Download dos textos de ANTIPOESIA ou a insustentável arte da falsa erudição em –
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no rio
uma brisa húmida
arrefece o batel
a cidade asperge
ilusória beleza
quando a luz das lâmpadas amarelas
alastra às águas sombrias
oprimidas pela enchente
o cacilheiro ilumina-se
lá dentro os últimos operários do sono
alguém abre a bolsa-do-fel num cunhal pombalino aos pés de um cabaré
acena a um táxi o motorista ignora-o
um outro pedaço de lixo aguarda o alvorecer num vão de escadas alagado de quimeras
o cais deserto
último trem para cascais
poucos eram os anos
os anos são sempre poucos
mas passam mais depressa
que os próprios anos
as tuas carnes apodreciam no bule de seis asas
uma borboleta esvoaçava nas veias
ansiosa a dona do cão preso ao automóvel comprado no embuste da flor murcha
arrancou
arrastando um cedro vermelho
erro
apocalíptico
do comerciante
de ilusões
retido
nas embalagens
do tempo
validade já expirada
uma humana cria
dormia
exausta
de tanto dormir
o cão latia
atarefado
de tanto latir
a dona desesperava
pelo tempo perdido
sem amante
sem marido
e os anos não perdoam
vai
distante
o fulgor
da mocidade
perde-se de vista
a graça da juventude
no longínquo pétreo
no caminho perdido
da cidade submersa
as árvores envelhecem
e paralisam de terror os prados
o mundo
transformou-se numa máquina
de polir sangue
as
almas
são
sombras
perversas
nas
mãos
das
crianças
cântico silencioso
no negócio da cristandade
onde
sem pudor
nem piedade
se usa o nome
de jesus
amem
o vale
consumiu
a sua beleza
incendiados
os verdes pinhais
os raquíticos castinçais
brejos por lavrar
até os amores da infância
ardem nos círios oblíquos da ermida
morreram os poetas sonhadores
olhos que não se deleitam nos verdes luzidios
visão contaminada pela inveja e hipocrisia das gerações doiradas
saúdo os anciãos no peito da saudade
inclino-me perante as campas abandonadas
covais antigos
a minha oração é desesperança
meu coração tições afogueados
a honra perdida
nunca mais será vista
nem alcançada
adeus aldeia
adeus
dia de eleições
até os miseráveis sorriem
não sabendo porque o fazem
sem consciência
do que lhe irão fazer
povo dono do sofrimento jugo que carrega tal junta de bois irmanada
rebelde na fala
cobarde na gesto
são milhares nos covis escondidos os que mastigam suas mágoas e expelem queixas nas águas dos bebedouros profanados
que lhes interessa se ao contíguo dói corpo ou alma
chove aguaceiro infiel
amargurado sozinho
como cisne que escolhe morro para o derradeiro canto
paz às suas penas
povo enlouquecido pelo consumo
exigência de cosmética social
como pardal-ladro em beirado
de luz negra coça-se com o bico
corroído nas partes definhadas
e engelhadas
gente que grita no delírio da ficção
vinte foram os anos de oiro falso
que será deles agora
amedrontados e abúlicos psicopatas
fantasia das arcas volantes
e das profecias
de videntes estremunhados
pelo ópio da insipiência
obtusos marujos
de água adocicada
pelas doações universais
broncos toscos
básicos
varredores de parada
a escuta dos genitais
generais sem armas
os ais respirados
com sofreguidão
invenção projectada
nas páginas de uma história
impressa a ranço
inculto e patético crédulo e ridículo
apático acrítico besta de carga
escravo servil
que sofre
gazela despedaçada por leões
ovelha cercada por lobos
boi atacado por chacais
triste povo
que padece
no coração
da infâmia
injustiça sem revolta
já não há homens
como os de outrora
uma locomotiva azul
mangualde
as bagagens comprimem-se na plataforma
um velho de samarra observa curioso o nosso trem reflectido nos seus olhos aguados
saudade de quem já não tem para onde ir
nem forças para partir
são belas as suas rugas talvez o sejam também as suas memórias
os botins quase desfeitos pelo tempo batem alternados no solo
é assim que os pobres aquecem os pés
um silvo partida
o tempo pára
roça a seda nas franjas
da rapariga adornada
recolhida nas nuvens de seus olhos a virgindade
vento e chuva pelejam
onde brilha o riso do vil pecado
leões de guarda ao diadema de prata
os campos cobriram-se de carne mortal no regato banhado por veias de cristal
para quê invocar os santos e anjos quando o senhor guiou moisés nas águas
roupagens de poeira que se encarde de sangue
rostos de fogo
no amor fazer
ali onde repousam
os cem mil corpos
barro e cinzas
ventura que cresce
nas ondas
que dançam irreverentes
ao cantar do galo
os vermes
o fedor das faixas neonatais
a sórdida propaganda de corvos ancestrais
nasce um sussurro sobre os meus umbrais
ali se sentaram as dores da vida e as misérias do mundo inteiro
legiões de espectros famintos quem vos irá ouvir
faces trémulas aos beijos atrozes dos traidores
pobres manjares
pensamentos-cascas-de-noz
lenda poética trazida pela brisa do mar
noite sem luzeiros nem leito
chuva de estrelas no meu peito
fitas verdes nos cabelos a norte
a noite arrosta-se na cauda das sombras do céu vestido de nuvens
no sul o resplendor sagrado que se esconde à hora de mungir o gado
a cidade onde nasci
tem os dentes cariados
cidade onde se dança
nas caves da exaustão
as eternas florestas anãs dos cumes são luzes de antigos sonhos sumidos nos nossos milenares desfalecimentos
no calor das algas as térmitas do poder
ligeireza perturbante do divino sorvido por avermelhadas cores
tais dores de colombo desenhadas em mares ignotos e calmarias equatoriais
afinal aquela brisa no monte destacava o despertar de maio
e o dia que para mim há-de nascer
hinos de atribulação açoitam os ares
trago comigo o meu endereço
eu não sou deste mundo
o mais mítico de todos os homens
aquele que devaneia na imobilidade da carne
encontrar-me-á na sórdida imundície da existência
juntos combateremos na direcção da morte até que o pélago transborde de agiotas
onzeneiros
bifrontes
filhos-candongueiros
de um povo propício
e idiota por destinação
haveremos de reunir ainda que tardiamente todo o meu sangue até que tudo fique límpido e amavioso como espelho ao sol doloridamente nascente em vítreo luzeiro resplendente
os caminhos do reino entorpecido nas esquinas dos prédios altos
orações que não foram ciciadas pela máscara da cidade
onde o rio fazia desaguar o odor pútrido a monstros marinhos
os vícios da noite
segregados
pelos nomes das mulheres embriagadas
a tristeza arremessada
pelas conchas espalhadas
nas margens da ilusão
heliantos do desejo
ardem no silêncio da bruma
passa um humano molhado dos pés à cabeça protegendo-se da urtiga-do-mar do tempo
na mão envelhecida o cigarro apagado das paixões de outrora e o cuspo dos astros impregnado de palavras violentas
sem destino o olhar absorto na transpiração animal sem tino ergueu a taça ao império dos sentidos da cidade enlouquecida
vinho e sémen furtivos na partição do pão de cada dia
chovem anúncios luminosos e portas por resinar à vista das árvores doentes e translúcidas
o sussurro da dormência afectiva da destruição
o deus da misericórdia era uma crisálida abandonada à angústia dos escombros cauterizados segregando da vida as máquinas mutantes da lascívia transmitida a cada gesto pelos curandeiros do sexo
justiça divina na mortalha cega da desilusão
a imprudência consome as últimas letras do ofício coladas à voragem do corpo e da sua verdade indiferente e confiante
como sinceridade agressiva e tumultuosa do riso nocturno
as coisas
sonham
sonâmbulas
tecidas pelo néctar
das velas enfunadas
pela neve cantadas
as montanhas escondem as colinas
as bailarinas sussurram à chuva amargurada de outono e a saudade acomoda-se na esperança
louvado seja deus que não tem de a ter
que nada tem de ter
bastando-lhe o vinhal lavrado de cachos doirados com que embriaga a morte que assim não sabe o que faz
vinho bebedor e escanção é o gamo que no bosque se refugia na linha recta
das tranças de sarças
jogo do destino envolvido em jade
brilho de lua nos outeiros alagados de cedros e sândalo
na mesa de louça de barro por calcinar
abre-se o coração à lei dos espelhos frondejantes
também os homens nascidos na aurora
tremem de frio azul devastados por fome sibilante
com o céu a desmoronar-se
em sonhos-pedaços-de-coisas
o homem tinha as mãos crispadas de lume ao colo
perguntava-se como búzio que pergunta ao mar
o som ao eco
o peixe ao pântano
a nortada às raposas vermelhas da estepe
que laço o prendia aos dias
a manhã clara acocorada num carro de prata entrava pela
fresta da porta dos medos
o corvo de bico lilás aninhava-se na pele
de uma cobra de água tépida
eva devorou no coração exausto de adão
a serpente do arroubamento
desviver
o som profano das pastagens e a choupana de invisível sombra chamam-no
o céu azul de domingo de ramos na noite em que as virgens se transformam em folhas imortais clama pela mesa de fogo curvada e rodeada por corpos negros como tições a apodrecer nos versos antigos do aparador da casa grande da aldeia que junta em cinza todo o passado
partira na direcção do leste quando a lua se escondia nos seios das fragas
as aves começaram a
acordar no espaço surdo
como se a escuridão da noite
tivesse todas as portas do beijo e da paixão encerradas
debruçou-se no seu próprio corpo
como se debruça nas nuvens floridas quem nasce para amar
olhou para as palmeiras com um pássaro verde e azul na cabeça
a semente do homem
espalhara-se
chegara aos corredores vazios
o mistério da sua fuga nunca seria desvendado
pequena porta de cave ecoava num sonho avermelhado
a pele gelada as mãos frias de vento de outono
os degraus exaustos com a luz do sol apagada
um jardineiro de papel à entrada dava a ideia de ausência glacial
gravatas e sobretudos cresciam nos cantos em vasos de plantas inventadas
um coxo debruça-se na máquina de fazer cigarros cumprimenta-a e despede-se até mais logo
as mulheres seminuas absortas na concentração vítrea do lucro tremiam
a noite a retinir semeava o mar de navios e de fantasmas
uma-oitava-acima cantava o desamparo de corsários ébrios
ia de novo evadir-se
do cárcere desgastado
mas a porta escancarada
com as goelas a espreitar
tamponou o tempo
que só fora dela existia
a taça orgíaca numa mão
uma mulher orvalhada na outra
e a acidez da ansiedade
a corroer-lhe o coração
aproado à volúpia do rumor
da madrugada no cais deserto
no arco desfeito
por sete estrias azuis
olho o reflexo da noite
no asfalto brilhante
com todos os seus corpos
de sonho a errar sem destino
caem por terra os grãos de cereal oculto
a quem o arado da angústia
não semeia no coração do anelo há tanto perdido
no lume infernal das sete candeias ripárias
o menino é de oiro
foi violentado pela marginalidade da volúpia e do desejo canibalesco de quem se banqueteia com a culpa de sua própria carne
das fezes expelidas na atmosfera húmida das bocas imundas de sémen negro
o menino é de oiro
mas a justiça é negrura cega convertendo o oiro em lento esterco nauseabundo putrefacto pisado pelo veado dos anos-sem-fim
da corça que tarde sempre chegou às prescritas pastagens da cumeeira tardiamente enfeitiçada por carvões em brasa
em todas as coisas pequenas
nos ínfimos detalhes com asas de tempo
morre a memória do homem com a mão no ombro
e bolsos desflorados pela desonra
o menino é de oiro
venderam-lhe a pudicícia
na pedra do sacrifício
estrangularam-no para todo o sempre
em cabos de velame cinza inerte
a olhar o tejo a desfilar indiferente
a alma feliz senta-se à mesa
banqueteia-se com os restos mortais do papel amarelecido
maços de letras amontoadas no esquecimento entorpecido da capa escura
o piano toca a madrugada do redentor
exausto afasta-se
abre-se a história sagrada da lenda e do incenso
o homem do horizonte prende-se a um pássaro de campo por ceifar
a árvore de tranças purpurinas cortada em sete pedaços
a alma dos ímpios mergulha numa melancia gigante à beira-rio
seis as talhadas
seis os venenos
seis as fraudes
seis as ignomínias do lodo
pisado suavemente por pescadores de púlpitos adormecidos em cadeiras bolorentas
sete vezes setenta olvidados sem perdão
anunciação
o vital reflexo da vida
instante breve
do adeus
do corpo imóvel
vitorioso caos
do mármore sombrio e silente
nuvens presas por tiras de couro às trevas
a fábula iluminada por poema larvar
a quem resta o mar adormecido
donde nascem estrelas
desenhadas na morte do declínio
o menino é de oiro
verde é a explosão no infinito da dor
do deus-dardo criador da miséria e do sofrimento acolhido na sombra do aguilhão ensanguentado
onde está o atirador
há a sombra do medo nas coisas que amo
há uma cave vazia no poço do tempo
há uma estrada vazia onde o dia finda
há um arbusto em movimento no ciclo misterioso do nascimento
há um vazio de riacho a correr nas veias da terra
há um castelo uma carruagem e um rei sem trono
há um campo de areia semeado com sal
há a calúnia do riso e o insulto da oração
há a voz cega dos objectos e a surdez muda dos homens
há o vento que sopra na mão cheia de ídolos alienados
há a ilusão do dia uno no carreiro do tudo
há a ilusão do tudo no caminho de um só dia
uma viagem por lisboa
a angústia de simples mortais enclausurada num transporte de multidão
uma viagem sem história
processionárias em fila interminável levantam a pata do verde velho cavalo branco de d. josé
uma mulher toca bombo num garoto
o grand voyager está ancorado em santa apolónia
o rio dorme a sesta
uma inglesa coxa corre no vermelho
por todo o lado contentores cheios de dúvidas e um comboio amarelo de icterícia sem locomotiva
o governo de portugal passeia-se num cacilheiro
cartazes
descubra portugal um país que vale por mil
ossos saudáveis fazem-se com muito cálcio
a luz que apaga o passar dos anos
meu pai
na cama
dum hospital de luxo
uma médica chinesa ou chinesa de macau explica o inelutável julga que não confio em médicos
adivinha
não confio em ninguém para além do vento crepuscular e da névoa que de manhã lava o convés das embarcações
da janela um pedaço de ponte suspende-se no horizonte
no quarto ao lado uma gralha
uma gaivota míope voa em círculos sobre os prédios riscados como bibes
há movimento
e há pisos cheios
de dor e morte
cinco ou seis horas madrugada à porta da padaria uma cigana velha
aprisionada em negro veludo profundo
tão profundo quanto o universo invisível
um casal de jovens beija-se nos lábios gelados nas faces pálidas da noite acordada
um cigano pequeno de barbas brancas de gigante acaricia-as lentamente e olha para o céu procurando a sua alma numa estrela de que não sabe o nome
entretanto
a padaria abriu
e o céu fechou-se
na realidade do pão quente
o homem caminhava na margem fria do rio colorido pelas penas das aves selvagens
carregava consigo o fardo de séculos de ossos perfumados pela fútil agitação de conversações anacrónicas
ao norte as montanhas eram tensão e luta com pensamentos a resvalar nos rochedos
os campos brilhavam
o sol espreitava por toda a parte
as sombras desapareciam
havia vida nas gotas de orvalho
em todos os movimentos da brisa
até na mais pequena das plantas
o homem parou
um tronco de figueira estéril
uma corda antiga
entrançada à mão
na angústia pérfida dos dias
tudo findou
o próprio dia morreu
na asfixia do ar paralisado
ninguém o chorou
tudo cessou
o fundamento da razão era a razão
os lábios da verdade molhados por uma saliva espessa
olhos ensanguentados da vigília espraiavam-se nos pensamentos da cachoeira amarela
a ilusão do tempo
deslumbrada
percorria os quarteirões da falsa continuidade
mutação das ampulhetas
em mecanismos extravagantes
lerda
assomava à janela
a insónia
temperada pela silhueta negra
dos últimos passageiros da noite
***
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