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ARTE

terça-feira, 10 de agosto de 2021

NUMA MEIA-NOITE AGRESTE - O CORVO NOS MEUS UMBRAIS

 



Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,

Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,

E já quase adormecia, ouvi o que parecia

O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.

«Uma visita», eu me disse, «está batendo a meus umbrais.

É só isto, e nada mais.»


Ah, que bem disso me lembro! Era no frio Dezembro,

E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.

Como eu queria a madrugada, toda a noite aos livros dada

Para esquecer em vão a amada, hoje entre hostes celestiais.

Mas sem nome aqui jamais!


Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo

Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!

Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo,

«É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;

Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.

É só isto, e nada mais.»


E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,

«Senhor», eu disse, «ou senhora, decerto me desculpais;

Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,

Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,

Que mal ouvi...» E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.

Noite, noite e nada mais.


A treva enorme fitando, fiquei perdido, receando,

Dúbios e tais sonhos sonhando os que ninguém sonhou iguais.

Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,

E a única palavra dita foi um nome cheio de ais.

Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.

Isso só e nada mais.


Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,

Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.

«Por certo», disse eu, «aquela bulha é na minha janela.

Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.»

Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.

«É o vento e nada mais.»


Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,

Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.

Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,

Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,

Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,

Foi, pousou, e nada mais.


E esta ave estranha e escura fez sorrir a minha amargura

Com o solene decoro de seus ares rituais.

«Tens o aspecto tosquiado», disse eu, «mas de nobre e ousado,

Ó velho corvo emigrado lá nas trevas infernais!

Diz-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.»

Disse o corvo, «Nunca mais».


Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,

Ainda que pouco sentido tivessem palavras tais.

Mas deve ser concedido que ninguém terá havido

Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,

Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,

Com o nome «Nunca mais».


A alma súbito movida por frase tão bem cabida,

«Por certo», disse eu, «são estas vozes usuais,

Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono

Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,

E o bordão de desesperança de seu canto cheio de ais

Era este “Nunca mais”.»


Mas, fazendo ainda a ave escura sorrir a minha amargura,

Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;

E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira

Que queria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,

Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,

Com aquele «Nunca mais».


Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo

À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,

Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando

No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,

Reclinar-se-á nunca mais!


Fez-se então o ar mais denso, como cheio de um incenso

Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.

«Maldito!», a mim disse, «deu-te Deus, por anjos concedeu-te

O esquecimento: valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,

O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!»

Disse o corvo, «Nunca mais».


«Profeta», disse eu, «profeta ou demónio, ou ave preta!

Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,

A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,

A esta casa de ânsia e medo, diz a esta alma a quem atrais

Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!»

Disse o corvo, «Nunca mais».


«Profeta», disse eu, «profeta ou demónio, ou ave preta!

Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.

Diz a esta alma entristecida se no Éden de outra vida

Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,

Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!»

Disse o corvo, «Nunca mais».


«Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!», eu disse.

«Parte!

Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!

Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!

Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!

Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!»

Disse o corvo, «Nunca mais».


E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda

No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.

Seu olhar tem a medonha cor de um demónio que sonha,

E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,

E a minha alma dessa sombra, que no chão há mais e mais,

Libertar-se-á... Nunca mais!




E. A. Poe



José Maria Alves

https://homeoesp.blogspot.com/

https://homeoesp.org/


2 comentários:

João Sátiro disse...

Olá Dr José Maria

Maravilhoso poema de Edgar Alan Poe. Trouxe-me a lembrança de outro poema : O Morcego de Augusto dos Anjos.


O Morcego
Meia noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."
— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

JOSÉ MARIA ALVES disse...

Boa tarde Meu Amigo

Não conhecia o poema que editou.

Excelente. Pena é que nos tempos que correm pouca gente leia poesia.

Costumo dizer que:
A verdade é como a poesia, que alguns odeiam, a outros aborrece e que a maioria ignora.
Assim, verdade e poesia andam as duas de mãos dadas.

Um abraço fraterno.

JMA