Há um sufoco no meu coração, como sufocam todas as almas que aspiram à liberdade. Tudo o que fazemos, tudo o que escrevemos é o resultado inevitável dos nossos condicionamentos e onde estes florescem não pode existir liberdade.
Com Krishnamurti, podemos afirmar, que liberdade não significa estar livre de alguma coisa, seja do que for. É a mente, em si mesma, que é livre. É um sentimento extraordinário, a mente ser livre em si mesma, conhecer a liberdade pela própria liberdade, a liberdade sem motivo.
Ora, se o indivíduo não é livre, não vislumbramos como possa ser criador, como, em rigor, possa ser o criador da obra de arte. A palavra criador não é aqui utilizada no sentido restrito do artista que pinta um quadro, do poeta que escreve poemas, do cientista que inventa novas máquinas ou do artífice que engendra novos objectos. Tais indivíduos, não são realmente criadores, podendo quando muito ter inspirações momentâneas, já que a criação é algo distinto. Só pode existir quando há liberdade total. Nesse estado há plenitude e, então, pintar um quadro, escrever um poema, talhar uma pedra ou um tronco de árvore, tem um sentido completamente diferente. Já não se trata de uma mera expressão da estrutura da personalidade, nem o resultado compensatório de uma qualquer frustração, nem a busca de prestígio, de compradores ou de assentimento.
Daí, talvez possamos afirmar, que apenas os “inocentes” são realmente criadores, que talvez, apenas eles estão em condições de criar algo novo.
Os condicionamentos que nos são impostos pela razão, a que crianças e loucos são alheios, permitem-nos a leitura de uma nova realidade criada e o novel só pode nascer do que é em essência livre.
Na poesia, será provavelmente o surrealismo, que melhor se adapta ao conceito mencionado, enquanto que na pintura, será o da abstracção depois da abstracção, entendida como ausência de toda e qualquer legibilidade, interpretação figurativa, intelectual ou simbólica da obra.
Mário Cesariny, descreveu o surrealismo como o que existe de mais parecido com a poesia. Algo que não é possível ensinar – “tudo o que é pedagógico é muito mau. Tudo o que nasce como revolta é um tormento. O surrealismo foi um convite à poesia, ao amor, à liberdade, à imaginação pessoal.”
Foi e é um convite generalizado a todos os indivíduos para que sejam origem da obra de arte, ou seja, aquilo a partir do qual e através do qual a obra seja o que é e como é, o que constitui a sua essência, livre de condicionamentos.
O Manifesto do Surrealismo de André Breton foi publicado no ano de 1924. Breton e Soupault deram-lhe o nome em homenagem ao poeta Guillaume Apollinaire.
Quanto ao Movimento Surrealista de Lisboa já tivemos oportunidade de nos pronunciar num outro artigo, cabendo aqui acrescentar que a partir dos anos 50 o movimento extingui-se na prática, restando uns tantos poetas, consequentes com os seus princípios gerais.
O Surrealismo, é indubitavelmente um movimento “revolucionário” nas artes – lembremos aqui, por ora, o recurso ao automatismo psíquico com todas as suas consequências.
É uma experiência essencialmente interior, que se pode inclusivamente manifestar como “iluminação”, experiência essa, que se estrutura na liberdade, permitindo a produção artística individual ou colectiva.
Vários foram os métodos explorados, nomeadamente:
· a escrita automática ou semi-automática – é de realçar que a escrita automática pura apresenta grandes dificuldades em virtude de ser praticamente impossível eliminar de forma total a censura e os condicionamentos, pelo que podemos falar tendencialmente num surrealismo em que o artista se abandona ao processo criativo ainda que de modo vigiado.
· a colagem linguística – implica que se destaquem palavras, pedaços de textos, ou versos, sorteando-os ao acaso, de modo a que resulte um novo texto. Nalguns casos, as palavras ou textos destacados, são ordenados em função de uma atitude poética, ou seja de modo vigiado.
· a colagem picto-poética – aglomerando textos visuais e textos verbais.
· o Inventário – reunião de fragmentos de um ou mais discursos, criando um discurso novo.
· a criação colectiva –v.g. Cadáver Esquisito - um papel é entregue a cada um dos participantes, sem que tenham acesso ao que está escrito, podendo perguntar-se algo de modo abstracto ou a final ordenar os versos escritos sequencialmente.
Um exemplo (João Artur Silva e Mário Henrique Leiria):
O VERMELHO E O VERDE
- De que cor é o vermelho?
- É verde.
- Quem é o teu pai?
- É o revisor do comboio para a lua.
- O que é a loucura?
- É um braço solitário sorrindo para os meninos.
- Quem é Deus?
- É um vendedor de gravatas.
- Como é a cara dele?
- É bicuda, com uma maçaneta na ponta.
Outros exemplos neste blogue na ETIQUETA » O MOVIMENTO SURREALISTA DE LISBOA
Num comunicado, os surrealistas portugueses Artur do Cruzeiro Seixas, João Artur Silva e Mário Henrique Leiria, afirmam:
“(...) o Homem só será livre quando tiver destruído toda e qualquer espécie de ditadura religioso-política ou político-religiosa e quando for universalmente capaz de existir sem limites.
Então o Homem será o Poeta e a Poesia será o Amor-Explosivo.”
Finalizam:
“Para a pátria, a igreja e o Estado a nossa última palavra será sempre: MERDA.”
O Surrealismo, apesar de incomunicável é eterno, enquanto e porquanto aniquilador da razão. Mesmo que nos afastemos dos seus princípios ou o neguemos, nunca deixará de existir, impondo-se o urgente retorno à poesia que mais não é do que o próprio Surrealismo.
O Surrealismo é a aventura, a paixão geradora da criatividade e da liberdade.
Como disse António Maria Lisboa, “O poeta só o será quando a sua imaginação for além da imaginação do Universo."