Download dos textos de ANTIPOESIA ou a insustentável arte da falsa erudição em –
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poucos lêem poemas
poucos são os poemas que se lêem
poemas extensos ninguém os lê
e para quê lê-los se só o autor sabe o
que dizem quando sabe
decidi
desfazer
os meus
em pedaços
colar os
fragmentos
de uma
nova existência
quem quiser se quiser cole-os reparta-os fragmente-os
faça-se realidade na realidade que eu já não reconheço
a sua
o seu poema
que sendo bom ou mau
não é meu
é teu
como o vinho
o vinho
as taças cintilantes
ébrias
fumegantes
néctar de todas as perdições aladas
tensa mola da vontade por instantes decrépita
elegia ao vinho ao poema orgíaco
o vinho não carece de elegias odes sextilhas quadras disparatadas
ele é o poema vermelho que fermenta o sangue do pensamento
que ilude a realidade fazendo-a ver na realidade dele própria o que a realidade é consolo de vida incerta e da morte no chão sangrento
o vinho não se canta não se diz não se lê
bebe-se somente
enquanto o poema geme dolente
ah rimbaud possuir a verdade numa alma e num corpo
a tua visão poeta como nos é estranha como se estranha a si mesma
a glória da verdade no ponta do lápis invisível com que traçaste os teu poemas em idade incerta
tu o mais belo de todos os demónios que desertou em tempo das profecias exaladas em turbilhões de letras vivas até à agonia
o teu corpo não mais acordou
a tua alma sim
embriagada no inferno dos iluminados
olhemos vejamos a mesma estrela o mesmo brilho de bronze no céu harmonioso o dia está fresco a noite fria e da vida pouco nos resta
o carrossel gira aos uivos ah como gira e rebrilha trajado de negro
a cabeça da deusa de oiro abraçada por um miúdo que esvoaça na frescura da nortada à volta corpos de ervas preciosas estendem os braços fingindo tocar a dança circular da ave marinha do leão de papel e do elefante de patas ao ar poluído por gritos como um bêbedo há um jovem que volteia sobre um barco enleado nas ondas corporais da rapariga em folia
uma velha ri
um cão urina
numa esquina
numa quelha dois namorados num
afligem-se os assistentes
espantam-se os passantes
divertem-se os que vivem
o senhor prior
de passagem sorri
e o carrossel gira mais uma vez e outra
até que as moedas findem
impermanência voraz
morreu quando nasceu
feliz
alegria de noiva
esperança de noivo
por casar
no rosto da tristeza que olhares não deita aos lagos verdes de algas bonançosas
não brilhou a lua
e o regato calou o som
das luzes em floração
as árvores milenares não o viram com a faixa a ressumar sangue
e ele nado-morto
o pai não viu repousar
com a cruz aos pés
e a lápide no coração
o amanhã um devaneio o erro a ilusão
quem sabe se vamos existir ou não
projectos derrotados pelo acaso mortífero pela fraqueza dos membros titubeantes e subnutridos de vazia vontade
demónios uivantes do pensamento
que maior incerteza que mentira adoptada mais se adapta aos tristonhos anseios humanos
hoje não vivo amanhã viverei
sofro não sou feliz amanhã serei
não sou rico nem famoso nem respeitado
amanhã dormirei em colchão de oiro
por todos adulado
projectos raptados pela vida aos projectistas que crescem e envelhecem no engano e na visão turva de suas estreitas vistas mergulhadas em sombra de ignorância inócua e triste
o amanhã não existe
a menos que os espíritos maléficos ou caritativos inundem o velho casario da imaginação patológica
uma mesa giratória no canto da sala água-marinha
um pássaro de plumas marfim escuta estático a voz de falso tenor do piso inferior
açaimada aos anos percorridos no breu pela velha estatueta de bronze está a boneca de trapos com o sorriso aberto à brisa que vem do rio
a senhora idosa tão inclinada e absorta fareja a tiritar o local do crime original sem a remissão de bula expiatória por discordância com a divindade irada
a grandeza melancólica dos espíritos peregrinos
cardeques eternos descobridores da maresia silenciosa e retráctil que assola as horas tão vastas como lendas conspícuas
os vales verdejantes
enegreceram
e sobre as cem mil colinas nem uma águia real ousou voar
a bruma percorre o desfiladeiro abrasado por sôfregas labaredas
a gare fornos de algodres onde sopra a brisa da memória
depois de uma semana de retiro a canícula percorre-me o corpo embevecido pela visão dos carris lustrosos
ninguém no apeadeiro apenas o silêncio da solidão e o leve sopro da aragem nas folhas ardentes da vegetação
traves protegidas por óleo queimado gemem ao sol postado à meridiana dezenas de vagões estacionados aguardam a carga que tarda
a minha vontade mimosas que oscilam ao vento oscilante partida que é chegada chegada partida
vagabundo da vida será esse o meu destino
penso nos nossos projectos
nas forças debilitadas
pelo desapontamento
gostaria de retornar ao meu quarto longe do murmúrio da cidade
sou lacedemónio
as luzes do mundo
já me não seduzem
vou e quero voltar na urgência de alma que se rasga e fragmenta
é demasiado este sofrimento
a ausência de esperma nos umbrais dos muros caiados
a vida que se consome na agonia dos destroços calados
é demais a ansiedade
o fruto sem cor
das virgens ao luar
o cavador à chuva sentia nas mãos calejadas o mistério do sofrimento
nos dedos tristes de seixos rolados pulsava a aliança da desolação
sangue empedernido de séculos ferozes
o fim do dia ia tão alto que se podia adivinhar a noite e seus espectros milenares
feitiços lacustres desenhados
a pinho e granito cinza
nos corações fermentados
ninguém quer aceitar a minha liberdade
o clarão do dia na palavra do agora pertence-me
é esse o meu quinhão
liberdade esculpida com cinzel de prata vestida de azul e dourado
sabor amargo
milagre da solidão em vida verdadeira
sangue vivo na floresta do sofrimento
e o malhadouro sem gente
inverno
homem réplica do tempo incerto como as chuvas resgatadas por fortes ventos das terras altas
um nevão amacia a pele cardada da ampulheta duplamente cónica
os pastores tremem
estremecem as almas húmidas
com pasto a nascer
nos corações gastos
rios saem do leito
espreguiçando-se
as ribeiras voam
nas pedras circulares
cai a névoa bonançosa
as nuvens demoram-se nos cumes
escarpas graníticas acariciadas
mãos de mulher a afagar
a dureza do viver
a quem só resta amar
esmagam-nos
a vontade
dilaceram-nos
a persistência
discursos dependurados em bandeiras
poses calcadas no areão do rio poluído por
calçadeiras metálicas
estudados perfis de ásperas desilusões
não há estrelas na melancolia da abóbada nem felicidade na estrada do céu
peixe doirado a habitar os dedos da cidade
milhões de anos-luz corrosivos e opacos em forma de bicicleta demarcam a invisibilidade do plausível e
no espaço-veludo rosa-choque
morre-nos a esperança luminosa
da boca nascida
o céu brilha na parede desmaiada do pobre casebre
olho em frente
um cão brinca com um globo de cristal
exaustivamente profético
o mestre da escola de porta em porta fendida ergue-se na escrivaninha do desjejum a comprimir na mão esquerda a cartilha do sono e da ausência
da obscura profundidade do abismo impenetrável irradiam ser e não-ser em perpétuo e imperecível movimento
a semente gera o girassol que gira resplandecente na floração
morto que seja outras sementes em queda virão alumiar o solo
útil como chuva em tempo de seca prolongada
decompondo-se
ele que ofuscou
prados e planícies
já em si não é mas noutro a reverdecer tenro e brando no coração da terra fértil a alegrar as nuvens de algodão doce que no céu resvalam indolentes tal como nós seres viventes como todos os entes hoje amanhã sempre presentes
lã de carneiro que nasce e morre
e nova renasce
em amável e eternal lameiro
liberdade repetida
liberto
pelas bocas fétidas dos abutres nascidos da peçonha imperial
uma vénia à infelicidade que subestima os seus adversários de raiz corre contra o vento vindo do mar desfeito em raios que as portas vedam
clarividente
possante
na lentidão do último alento
famoso com fama comprada a ouro e sangue inocente do arvoredo
prestigiado com o prestígio granjeado à força de bombardas
rico em metais de escassos amores
ladrões de virtude embaçada
as dores dos risos a escarnecer a desgraça do entrudo lisonjeiro
o povo inerte
desconhece nas cartas do destino
seu triste fado
a chuva abriu o silêncio da cidade onde a água nos fala de olhos fechados no mais negro dos despenhadeiros
uma harpa ao fundo da rua fermenta nos braços de um anjo caído com uma ferida no calcanhar
animais de cornos pontiagudos correm nos empedrados alheios à desarrumação silvestre do lugar enquanto duas mulheres sangram ferozes na porta número dezanove que tem em si a membrana de todas as essências reais do mundo esquartejado pelo marfim de todos os perigos de morte dos abismos fulcrais acotovelados de ideias gigantescas aquarteladas na proa dos assassínios vindouros
as luzes alvorecem florescem na boca da floresta doentia do parque que escurece no brilho dos arcos empunhados por negros ancestrais
as constelações cintilam nos seus nomes espelhados na fronte rasgada pelos espinhos apodrecidos
cravam-se dedos nas carnes flácidas das ressacas ígneas
deus exala labaredas do púlpito improvisado no número vinte e um entretanto um candelabro apaga-se num grito de angústia existencial enquanto o brito com uma vara embebida em vinagre e chagas no corpo inteiro nos diz boa noite
a cama cauterizada sustém a visão do corpo que estremece
e a terra gira como sempre
enquanto cinco cedros guardam a terra dos mortos o cemitério fica a meio do caminho das duas aldeias da freguesia os portões de ferro têm hoje um louva-a-deus por fechadura
tão belo na sua cor verde nos seus gestos piedosos
poucas são as moradas nuas grande parte de granito cinzento também as há de rosa e preto praticamente todas cobertas de lápides e flores artificiais a lengalenga das inscrições tumulares frases estereotipo do amor na morte a ocultar o ódio da vida
depois de mortos são todos santos nas suas auréolas de lágrimas ocasionais
uns tantos jazigos o do velho desembargador todo trabalhado e com um barrote cortado a servir de tranca à porta um outro recentemente construído da família teixeira aguarda pacientemente pela morte de algum deles provavelmente uma táctica odoriquiana para prolongar a patética existência a ilusão da continuidade da matéria em decomposição americanices casinhas de brincar aos esquifes
casa vazia hoje ocupada pela esperança ela que me acompanhava e à tia cândida ao lume nas noites longínquas da invernia
vejo as fotografias leio os nomes em mais de metade das campas corre o meu sangue ainda que em putrefacção tenho família nas duas aldeias
rememoro as vidas os momentos as palavras as ensinanças
o bom e o mau o tudo e o nada
corpos corroídos pelos exércitos de vermes da indiferença
não há matéria mesmo indigesta que os esmoreça
um primo da cidade quando vem à aldeia vasculha as campas muda flores das ricas para as vazias dizem que enlouqueceu julgo que não ele conheceu-os pelas suas mãos faz-se a justiça aos mortos que a não tiveram em vida
as rosas de plástico alegram aquela paisagem macabra a que falta a nova tecnologia de comunicação redes sociais ou espíritas astrólogos e videntes dos programas bichosos das manhãs televisivas
sou da velha guarda nada de modernices na mente guardo as imagens no coração os afectos nos olhos as lágrimas
e nada de lamúrias
morrer é ter vermes nas entranhas
demónios nos olhos
terra nas mãos gretadas
nos membros ampulhetas azuis
um mar de espinhos no peito
um leito
um lugar de eterno descanso
corre um silêncio pela aldeia uma brisa ligeira traz-me as horas do relógio da torre da igreja sempre oportuno
os cães já não ladram e os habitantes velhos e exaustos adormeceram há muito passeio-me pelos luzeiros que se debruçam na varanda púrpura das nuvens deixando-me embalar pelo canto das cigarras e dos grilos cantata minimalista dos simples a contrastar com o preciosismo de bach que ouço enquanto a insónia não mergulha nos montes e a paz se instala no cigarro de todas as noites teimosamente sorvido
a madrugada vem medrosa e carente e um dos loucos da aldeia meu velho amigo da infância e da adolescência canta glórias e aleluias a caminho do cemitério passa das quatro sua hora de visita aos nossos mortos
penso na vénus de botticelli agrada-me a presença da sua imagem sem a desejar
a ausência de anseios faz germinar o deleite da beatitude
penso penso também se não será a paz que faz cessar os desejos seja como for
o zé já estará a rezar no cemitério percorrendo as campas nuas e as empedradas sortido de inscrições lágrimas e falsidades reza aos seus mortos e aos dos outros como cava nas noites de luar os arretos deste e daquele
um destes dias irei visitar os meus mortos e seus vizinhos e hei-de lembrar-me de mim
de pequenino longe das montanhas que hoje vejo são tão poucas as lembranças
recalquei sublimei substituí pelo vazio inócuo as memórias da cidade
desta restou-me o rio com as suas asas de cristal erguidas na barra a mesma fome e sede de mar terras do além-oceano com as suas árvores gigantes pássaros exóticos no sorriso amplo de longínquos habitantes coloridos
neste vale que agora se corrompe por míseras trinta moedas vagueava o rapazito de calções à chuva ao vento ao sol e aquelas dores de cabeça horríveis e constantes como tições acesos no crânio a habituação a algumas provações e sofrimentos por amor ao calvário alegria dos caminhos sinuosos de pinheirais dos vinhedos em flor das cestas de vime no ribeiro a caçar cabeçudos
na cidade a fronte baixa voltada para a calçada calcária numa angústia profunda e aquela tristeza que só a tem o sol poente
cresci entre a serra e o mar numa vida vária ergui castelos ao luar segui o rastro das estrelas inocente tal rei mago em demanda do salvador amei pobres e tresloucados os que sofrem isentos de pecado fugi dos desalmados das crianças que são cruéis e dos adultos desleais como cardeiros e silvados
amei e fui amado e odiado
vivia o dia
das plantas
dos animais
o agora que nascia
a cada segundo
numa emoção tão forte
que deixava vencida toda a morte
porque morria a cada instante
e a cada momento
renascia sempre um novo
josé maria
ámen
o sol ia varrendo as nuvens do céu em harmonia com as flores coloridas do pasto verde ladeado por rochedos de musgo amarelo-esverdeado
duas ou três árvores sem pensar na morte
lançaram raízes
no velho coração do bosque
um inferno lá fora atrás das roseiras dissipa a dívida externa em festas e convulsões
o céu cristalino observa o pavimento sangrante dos palácios moribundos de feridas acres arrastadas pelo volume da corrente a engolir homens bichos e barcos hidráulicos
a rua suja da cidade com os pulmões a estourar recolheu ao sono pantanoso de dilacerante pesadelo
ali estavam colunas em vigília observando a perpétua e patética diversão das esculturas roídas pela noite e pelo abismo
escuma do tempo
as estradas do pensamento percorridas
demasiado vistas escondem no pó a sabedoria de monstruosas crianças
ouve camarada este é o caminho dos mortais na poeira do espaço negro e do tempo incólume à penetração de súbitas visões
na acrópole entretanto discute-se a alma trivial das formas de neve a cobrir o mármore da multidão a que não pertencem
meu pai e minha mãe
um álbum de fotografias
a preto e branco
eu tinha os cabelos loiros encaracolados
meu pai ainda jovem
cotovelo apoiado
na perna suspensa em muro caiado
o rosto apoiado nos longos dedos
príncipe encantado
minha mãe
magra loira linda
beleza profunda
em longo vestido cintado
sorriso do mundo o mais belo
e agora
eu
deus meu
neste sufoco
neste aperto
envelheço
a branco e preto
e morro
nesta hora de vindima do fruto espezinhado no grande lagar de granito
os mesmos pés que a vida pisa pisam agora os cachos com carinho
e tu minha tia minha mãe que da terra cuidaste como quem de criança cuida às agruras do tempo sujeita tão velhinha
ausente
desta tua criação
e às vezes sinto saudades
dos dias felizes
corridos à tona de água
quando as sinto fico triste como criança sem ninguém para brincar
mas quando as não sinto mergulho em ácida melancolia em mundo que enfada e mata
ainda existem ilhas ilhas onde não há gente
ilhas despovoadas selvagens
civilizadas
pelo vento quente de áfrica
cai a folha
amarela
um casal de pombos
no parque onde nascem crianças
intenso calor
à beira do lago
onde um cão
lava o focinho negro
por baixo da ponte em ruínas
patos e pombos
à sombra uns dos outros
cheiro de estio no ar
ofegante suado
por regas perfumado
trave mestra pedra angular
o carro
cai na chuva
desfeito
abre-se o clarão
do dia em dor
a mala levanta a voz
pássaro
a vomitar fumaça
na gente que passa
o céu varrido
por raparigas atormentadas
de desejo
um jovem moço
arqueiro
da virtude
a rua nua
um brasão
um coração
imaginação
no saco de lixo
ao amanhecer
a poesia
canta o silêncio
em si bemol
nos poemas
répteis
um homem falido
um carteiro
sem cartas
de amor
mendigo
sem lenço
sem lençol
uma manga
alma pura
dobrada
no livro do horizonte
partira sem pegadas as estrelas por companheiras à luz da vela vermelha
não suportava mais a música entristecida dos encontros secretos ao arrepio solar
um rio eterno de safiras e esmeraldas haveria de existir em qualquer lugar
as flores da amendoeira da berma inóspita eram o seu mais íntimo presságio
nunca mais iria voltar
uma coluna de fumo negro passeia-se na serra do pisco
as labaredas lambem crepitantes
o solo ressequido
tal chicote de escravos
de brasas aceso
pedras
giestas
pinheirais
tudo foi varrido
pela boca do inferno
num beijo vermelho
convexo
vivem
nos sentidos
coloridos
por mágoas
clandestinas
um oceano de sensações
e projectos não palpáveis
cativam os seios cheios
de cachopas
seborreicas
da avenida cinzenta
no jardim arredio de amianto enfloram as sombras da virgindade amortalhada
alguém canta fado corrido desgraçado
alguém joga meia dúzia de tostões uivantes ao infortúnio
ah a felicidade
nunca descoberta
nunca perdida
as árvores pedem
a chuva do passado remoto
o laço do tempo
desfez-se –
fera de sombrio
burgo serenos graciosos fibras chamejantes de espírito de marfim a navegar sem confiança na terra descuidada
árvores imploram a chuva do futuro em solene esquivez de amor vegetal
indómito
pó
ruído de janela
sussurro de cortinas
cruas
escritas
em versos nus
de livros antigos
árvores pedem e não sabem que a chuva taciturna só desce à savana em terror mudo de mofo
na boca
esmaecida
pelas folhas
do tabaco
a minha canção pobre canto
de quem ontem nasceu
na rua da escravidão
a sonhar realeza
imensa potestade
de vitória
incessante entre mim e a desventura árida de meia-noite cavada na voz das árvores
lâmpadas de açafrão
a cintilarem ao quotidiano
da saudade
desviando os olhos suspirando breve
no âmago dos ossos
descarnados
nadei nas tamareiras defuntas
como crianças convencidas
de miragem num deserto
de trevas encarnadas
tu que a terra deixaste diz-me
sem rodeios
onde repouso eu
nos séculos de espaços amplos e tempos encobertos
eu que nasci
que morri
ao fumar um cigarro verde
na cadeira rubra do café
bisbilhotice
inundada de luz eléctrica
cortinados verdes cadeirões azuis entroncamento um jovem militar um cigarro escondido
nas horas infindáveis
da viagem nocturna
nas janelas vê-se de dentro para dentro
o interior
passam luzes no exterior brancas amarelas
luzes anónimas
como os corpos sonolentos
sentados nos assentos
a vontade era um tédio amarelo a repousar nos degraus à sombra da faia
na aldeia morrera uma criança já velha em corpo amado corpo contorcido num leito sem sonhos
tudo findara no rumor dos novos ruídos
o fogo ergue-se no terreiro
pássaros minados de piolhos
tomam assento nas bancas
de frente para o coreto
povoado de bandeiras de papel
grossos bigodes
em saxofones doirados
raparigas aguardam ansiosas
a chegada do esquelético conjunto
do toque aprazível ao bailar
uma lebre parou no caminho bem na frente do jipe inocente no escuro da madrugada
manteve-se imóvel como numa gravura
a serra ganhou
contornos de alegria
nas almas tisnadas dos pastores
chegámos à aldeia
o sino toca a finados
a morte voltou
o marido da defunta de azul marinho e preto tem os olhos inundados de resignação
falámos da existência do sofrimento da melancolia do futuro mergulhados em meditação ocasional de quem só pensa no decesso quando acontece e a nós nos toca
pobres mortais
uma ave canta no amanhecer nascido das raízes da velha árvore ressequida e nua
há cinco outonos ali fez o pica-pau seu ninho resguardado do vento forte dos temporais do norte das noites frias da floresta chuvosa e uivante
sem saber
que o destino do seu abrigo
era o corte incompassivo
o vento ruge nos pinheiros anões
sibilante na urze rasteira
o rebanho junta-se a poente da casa da floresta
um cão encrespado fareja a rajada solitária
o tecto do mundo enegrece súbito
grossas gotas de água tombam das encostas do céu
a chuva aumenta enchendo de água as depressões dos carreiros desertos
o pastor abriga-se cobrindo-se
de telhas partidas pelo gelo e murmura
em esquiva linguagem o desconforto da humidade
no princípio sobreveio violenta tempestade
o corvo protestou
o sexo feminino foi esculpido num pedaço de terra regado com granito a esvoaçar nas ilhas desertas
filha de homem cedo descobriu o segredo da grande serpente
caprichoso refugiou-se nas grutas de chamas
sem fumo no céu enegrecido o resto do planeta não era corpóreo
a carne da terra nos ossos rochosos com o sangue a escorrer nas mais perfeitas gotas de orvalho envolveu-se com os sete elementos da cidade banhada por esmeraldas pássaros de fogo
aprendeu a pronunciar o nome a dar as boas-vindas na nudez revelada entre os dedos estanhados com os braços abertos à divina ausência de altiva beleza escutou os auspícios ao despontar do sol faminto nas asas da fénix
guerra
estupro
morte
como haveria de cantar a sua ternura como dizer que da porta de sua boca arroxeada apenas exalaria verdade que a sua alma seria o cofre-forte de todos os segredos
não voltaria a casa com o coração destroçado
pousaria no ramo da pomba azul a contar horas de sol na claridade da noite
sorrindo
a lua cintilou durante o dia exausto esmaltando o rosto da muralha disfarçada de musgo verde-ácido
a maciez do ar propagava-se nos túneis submersos de monstros e dragões povoados
ali o capim era mais alto ocultando as ameixas serôdias que ao acaso cobriam as nuvens subterrâneas perfumadas de jasmim
caem ameixas
no cesto rombo do veneno
o inimigo de satanás aliado penetrou oculto na casa da escuridão onde cada pássaro nocturno encarnava a paixão segundo o jade polido do ventre baixo das moças em flor
em dó menor
dança de palavras compasso quaternário
as palavras
les mots
- como eu sei francês -
são angélicas borboletas
aeroplanos descendentes
que morrem às mãos
do reino
carregado de ferros
galopantes e
afiados nas montadas
dos cruzados
fosforescentes
sílabas de paraísos perdidos a planar no último dos azuis
carbonizados
estranha surpresa de barco no mar revoltoso
em cúpula
de alabastro
desaparecido
são palavras
nuvens
almofadas
fecundas na rápida
loucura
da distância
bruxuleante
falsas e incertas
que por nós
passam
no ecrã gigante
da memória
promessas
a calcorrear as estradas
do impossível
daquela rocha viva tudo víamos
o que se pode ver e o que não se podendo se imagina
vinhedos corriam nas janelas com as folhas vigilantes ao furto de seu fruto
viriam as vindimas com homens cheios de sarro pela calada da aurora
lâmina afiada a violar o teu tesouro de tantas e tantas almas arredondadas
viriam para as acarretar
espezinhar com violência
animalesca
embriagados pelo desejo
torpe vício
de quem sem sede
de seu pomo se sacia
há dias que a chuva
não pára –
parede de água
na fonte
velhas encharcadas
enchem os cântaros
enquanto uma rapariga
lava no tanque
por telheiro abrigada
sentia falta da flor no meio do relvado quebrado em minúsculas partículas verdes
as nuvens corriam com seus dedos de sombra no dia em que os mortos deveriam regressar armados de malas desfeitas em pedaços de cartão amarelo com as mangas arregaçadas soluçando palavras a arder em desejo
desejo morto ao luar através das árvores despidas como rameiras
um clarão entre trovões estremece as pérolas de orvalho
a lua gela ao cair do dia
fria solenemente fria
agora demorada no silêncio das nuvens
as cigarras não cantam
por entre os lírios amarrados à terra branca
enquanto
nos meus olhos crepitam lágrimas
a escorrer nas folhas mortas
o gesto violado
ingénuo
corpo exilado
da vida
dias das estações
à venda
os palácios incendiados
pelo aborrecimento
sem que o murmúrio
da bruma vermelha
aconchegasse a noite
de fábulas e oceanos
por descobrir
será que podes quanto queres e o que queres se deixa poder ou o que se pode se deixa querer
talvez seja assim talvez não
se o que se quer não se pode e o que se pode não se quer se se quer o que se quer e o que se pode não se quer que se queira o que eu quiser para que ninguém
seja sofrer
um degrau no tapete desce por entre luzes de castiçais e incenso
energia que desperta os corpos imensos da barata universalidade
da rua de santa bárbara
havia morte na cadência dos passos descendentes
olhares vagos
luzidios
tristes
indiferentes
à visão do cemitério
penetrado por ciprestes
a terra prateada vestida
de mármore
de granito polido
resplandecia
e na morte o ar respirava à fé
da ressurreição
pobre gente
a colina pintada de bafo quente amorna o casario branco irremediavelmente disperso
não há vivalma nas ruas apertadas por pedras de granito cinzelado
a pequena taberna desbotada por estores amarelecidos agita-se num único movimento do tasqueiro no tamborilar dos dedos balcão sujo de preguiça
sem freguês a coisa manqueja
tonéis cheios
cubas turvas
vasilhame empoeirado
no ócio da crise
o taberneiro dormita no regaço da aldeia
decidi pintar a minha casa de amarelo-mostarda
por toda a parte vejo o que nunca antes tinha visto
casas amarelas dezenas
centenas de casas amarelas
desisto
mas a ti velha oliveira
retorcida enrugada
de braços abertos ao destino
amo-te
por meu falecido pai plantada também por ele amada
e tu meu filho quando eu fechar os olhos nessa noite de breu ama-a como teu avô a amou ama-a como eu
a corola aberta a árvore florida as vozes frescas das ceifeiras no espelho de água lisa
os sorrisos louros nos rostos avermelhados do sempre-feminino
ali junto à fonte onde repousa a brisa matinal brinca o mesmo menino de sempre
espera paciente o amanhecer desfolhado da razão para depois adormecer os dedos gelam soterrados nas cobertas devoradas pela noite escreve sobre o obscurantismo espinhosa tarefa de quem calcorreia os dias na sombra das janelas abertas à superstição dos rostos afogueados pela palidez da alma altera o rumo no turbilhão das ideias que despontam nas floreiras várias e diz às vestes envelhecidas pela náusea um adeus definhado e amarelecido
nesta morada temporária secaram todos os detalhes ânsias e virtudes dispersaram-se os momentos no vómito bilioso das íngremes e letais circunstâncias
os cães ladram às pedras mais escuras
uma samarra desce a calçada romana
um velho tão velho que parece uma sotaina com pele de raposa ao pescoço
o gelo poisa lentamente nas pedras emolduradas por terra estéril
a água dos animais gela no pátio
não está só
algo o acompanha
uma sombra
um espectro
sei lá sei lá
olhei-os como sempre os olhei vendo-os como são e como serei
o lar onde não deverias estar
olhos de água pura a cintilar
o forte odor a morte abarca o ar leve e a respiração translúcida das paredes cabisbaixas
há mesas soturnas banhadas de idosos a reter as memórias do passado e os acenos amplos dos espíritos mortiços que descobriram o sorriso descampado dos aposentos velados
todos sabem que vão morrer
ou quase todos
e que tu também partirás
mas sorriem-te nos teus 98 anos
e tu sorris
e vives
na paz da canção
dos beijos
dos votos
de longa vida
de um dia a dia feliz
és a mais velha de todos os que aguardam pacientemente a derradeira jornada
eu o mais novo canto e beijo-te
peço-te em silêncio que vivas
assim
sorridente
coração inocente de criança a extinguir-se placidamente
dá-me mais dois dos teus anos
depois pedir-te-ei outros dois
e outros tantos
não partas fica comigo
sonhemos ambos com os vinhedos a florescer com a brisa nos pinheirais a reverdecer com o lagar vivo no outono
vinho a ferver na alma
e com as framboesas
que crescem no pátio
sombreadas pelas laranjeiras
sonhemos ambos
nós e mais ninguém
juntos e em segredo
neste teu dia de anos
que nunca irás morrer
ou que se a morte te chamar
ao temível e doce degredo
me chame a mim também
a brevidade da vida estampada nos ponteiros do relógio
o sentimento lúgubre da aproximação da morte nos passos do coveiro
cedros que se achegam ao olhar turvo da idade
um diário a arruinar-se na noite profunda
um diário é como a filosofia
subsiste porque a morte existe
perdurará cavalgando-a
subsistirá nela não na morte iminente
a que irrompe num lampejo na sequência dos dias sobranceados pelo enfado
mas a que nasce do apelo inaudível do vazio existencial
um diário em fragmentos é um verdadeiro aborrecimento que ninguém se dá ao transtorno de ler
gazeta de promiscuidade intelectual
questão de pouca monta
poema de circunstância dito em conjuntura garrida e domingueira
simbolismo realismo surrealismo promessas por decifrar
sentido aparente palavras improfícuas masturbações
- para não dizer punhetas -
mentais
cuas africanas atoladas na selva impermeável
clamores obstinados de régulos apeados
algo que pouco importa ao amontoado impiedoso da ralé
populacho entorpecido pela propaganda de canapés ortopédicos
abdico de o escrever como delineado
que nele fiquem as estilhas apenas as lascas
os estilhaços pertencem-nos rasgam-nos a carne integram a nossa interioridade mais profunda sangram-nos as emoções
mergulham no abismo da alma decrépita
ferrugem obsoleta dos dias
não são passíveis de censura
somos nós os delinquentes e os julgadores dos delitos da vida
sem que nada haja para julgar censurar ou expurgar
são tão-somente o que são e o que é nada mais é para além do seu ser da sua íntima essência
apenas ápices como um ornato
que se usa em dia de gozo de romagem
diário da hipocrisia circunscrito ao poema
amálgama intrincada de letras
seja esse o nosso lema
nosso desgostoso emblema
má prosa pior poesia
um estranho ritmo governava-o desde a juventude
ainda tenra criancinha já os vermes das máculas vermelhas dos mortos o perseguiam
no quintal da casa de granito as laranjeiras em flor e o banco onde se sentara arfando quando ainda cria nas recompensas do além
repousando na primavera tardia
aprendeu a linguagem subversiva das noites de insónia
nos fogosos cavalos pardos da aurora
no longínquo fluxo e refluxo das águas que junto à costa alcantilada tremiam de frio
tinha a natural dificuldade em esquecer a manhã gloriosa que passara no ribeiro onde as flores tombadas viviam flutuando
tecera a fogo a canção das loucuras naquele terrífico espectáculo das noites escuras que tremulavam na eira à sombra da via láctea
ancestral laje granítica vibrada a violentos golpes de mangual
o circo ah o circo das terras do norte
saltimbancos coloridos em país estranho com a marca do poder de deus nas testas luzidias dos tormentos
estranhas eram as tatuagens nos calcanhares
na azáfama da vida subiam verdes ramos de amores ao coração do velho carvalho
suspiros gemidos langores
tempo afinal
preso por fino fio de orvalho
***
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