Download dos textos de ANTIPOESIA ou a insustentável arte da falsa erudição em –
***
renuncio a todos os prazeres
festas e romarias
ao conhecimento ao conforto
ao amor ao mundo
aos sentidos e à razão
mas à paz não
***
tão longe quanto a de deus mais longínqua
tão perfeita quanto a do criador mais ultimada tanto que outra como ela não há
daí ser poeta
um péssimo bardo é certo
mas poeta
diga-se o que se disser
***
com a mão de palma branca dizes que não
com o corpo a doirar mestiço dizes que sim
com o rosto oculto nem sim nem não
assim como assim
dizes ao sim que não
e ao não que sim
***
nada há que o mar a si não chame
coisas e gente
tanto é o choro ranger de dentes ais
consome-as sedente
ou rejeita-as nos areais
***
o tempo continua cinzento
há canaviais na margem da linha
as nuvens no horizonte exibem formas vivas
vinhedos no prado alguns animais
os dias de seca já finaram
e há o ribeiro de águas sujas os afrouxamentos a ponte negra da pampilhosa
tardo em chegar a casa
***
por detrás da casa brilha a lua
ah o luar eterno elixir dos amantes
noite densa e adocicada por sombras vivas
o tempo está quente
junto ao cipreste de antigamente
desnudos
lianas invisíveis aos olhos do mundo
aprendemos o tempo da paixão
***
um profeta
não nasce profeta ah a terra-de-ninguém
pela quietude pelo não-querer pelo vazio
fabrica a sua palavra
na certeza do além
***
atravessámos juntos as imensas florestas
tocámos as estrelas com nossos dedos
embainhámos as espadas
diluímos os desejos no pavimento rochoso
rasgámos todas as folhas de livros sagrados
semeados em solo estéril
bebemos de todas as águas
de todos os venenos
e
recolhemos o fruto no ventre rasgado do universo
***
rosas do encanto sono primaveril em planície de flores onde entoa a voz dos rochedos
encruzilhada de virgens
uma jovem que se transforma em deusa
um tigre atravessado por flecha envenenada
vencida é a lonjura
resplendor sagrado da harmonia angelical
no murmúrio dos meus dedos
***
um coração sangra
no peito da floresta virgem –
assassinos em viagem
***
imagina hoje
que o mundo é nosso
porque vivemos nas
chagas do crucificado
anda vamos cantar carícias
de amargo sabor
comungar no mais secreto dos sonos
a pulsar no limiar da alma
***
o amor batera-lhe à porta
teria de a abrir
trilhar um caminho
perseguir a via
onde a dor
sempre seria maior
que a maior alegria
***
os girassóis nos campos estrelados oferecem-se aos olhos da trepadeira da janela do caminho
o poente desce à terra humedecida pelo sémen pacificador da primavera
os mesmos rostos na estrada que não principia nem acaba
intacta a náusea alastra pela planície
***
acautelai-vos ninfas das florestas que não seja sátiro vosso amante esse que só em parte homem é e na parte que mais tem tem o que david não tem rasgando-vos fadas sem asas leves delicadas o que tanto desejo e me não pode ser negado nem estar por besta sujo ou por sátiro sujado
***
um cão dança –
em voltas sucessivas
intenta alcançar
seu próprio rabo –
endiabrado
***
incendiaram-se as nuvens
a ilha das máscaras de pedra afoga-se no arquipélago proscrito
os teus braços abriram-se ao voo que irrompe do corpo num gesto de beleza melancólico
a infância são apenas lembranças
pretensiosas e derradeiras
luz a descer dos céus naufragados
***
a neve vai lentamente derretendo
enquanto os ribeiros da montanha
vão alegremente cantando
***
ouço o teu canto na vastidão das nuvens
a paz mais amorosa da mais preciosa pérola
gémea
mas tenho no coração o medo do último dos condenados no corredor solitário do amor
***
o que está perto nem sempre está descoberto
uma ave marítima cruza o tejo pensando que dá a volta ao mundo
um ancião passeia-se na praceta em círculos
para quê ir mais longe
quando o mundo nos foge
***
é na separação que o amor se recria –
explosão de rosas
no descampado solitário do coração
***
a miguel angelo
a corpo que se quer perfeito
por mão de homem esculpido
por complexo
por opção de sexo
certo e sabido
algo notável lhe há-de faltar
***
não digas que me amas de que serve amar o que o que já não tem febre dor sentimento
não não digas mais que me queres
deixa que a morte corra em mim como tempestade de asas brancas no destino cruel das carnes putrefactas
***
os elmos dos guerreiros
devastados
testemunho a reconciliação
os sepulcros dos vivos
ardem fiéis
aos pulsos do homem
amordaçado
não acredito nos deuses
histórias a medo trespassadas
não posso
serei traição
mas cobarde não
***
há uma canção de liberdade nos nossos corpos
o prazer do coração floresce na noite
a liberdade termina
sempre ao alvorecer
e transforma-se em cárcere
***
no sofá verde da parede amarela brincais ao amor pela primeira vez jovens e belas experimentais o toque subtil
donzelas em erecção uma mão na rosa outra no botão
***
sou ou não religioso em tudo o que faço e intento fazer
quando acordo e me deito com ou sem fé e esperança se não te vejo nem te quero ver ou vejo sem que o saiba nem saiba o que é o saber
sou ou não religioso quando de desejo peco ou da caridade me despeço e ao mundo tanto aborreço
sou ou não religioso quando mais do que a ti a mim tanto me amo
***
nesta viagem
que silêncio
por companhia
ninguém
***
falo com as mãos unhas que são garras soletram os ossos dos afogados
com os meus dentes lavro a terra que arde nas profundezas da alma
na orla dos rios recolho flautas túneis dos canaviais alados
na berma dos caminhos orvalhados o degelo das lágrimas da orfandade
***
as aves pertencem
ao espaço
voam nas almas
apaixonadas
que sombreiam a terra
e o azul do mar
***
não sabia
- ainda não o sei –
se te havia de conhecer ou não
o conhecimento traz no hálito os perigos do acaso
o desenho azul da intuição sobrevoou a mente
este tédio que já não admite paixões
dorme solitário no canto mais secreto da minha alma
***
vieste há hora marcada
vieste com a tua sombra mais
muito mais profunda que as tuas formas
poderia ser o teu corpo a minha última morada
***
insondável primavera lua nova
os ciprestes roçam o céu
uma viúva no campo florido
o peito arquejante no véu oloroso
os choupos do rio movem-se ao vento
ordenados manancial de ilusões
nas arestas do punho vigoroso
***
enquanto houver um
homem com fome
um injustiçado
um degredado
não dormirei
- dizia o ministro
enquanto deitado
no leito nauseabundo
de asquerosa concubina
***
ao anoitecer
uma estrada rumo ao mar
um rio na gruta da montanha
a explosão da fúria da carne
ao anoitecer
quando o desejo ensandece
***
corpos há que em alma pura moldados transcendem o tempo-espaço
assim queria eu o teu universo-orgasmo infinito abraço de nuvem absoluto
a vaguear nesse instante
de eterno prazer
por deus tocado
***
o velho contemplava
cabisbaixo e ensimesmado
o lameiro semeado
com aquela certeza
que só a sabedoria tem –
não mais veria germinar o pão
***
leio algumas passagens de leibniz
eis o advogado de deus
se eu tivesse fé dele precisaria e só dele
queimaria os livros sagrados as representações de santos e os templos
não viveria em mim viveria nele
não seria eu seria ele
morreria por não morrer
sem ego para sempre viver
***
a fama das tuas formas aneladas ao mundo
escondem nesse olhar expressiva melancolia
duramente repetida no dia-a-dia
e aquele tédio assustador de quem por tudo ter atingido
bela e apetecida se sente vazia
taedium vitae
naomi campbell
taedium vitae
***
de pé
ao leme do meu
espírito
entendi
como única verdade –
o meu desejo por ti é uma falsidade
***
o céu esteve cheio de nuvens à tarde o sol apareceu queimando tudo à sua volta ocupei-a a tratar da casa de inverno granito e pinho lenha para a lareira para as noites longas e melodiosas da invernia aconchegante o frio dói e ama amante perfeito do espírito silente em leito de serra neve e vento
***
uma pele de carnívoro no chão brilhante
um dente de leopardo na estante
e tu bacante olhas-te num sorriso
de velho espelho
enquanto aguardas ansiosa
o costumeiro amante
***
factos
há gente em quem não se pode confiar ervas daninhas que minam a ceara vendedores de afectos a voz melosa na saliva envenenada niilistas arrebatados pelo seu próprio voo circuncisos da verdade afogados pelo cinismo em águas que tudo lavam menos as línguas pelo esterco afiadas
gente cobarde
que mata pela palavra e não à espada
seta alojada no ventre do diabo
***
um sábio louco
escreveu na porta da ermida –
deus vê tudo mas
não condena ninguém
***
doces olhos
doce negritude a tua pele é uma túnica de pedra escura o teu corpo pináculo de catedral teus seios o portal do desejo vivo e quente tua boca gerada da matéria mais pura
alimento que verto no sal do meu ventre
em ti penso e eternamente me contento
num presente que não é tempo
doce negritude
***
a aurora dos meus dias começa ao cair da noite
quando na aldeia deserta o mundo se silencia
na lareira que me aquece e a alma me alumia
***
intactos silentes pacificados
as portas cerradas
os corpos de si ausentes
só as almas estão presentes
no desatino da noite de longos dedos
é esse afinal o destino que nos é negado
amar como ninguém ama
sem carne em espírito
gratuitamente
***
está um frio terrível
no café entra a velha romena vende revistas pede esmola
dou-lhe uma moeda contrariado lembra-me que é natal
- é natale siô –
a dona oferece-lhe uma sopa é natal uma sopa e um pão
não sou tão bom quanto penso quanto pareço
e a vida não tem sentido
apetece-me chorar
***
flor que se abre no monte branco como quem se perde nas vielas da cidade de altas paredes recortadas na abóbada dos dias
pedras pardas do muro da prisão em altivez silenciosa clamam pelo prazer dos mortos
passos antigos dos gemidos e ais dormem o último sono às mãos de um bordel de lata onde jazem os vultos de mulheres para sempre perdidas
***
pudera eu transformar-me em cisne branco e seria zeus
o deus sedutor de todas as rainhas da terra
jorrando eternamente o meu amor em vossas soberbas delícias
***
caem as folhas
no rosal
as andorinhas
em árvores de lágrimas
acolhem o sudário
bordado em manhã antiga
o povo do vale
já pouco vale
***
a chuva que deveria ter caído e não caiu
é verde na face amarelo-pálido nos dedos
na sacristia as labregas
dos lameiros lacrimosos
oh santos pastores das encostas
noivos eternos das borregas
***
de ventre em ventre nasceu em busca de uma forma
as pedras dos ícones dos altares da parede do oratório não são mais adoradas
repousam da adulação
deixai-as repousar
***
esta alegria
que agora
me invade tão bruscamente
nasceu
da mais severa
melancolia
***
os meus vícios
uma oração por cada um
a palavra de deus é gratuita
mas dura o tempo de um relâmpago
recolhido nos olhares assustados
de monges e pastores da negritude
há uma cadela na rua com cio
ervas que crescem na língua madura
e os cães amontoam-se à coberta da lua fria
***
estamos juntos velhos amigos
contamos mortos no chafariz enquanto a noite cai nos nossos ombros descaídos
a aldeia deserta no cemitério respira-se lume
há um cadáver de pé
enquanto a luz gelada da rua
se mistura com o nosso queixume
***
sátiro que te escondes no odor do pinho e da oliveira
que ostentas o membro erecto e na luxúria do sexo descoberto
nunca hás-de amar esse espírito natural que faz viver os entes mais perfeitos de lagos rios bosques e mar
aparta-te meio-homem meio-animal
entrega-me esse corpo belo
a quem mais não queres do que mal
***
a neve chegou
de mansinho
trazendo consigo
no coração ardente
a nostalgia
das noites sintéticas
***
é dentro de mim
que te vejo
oiço e sinto
plenitude de um beijo escondido
a clamar no planalto com as entranhas em lágrimas
fim do deserto e do degelo
***
se viver uma outra vida hoje e aqui
terei a carne na carne divina e a alegria na alegria da chuva de uma tarde fria
ó nostalgia que a inspiração ata na fúria da tormenta e os bandos de flores desata na luz lânguida das cores
***
este remorso imenso
sem princípio nem fim
libera-me do castigo
***
a realidade demasiado tarde
uma estrela no caminho apaga o luar
alegria imaginária dos cravos
naquele jardim oculto de açucenas
***
terra nua febril em imóvel oração
a dor é o pão de cada dia do destino
lá fora está frio há raiva e amor no campo limpo e nos espíritos por limpar alarga-se o passo
nos soluços da visitação chovem tições de vinho
aves do paraíso graça do rio dourado nas asas do meu caminho
***
cavalos brancos
erguem-se no descampado onde
cavaleiros envoltos em poeira
respiram o ar sufocante
dos antepassados
mortos em combate
***
o passeio branco de geada
desliza sereno sob os teu pés
o firmamento foi devorado pelos angustiados
o seu olhar surdo e inumano debruça-se na terra árida
o horizonte é um homem com duas lágrimas
fome insaciável do deus vivo
evasão da imortalidade nos lábios rosados do transfigurado
***
incendeia-se o sol nas ervas que sangram naquela zona sombria onde a carne se decompõe e o espírito com suas garras se sustém com a nobreza e altivez da agonia dos séculos inundados pelas encardidas chuvas de outono
***
sussurram as folhas nas horas amotinadas
no monte branco a carne da virgem sem mastro rastejava ofegante
sonho incerto de vaso santo penetrado por misterioso florescer
onde haveria de esconder o juvenil tesoiro
quando as moscas zunem sobre a penugem claramente visível
soam três badaladas na pradaria desolada
um rio orgulhoso despedaça-se nos rochedos da nudez
melífluo aguaceiro de fêmeas verdejantes
***
um veleiro aporta vindo do porvir
amargurado olho-o do meu dois mastros
com as velas recolhidas
velho para partir
***
meu corpo no teu
teu cheiro no meu
espasmos consecutivos
na carne que renasce
beleza do mundo
nesta tarde reencarnada
***
lâminas que cortam o gelo de uma vida consumida
o muro caído a casa em ruínas
os filhos que a morte comeu
a velha mulher que se pranteia no regaço do passado miserável
e a cotovia que apaga o rancor das manhãs
canto sonhado na triste alegria do despertar
***
antes réu que juiz
espinho que rosa
tempestade que bonança
em cada noite de insónia
um último poema digo
nem sequer sou poeta
a noite arde
na janela aberta
***
heras no jardim envolviam os narcisos séculos medidos pelo respeitável carvalho velho
no banco do lago a angústia das vestes apodrecidas na espera da nau comida pelo mar viver sombrio da amada
o rio das ausências junto à mansão agora em ruínas
o salão vazio e o quarto desmembrado pela insónia centenária
na cadeira de estilo bárbaro o corpete de mil e uma volúpias
naquele breve olhar vimos nítidos os fantasmas de séculos
o desalento e padecimento eternos
***
a fome do teu corpo das tuas faces rosadas a cor alegre de teus vestidos fazem-me aguardar a hora incerta
ver-te sem que te fale e plasmar na memória a tua imagem é quanto basta aos meus sentidos
mesmo tão envelhecidos
***
um peixe encarnado
a velocidade da respiração
dos amantes nos nervos ensanguentados
dos escandinavos
havia gelo e enxofre
nas margens do rio
e um orgulhoso silêncio
nas flores da pele
***
pernas nas minhas entrelaçadas
de braço na cintura pergunto-te com o olhar –
estamos nus vamos amar
***
descia os degraus do templo
mais triste do que nunca –
deus não estava lá
***
o quarto inundara-se de luar a noite não adormecia pingos de chuva escorriam lânguidos nas vidraças das janelas
os galhos da árvore grande do jardim beijavam os beirados dos olhos abertos e exauridos
a luz ténue do astro nocturno
era o amor da terra escura
***
vivos que morrem mortos que se vingam nos sentimentos de culpa do passado
aves que cruzam os mares que planam nas altas montanhas e a cidade empedernida louca e entristecida chora-os na resignação terrestre
nos escombros mesquinhos
de palavras a sangue arroteadas
tédio interminável da melancolia
***
na janela o galo
de penas prateadas
entrançadas como heras
sonhava inutilmente
com o homem novo
quando o granizo
estrondosamente
reflectiu a sua violência
nas vidraças assombradas
***
um homem com a bagagem às costas
o trem tarda que importa
a vida real não marca horas
não se atrasa nem adianta
***
doçura de teus lábios no meu sexo
dedos na escuridão do teu fruto
um ai que se solta no silêncio
como vieste te foste –
tudo findou
***
parto
uma nova sorte
o coração oprimido
não sei se o tempo amadureceu
ou se sou eu que tenho medo
***
na avenida
árvores de lábios rasgados
o bom vento lateja nos primeiros raios
nos pulsos cortados das vísceras massacradas pelo destino
o infinito nada acorda do seu sono exemplar ergue-se na sua morada
pés em terra nunca antes pisada
o mistério da vida na cobiça da sua sombra esquecida
***
esta angústia de
não poder estar só
silente
na mente que se masturba
masturba e
novamente se masturba
como se fora adolescente
***
franzina nudez
de costas voltadas
pela parede
nua amparada
reluz na alvorada
do sexo
hoje negado
***
vi-te naquele dia chuvoso sabendo quem eras sem que o parecesses
sem que te tivesse visto nesta ou noutras ilusórias vidas
senti o teu gosto os estilhaços de tua alma o meigo oiro dos cabelos soltos na mais subtil das aragens e a sedução de tristes olhos inundados de profundas razões
desde logo li o nosso destino
***
desceram do trem com aquele ar impertinente de quem não sabe o que faz
tiraram fotografias que irão apagar as falsas delícias da ignorância
assim se foram como vieram
***
arestas doiradas das armas no campo das crianças mortas
adaga com que matas a inocência que a ti sobe
olho-te vejo-me
sem serenidade nem esperança
floresta desertificada por línguas de fogo bifurcadas
sílabas de fumo nas ramagens secas espoliadas da seiva secular
nem os cabelos como lírios de prata te alcançam
***
um tiro apenas
fez de ti um herói
rodas de flores
lápides rosadas
cruzes credo cruzadas
um amor desfeito
mãos arroxeadas
poisadas no peito
***
tu a rainha luminosa túnica colada ao corpo
perfeito rosto de rosa
ameixas caem ao solo tua beleza não
pele diáfana da natureza
toco-te levemente
um gemido ergue-se na noite
delícia que não é de gente
amor que em minhas mãos por horas deus te deu e tão bem soubeste divinizar
só o divino vive eternamente
***
posso aguardar pela paz
na noite da quinta deserta
a chuva canta
penso em deus
enquanto ela parte
***
o ar acendeu-se chispas por todo o lado
o céu escureceu além das claras janelas
de novo
a minha alma solitária prepara a partida
um novo passo
a cada partida
renasce o coração de aço
***
na viagem do teu corpo
na voragem do desejo
não peço que me peças nem tu
pediste que te pedisse
a voz liberta dos sentidos
anseio resolvido e sedento
no grito louco e místico
do delírio que morde voraz
as palavras que consumimos
***
o corpo amanhece trémulo
renascido para a dor e para o luto encarcerado no olvido
a montanha mais alta a meus pés
repartida como o pão doado aos pobres na serenidade luminosa da antiliberdade
lisboa chora os anos passados hoje carrasco amanhã vítima
o rio enegreceu ao rufar da cobiça
***
conhecer-te não quero
nem o teu corpo desejo
quero a tua imagem
esguia perfeita
no fundo dos meus olhos
***
a minha alma faz o caminho pedregoso para o mosteiro por quantos dias pergunto-me
junto ao mar num portão púrpura do cais está atracado o veleiro nórdico de escotilhas luzentes
jardins da terra e jardins do oceano a mesma solidão pacificadora a mesma brisa sussurrante
cálida é a bênção dos deuses derramada sobre os que enveredam pela contemplação do infinito
percorrendo com imaginação delirante os confins do que não tem existência
***
o tempo
deixa os seus passos
na areia vermelha
do desespero
escurece os que padecem
extermina os receosos
confunde os que se lamentam
assombra os medrosos
mata os que amam
***
as mãos não cedem ao silêncio
que se faz vício nos corpos apertados
filtrando o odor
de um amor desconhecido e puro
como saliva e suor de anjos
***
este momento de rendição enobrece-me
entrego a minha carne às famélicas águias sou seu precioso alimento seu prazer seu orgasmo selvático no membro extático
para cada ocasião uma oração
não evoco
o anelo evola-se para ressurgir na tarde ociosa
a noite cai perfumando os ares
a mente esvazia-se
a agonia vai-se
por agora
ela fica
***
o tempo mágico dos corpos floridos
a partida que se deseja na irresolução
minha velhinha mãe
sozinha
tarda o encontro
onde estará o que em mim vive
terei de deixar tudo
espalhado no caminho
irei por dias
tu estás para além dos teus templos
também estás no coração
de minha amorosa mãe
***
difíceis e morosos são
os momentos em que
secretamente te aguardo
***
acendem-se lâmpadas nas folhas de trevo cavaleiros preparam as montadas a guerra
retinir crescente do orvalho escutado à janela pelos rostos de crianças melancólicas
anseia-se sempre por outro amor
incomparável e único
sol a beijar manhã plana
logo que o mundo finde
guiados pelas estrelas nos promontórios dos mistérios
aprenderemos a amar
***
que o ouro se cale
e a inocência regresse nos
meios-dias de esperança
nos mitos antigos
ressoa a noite no fumo
do cigarro que se apaga
***
à cegueira da culpa
me confesso
do sonho fantástico
do sangue da terra
me despeço
aqui teimosamente
sem gente nem crente
no outono da dor
desfaleço
***
teu corpo nu no meu leito
o repouso de uma mão no peito redondo
palavras soltas na insónia nascente
o amor não dorme na
ausência que consente o medo
***
tétricos e eternos horrores provações deste mundo nas caves encarvoadas que suspiram lágrimas
farrapo velho a vaguear nos penhascos do descuido
palavras solitárias das montanhas nevadas
tão fúteis tão calmas
tão calvas
nada és para além da lembrança
***
em redes de esmeralda escrevi as minhas dúvidas
as noites continuam a ser longas
acenderei as velas aos primeiros sinais da madrugada
a lua ergue-se na montanha sonho com os raios cristalinos em dança frenética no lagoacho
e a dança melodiosa da velha truta na erva-da-fome
***
o meio-dia da vida oculta-se no que está abscôndito
revela-te à minha visão espírito contigo desfarei o tempo
o véu do templo irá romper-se em estilhas
fundeio com ferro bifurcado nas minhas entranhas fechando os olhos à paisagem ruinosamente abatida por garras de homens
no ventre vazio sinto a alma viver
mas se vens não te vejo se te vais não entendo
nada compreendo
a ignorância é a minha essência
***
é tempo de visita
o vulto da morte amainou a tempestade mítica do fim dos tempos
nada para a deter
posso morrer nos símbolos da noite
***
esta necessidade de solidão e de olhar para dentro transformou-se numa obsessão
busco uma nação distante no que de mais perto atinjo
ermo é o lugar onde mais ninguém cabe
templo cingido por fino véu na noite escura do mundo em hesitação
peregrino do além
mendigo do céu
***
a mesma oração de sempre –
estou aqui
simplesmente aqui
à espera de nada
a querer nada
***
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