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ARTE

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

GUILLAUME APOLLINAIRE - A CASA DOS MORTOS




Estendendo-se para os lados do cemitério
A casa dos mortos enquadrava-o como um claustro
No interior das suas vitrinas
Semelhantes às das casas de modas
Em lugar de sorrir de pé
Os manequins gesticulavam para a eternidade

Chegado a Munique ao fim de quinze ou vinte dias
Tinha entrado pela primeira vez e casualmente
Nesse cemitério quase deserto
E batia os dentes
Perante toda aquela burguesia
Exposta e vestida o melhor possível
À espera da sua sepultura

De súbito
Com a rapidez da minha memória
Os olhos iluminaram-se de novo
De cela de vidro em cela de vidro
O céu povoou-se de um apocalipse vivaz
E a terra plana até ao infinito
Como antes de Galileu
Cobriu-se de mil imóveis mitologias
Um anjo de diamante quebrou todas as vitrinas
E os mortos rodearam-me
Com ares do outro mundo

Mas os seus rostos e as suas atitudes
Tornaram-se de imediato menos fúnebres
O céu e a terra perderam
O seu aspecto fantasmagórico

Os mortos regozijavam-se ao ver os seus defuntos corpos entre eles e a luz
Riam das suas sombras e observavam-nas
Como se verdadeiramente
Se tratasse das suas vidas passadas

Então contei-os
Eram quarenta e nove homens
Mulheres e crianças
Cada vez mais belos
Que me olhavam agora
Com tanta cordialidade
Com tanta ternura
Que nos fizemos amigos
Tendo-os convidado a dar um passeio
Longe das arcadas da sua casa

De braço no braço
Cantando árias militares
Todos os seus pecados tinham sido absolvidos
Deixamos o cemitério
Atravessamos a cidade
E reencontramos por vezes parentes e amigos que se reuniam
Ao pequeno cortejo de mortos recentes
Eram todos tão alegres
Tão encantadores e com tão bom aspecto
Que só alguém muito perspicaz
Poderia distinguir os mortos dos vivos

Já no campo
Separamo-nos
Dois soldados de cavalaria reuniram-se a nós
Para nosso gáudio
Cortaram lenha de viburno
E de sabugueiro
Com a qual fizeram assobios
Que distribuíram às crianças

Mais tarde num baile campestre
Os pares com as mãos sobre os ombros
Dançaram ao som acre das cítaras

Não se tinham esquecido de como se dança
Aqueles mortos e aquelas mortas
Bebiam também
E de tempos a tempos uma campainha
Anunciava que um novo tonel
Ia ser aberto

Uma morta sentada num banco
Perto de uma moita de pilriteiros
Deixava que um estudante
Ajoelhado a seus pés
Lhe propusesse noivado

Esperar-te-ei
Dez anos vinte anos se necessário for
A tua vontade será a minha

Esperar-te-ei
Toda a tua vida
Respondeu a morta

Crianças
Deste mundo ou do outro
Cantavam essas canções de roda
Com letras absurdas e líricas
Que sem dúvida são os restos
Dos mais antigos monumentos poéticos
da humanidade

O estudante enfiou um anel
No anelar da jovem morta
Esta é a prova do meu amor
Do nosso noivado
Nem o tempo nem a ausência
Nos farão esquecer as nossas promessas
E um dia teremos uma bonita boda
Com ramos de mirto
No teu vestido e nos teus cabelos
Um bonito sermão na igreja
Longos discursos no fim do banquete
E música
Música

Os nossos filhos
Disse a noiva
Serão mais belos mais belos ainda
Ai! O anel estava partido
Do que se fossem de prata ou de ouro
De esmeralda ou de diamante
Serão mais claros mais claros ainda
Do que os astros do firmamento
Do que a luz da aurora
Do que o teu olhar meu amor
Cheirarão ainda melhor
Ai! O anel estava partido
Do que o lilás que acaba de desabrochar
Do que o tomilho a rosa ou um ramo
De alfazema ou de alecrim

Quando os músicos se foram
Nós continuámos o passeio

Na margem dum lago
Divertimo-nos a fazer ricochete
Com pedras roladas
Sobre a água parada

Barcas estavam amarradas
Numa enseada
Soltamos as amarras
Depois de toda a gente ter embarcado
E alguns mortos remavam
Com tanto vigor como os vivos

Na proa da embarcação que eu governava
Um morto falava com uma mulher jovem
Que usava um vestido amarelo e um corpete preto
Com cintas azuis e um chapéu cinzento
Adornado com uma pequena pluma desfrisada

Eu amo-te
Dizia ele
Como o pombo ama a pomba
Como o insecto nocturno
Ama a luz

Demasiado tarde
Respondia a viva
Reprime reprime esse amor proibido
Sou casada
Vê a aliança que brilha
As minhas mãos tremem
Choro e desejaria morrer

As barcas tinham chegado
A um local onde os soldados de cavalaria
Sabiam que um eco respondia da margem
Não nos cansamos de fazer perguntas
E houve questões tão extravagantes
E respostas tão apropriadas
Que era de morrer a rir
E o morto dizia à mulher viva
Poderíamos ser tão felizes juntos
A água tragar-nos-á
Mas vós chorais tremem as vossas mãos
Nenhum de nós voltará

Desembarcámos e iniciámos o regresso
Os apaixonados se amavam entre si
E aos pares de lábios formosos
Caminhavam a distâncias desiguais
Os mortos tinham eleito os vivos
E os vivos
As mortas
Um zimbro por vezes
Assemelhava-se a um fantasma

As crianças rasgavam o ar
Soprando com as bochechas ocas
Os assobios de viburno
Ou de sabugueiro
Enquanto os militares
Cantavam canções tirolesas
Respondendo-se como é costume
Na montanha

Na cidade
O nosso bando foi-se desmantelando
Dizia-se
Adeus
Até amanhã
Até breve
Muitos entravam nas cervejarias
Alguns deixaram-nos
Diante dum talhante de cães
Para comprarem aí a ceia

Em breve fiquei só com os mortos
Que caminhavam em direcção
Ao cemitério
Onde
Sob as arcadas
Os reconheci
Deitados
Imóveis
E bem vestidos
Esperando a sepultura por detrás das vitrinas

Não suspeitavam
Do que tinha acontecido
Mas os vivos guardavam a recordação
Duma felicidade inesperada
E tão certa
Que não temiam perdê-la

Viviam com tanta nobreza
Que aqueles que ainda na véspera
Os olhavam como seus iguais
Ou algo menos
Agora admiravam
O seu poder a sua riqueza e o seu génio
Pois nada há que os eleve tanto
Como ter amado um morto ou uma morta
Tornam-se tão puros que chegam
Nos glaciares da memória
A confundirem-se com a recordação
Ficamos tão fortificados para a vida
Que não precisamos de mais ninguém




Versão de Jorge Sousa Braga

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