nãovosaconselhoaleituradosmeustextosétempoperdidomalgastocameliceavossaquaseidênticaàminhaporqueescrevoquandodeveriacalardefinitivamente
trataidosvossosfilhosolhaiporvossasfilhasenquantodormisqueéquandoasvaginasesquentaméevidentequeestaistãocansadosdemimquantoeudevósnofundoavidanãoémaisdoqueissocansaçorotinasonhoealgumsonorepletodepesadelosassombrososcuidaidevósedevossasvirtuosasmulheresemaridostantossãoossantosamadreteresaopapafranciscoquelembraopaulinhodasfeirasedosmercadosbeijosondedeveriavingaravergastatretasadoraistretasbajulaispolíticosepoderososodiaisletraseletradoseutambémapazestejaconvoscoelaestánomeiodenósdizovigáriomentirososevandijasalafrário
naovosaconselhodetodopuraperdadetempo
os homens são todos dissemelhantes e tão iguais
como andorinhas que cravam os bicos sonoros nas margens das nuvens poucos são os que suportam os naufrágios dos deuses aos ventos uivantes
o luto das mães jazentes na alma dos filhos mortos
os peitos mirrados de leite fundem-se com a fome
se eu pudesse
cavalgar o vento
e ter-te
nas pontes fulgentes
que construo
impassível
dócil letargia
o silêncio do granito no fundo da alma
ter-te
dia
noite
o teu espírito
o meu corpo
sem amantes
tu és um deus ciumento
odeio a cidade o betão armado os macacos-de-azul armados
fedelhos nauseabundos
crianças algemadas simiescamente ruas de árvores doentes e patéticas as máscaras repugnantes de uma falsa-civilização
o embuste da autoridade
transeuntes contaminados
a descompostura das gentes
jurisconsultos da trampa
as árvores centenárias emudeceram levedam peçonha nas ruínas da sanha e da avidez gerada nas crianças rebeldes eclipsadas pelo arco-íris tão íntimo à descoloração da sensatez
a cidade submerge-se nos asininos monumentos
no cheiro pestilento dos caminhantes e no sorriso espinhoso dos turistas de marmita ao peito
arquitectura assombrada
por espectros pardacentos
nacos de pão verde fundidos nas bocas perfiladas
hálito negro dor esfarelada
bolor da modernidade
o pátio das orquídeas estuprado
havíamos subido as escadas cinzentas do conhecimento formal
as antiguidades pagam-se à porta
numa das salas um homenzinho estilo mediterrânico olhava demoradamente um quadro desbotado
muito mais belo no meu livrinho de arte cores vivas contornos nítidos
ali estava embaçado
continuou a olhá-lo como se fosse uma estátua grega mutilada em eterna contemplação colocava com seriedade as mãos no queixo curioso
fiquei por ali
olhava o quadro olhava-o a ele
perdi a noção do tempo
olhava-o a olhar o quadro e o quadro a olhá-lo a ele
um van gogh em amsterdão não é diferente de um van gogh de paris ou de berlim donde viria tal erudição perguntava-me o que estaria a ver a estranha personagem para além do que eu via
a cor meio-morta a composição melodia ou sinfonia a pincelada enlouquecida pelos empastes do infortúnio a alma sofrida do criador
certamente um erudito
descemos juntos a escadaria um amigo aguardava pacientemente tinha o estilo próprio de uma bailarina inquieta a redemoinhar numa caixinha-de-música
num francês soariano disse sublime
o amigo questionou-o où aller nous
putains
voltei ao museu
o quadro uma contemplação de mais alguns minutos a demanda existencial
nada libido inalterada
definitivamente não sou um erudito
uma gota de água
passos
na pulsação
do silêncio lunar
sem que mais além alcance
do musgo cravado nas paredes da colmado
assisto ao raiar do dia
natividade nas tuas vísceras
dispo-me na luz que cai oblíqua do céu
com a mesma vagareza com que fumo este cigarro que me coube em sorte
altas horas
escrevo
a palavra
rosa
e renovo
rosa
tantas vezes
que rosa
deixou de ser uma flor
e passou a ser uma palavra única da minha
arte
inútil
de
poeta
o poema pode ser visto
forma colorida sem conteúdo
tal flor esvaziada da sua corola
pode ler-se
e ouvir-se
construir-se
milimetricamente como as crianças obram castelos nas contentes dunas da infância
comprimir-se na medida dos nossos intentos
adivinhar-se
expor-se
ou esconder-se
calar-se
poemas experimentais
a inconsciência da prosa nublada por brumas poéticas bárbaro
novas-velhas formas de dizer um poema no vazio
pausa mudez
vanguardas toujours les avant-gardes
provocação constante ao palpável
à convenção
o prazer da criação
de não ser lido
compreendido
comprometido
com valores e imperativos éticos
o desvalor da normatividade
livre
liberto
até à destruição total
revolução integral em explosão interior
orgasmo de palavras
sílabas
letras em suspensão no espaço-tempo
penetro o âmago da criação
miscelânea de elementos
caos
na exclusão confinada de todos os ditames
lógicos ou absurdos
temperados por uma razão obsoleta
liberdade imaginação que transcende os limites do universo observável
excelsa imperscrutável
ilimitada
destruição de todas as crenças valores grandezas rigores estéticos
o óbito das instituições
derrubados os regimes
os muros das prisões
templos e altares
um crematório para a governação
igrejas políticos e outros falsários e ladrões
sacerdotes e filósofos espraiados pelas morgues
juízes políticos e salteadores
crucificados
diga-o pôncio pilatos
mórbido e agradável aos sentidos
liberdade liberdade
o grito
poema-sem-regras
poema-de-ocasião
poema-sem-razão
ou sentido
antipoema de quatro dimensões
insubordinação que feneça a tradição
futurista surrealista concreto-experimentalista visualista
apenas negativista
o poeta é poeta na antipoesia na orgia de frases e de palavras aladas
pertenço à raça dos insubordinados
a audácia da incompreensão
negação ética do rebanho entediado e imóvel os críticos irão ignorar-nos
não temos método nem obra que poderiam eles dizer esses asnos erodidos
merda para este mundo para as autoridades burlescas religiões canibalescas justiças de débil erecção governações veadescas ritmos e anacronismos
merda para tudo o que não é acaso
as palavras são palavras
e as coisas coisas
palavras-coisas não são coisas e coisas-palavras não são palavras
desmascarar o sentido das palavras é assassinar as coisas
as palavras têm um obscuro movimento próprio
as coisas movimentam-se
o que se movimenta por si sem causalidade nada diz para além do seu movimento
porque é que o silêncio não há-de ocupar o lugar da palavra
o vazio o do poema
o acaso da criação num espaço de profundidade infinita como o azul-klein
só o leitor pode alinhar o poema do antipoeta colando os fragmentos no espaço limitado da palma da sua mão
mordendo-o
retalhando-lhe a carne
demolindo a essência do inverosímil
os fragmentos da realidade una e indivisível
as palavras estão aí soltas livres associadas às omissões
pausas
vazios
para serem enfarpeladas e alinhadas como soldados meticulosamente compostos na parada
o espaço-não-preenchido é o alimento da alma
a purificação do espírito
a aniquilação da razão
da metafísica decadente
não tem significado
não é poema nenhum
o leitor dá-lhe um significado
constrói um poema surdo
mas há o significado-do-sem-significado na loucura
ah a arte da loucura
do escritor audacioso com uma imaginação que o transponha e com coragem para enfrentar o exílio das águas narcotizadas
a esquizofrenia do tempo a escoar-se da ampulheta fragmentada
mesmo nos instantes em que o coração parece querer apagar-se desenho as letras impacientes da orfandade insubmissa
a canção da vida corre lá fora nos canaviais estercados por espectros infectos entra pelos terríficos portais dos sentidos em desesperança minados de insectos lacustrais
amanhã ireis ver um novo dia
as folhas estremecem
desejo renovado nova experimentação revelada
a monotonia das metas inacessíveis no neo-experimentalismo disbúlico
as astúcias desfolhadas com a saliva coagulam no canto dos lábios azulados
os futuristas os surrealistas os experimentalistas
os neo-experimentalistas
neo-tudo
o nada da palavra que se perde no espaço vazio e branco
a negação do sentido ou a sua afirmação na tridimensionalidade do absurdo da colagem
um eu que não é um eu real
construído sem alicerces pela imaginação delirante repetitiva ou novel indescritível incompreensível
o silêncio da exclusão transfigurado em realidade a mentira em verdade
diz-se o que não se quer
e o que se quer tem a leitura marcada nos costados das palavras envelhecidas monotonia da literatura cordelesca do século
o texto circular penetra o leitor que finge compreender o inatingível e ulula a intelecção do desconhecido e diz entender como quem finge saber e não sabe ou cria e não sabe o que cria e se cria
o criador sem consciência da sua criação
o observador sem a real percepção do inconsciente negativista do artista
destruição construção
massacre das ideias obsoletas
configuração da contingência
e assim ordenadamente como quem semeia e colhe sem que se aperceba do valor e espécie do pão
desconstrução
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