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OS TRATAMENTOS SUGERIDOS NÃO DISPENSAM A INTERVENÇÃO DE TERAPEUTA OU MÉDICO ASSISTENTE.

ARTE

domingo, 23 de maio de 2021

CAPÍTULOS INTERIORES I - CHUANG TSE

 


                                             A Chuang Tse





***



no oceano do norte há um peixe chamado kung

não sei de quantas mil li de comprimento

esse kung transforma-se num pássaro chamado peng

as suas costas têm não sei quantas mil li de largura


quando se move voando

as asas escurecem o céu

como se fossem nuvens


quando viaja dirige-se

para o oceano do sul

o lago celestial


no registo das maravilhas

                                    de chi hsie

lemos que quando um peng

                                    voa para o sul

a água agita-se numa extensão

de três mil li ao redor


      enquanto o pássaro sobe num temporal

         até à altura de noventa mil li

            para um voo de seis meses de duração

para depois repousar


subindo a essa altura no ar

a ave vê

as brancas neblinas da primavera

as nuvens de poeira

e as coisas vivas que exalam

os seus hálitos no meio delas


imagina se o azul do céu será a sua cor real

   ou apenas o resultado da distância sem fim

      e confirma que as coisas sobre a terra

              lhe parecem sempre as mesmas



      se não houver profundidade suficiente

         a água não fará flutuar as grandes embarcações 

            também se não houver profundidade suficiente

                não será possível o ar suportar grandes asas


uma cigarra e uma pombinha riram

dizendo


quando voo

   com todas as minhas forças

      o máximo que consigo é voar

de árvore em árvore


quantas vezes não

chego ao meu destino


caio no chão

a meio do voo


para que é preciso subir noventa mil li

para iniciar a viagem rumo ao sul


quem vai para o campo

e leva três refeições consigo

volta com o estômago tão cheio

como na hora em que partiu


quem viaja cem li

deve levar arroz suficiente

para o descanso de uma noite


e quem tem de percorrer mil li

necessita transportar suprimento

de provisões para três meses


aquelas duas

   criaturinhas

afinal

que sabem elas



o saber limitado

não tem o alcance

do saber profundo


do mesmo modo


que uma vida curta

não tem a mesma

duração de uma longa


como poderemos

afirmar que assim é


a planta do cogumelo

que dura uma manhã

não conhece a mudança

do dia e da noite


a cigarra desconhece

a mudança das estações

da primavera e do outono


ambas têm vida curta


porém

   no sul de chu

      há uma árvore

         cuja floração e frutificação

            duram cada uma quinhentos anos


antigamente havia uma árvore enorme

cuja floração e frutificação

duravam cada uma oito mil anos


contudo

peng tsu

é conhecido

por ter alcançado

muita idade

e é objecto

de inveja

para todos


não será triste que toda a gente o queira imitar



há uma diferença

entre o pequeno e o grande


              tomemos por exemplo um homem

                   que concretiza as suas funções

                             num pequeno escritório


              ou cuja influência

                     se faz sentir

             sobre um lugarejo


              ou cujo carácter

                           agrada

             a um governante


a opinião que tem de si

será a mesma que a da cigarra


      o filósofo yung de sung

      rir-se-ia de tal homem


se o mundo inteiro o lisonjeasse

                           ele não se deixaria impressionar

tão-pouco se deixaria dissuadir

                           do que pretendia fazer

                           se todo o mundo o censurasse

pois

yung é capaz de distinguir a essência da superficialidade

e compreende o que é a verdadeira honra e a vergonha


      tais homens são raros numa geração


mas


nem mesmo ele

consegue firmar

a sua reputação

                    e é imperfeito



***



diz-se

que o homem perfeito

se ignora a si mesmo



o homem divino ignora

                                a recompensa do valor

e o verdadeiro sábio 

                                ignora a reputação



***



não se pergunta a um cego

qual é a sua opinião

a respeito de um belo desenho


nem se convida

um surdo

para um concerto


a cegueira

               e a surdez

não são apenas defeitos físicos


há a cegueira

                  e a surdez

                                do espírito



***



o que não tem qualquer utilidade

para os outros homens

poderá porventura causar-nos preocupações



***



a grande sabedoria é generosa

      a sabedoria mesquinha aprecia contendas


os discursos virtuosos são desapaixonados

      os pequenos  discursos são desagradáveis


ainda que a alma

esteja presa ao sono

ou mesmo acordada


enquanto

o corpo se move

nós empenhamo-nos

e combatemos

com as coisas

que nos cercam


quando estamos a dormir

estamos em contacto

com as nossas almas



algumas

são fáceis de resolver

            e são comodamente aquietadas

algumas

são profundas e dissimuladas

            e outras são misteriosas



***



contentamento e ira

tristeza e felicidade

tédio e remorso

hesitações e temores

surgem à vez

sempre com

aparências diferentes


tal como a música

que sai de uma cana oca

ou como cogumelos

que germinam na humidade


dia e noite alteram-se em nós

mas não sabemos como nascem


poderemos por uma só vez

pôr o dedo

sobre a verdadeira causa


como poderemos

compreender

tudo num único dia



parece que há uma alma


o principal para a sua existência é querer


que opera       é plausível


embora não possamos ver-lhe a forma


deve ter

      uma realidade interior

                 posso senti-la

mas não tem forma externa



considera o corpo humano

com as suas centenas de ossos

as nove cavidades externas

e os seis órgãos internos


qual destas partes preferes


não gostas de todas equitativamente

ou tens alguma preferência


será que esses órgãos prestam

tarefas de serviçais a mais alguém


desde que os servos não se governam

servirão eles de senhores e servos por turnos



é inegável que existe uma alma para os controlar


tenhamos ou não firmado

a verdadeira natureza dessa alma

isso é coisa que pouco interessa à própria alma


uma vez tomando conta da forma material

prossegue o seu curso até que se esgote


consumir-se nos trabalhos e nos pesares da vida

e ser arrastada sem possibilidade de parar no caminho


não será ela digna de pena


trabalhar sem cessar a vida toda

sem viver para colher os frutos

esgotada pelo labor

partir para não se sabe onde


não será um motivo de pesar



os homens afirmam

que não há morte

o que é que isso lhes adianta



o corpo decompõe-se

e o espírito desaparece com ele


não será isto motivo para tristeza


será que o mundo é tão estúpido

      a ponto de o não compreender

         ou serei eu somente o estúpido

   e os outros não



se devemos deixar-nos guiar

pelos nossos preconceitos e ideias

quem será que ficaria sem um mestre


que necessidade haveria de fazer comparações 

sobre o que está certo e o que está errado nos outros

e

se alguém deve seguir o próprio julgamento

de acordo com os seus preconceitos

saiba que até os loucos os têm


mas produzir um julgamento 

   do que está certo e errado

      sem primeiro ter uma opinião

         é o mesmo que dizer

            parti para yueh hoje e cheguei lá ontem

ou

é o mesmo

que afirmar

que algo

que não existe

existe


a ilusão de afirmar algo que não existe como existente

não pode ser conseguida nem pelo teólogo yu

e nós muito menos o poderemos penetrar



a palavra não é um simples sopro de hálito

             foi criada para dizer algo

apenas não se pode determinar o que dizer


há na verdade palavra ou não há 

podemos ou não podemos distingui-la

do chilreio dos filhotes de pássaros



como é que o tao

pode ser tão obscuro

de modo a necessitar

que haja uma distinção

entre o verdadeiro e o falso


como pode a palavra

ser tão obscura

de modo a necessitar

que haja uma distinção

entre o que é certo

e o que é errado



onde poderemos ir

e pensar que o tao não existe


onde poderemos ir

      e pensar que as palavras

            não podem ser ouvidas


o tao não pode ser inteiramente apreendido

por via da nossa compreensão inadequada

e as palavras não se apresentam com perfeição

devido às expressões retóricas floreadas


daí

que as afirmações e negações

   das escolas de shih e fei

representem julgamentos morais gerais

   e distinções mentais

certo e errado

verdadeiro e falso

ser e não ser

afirmativo e

negativo

bem como

fazer justiça e condenar

afirmar e negar


as escolas de confúcio e de mo tse

cada qual negando o que a outra afirma

e afirmando o que a outra nega

cada qual afirmando o que a outra nega

e negando o que a outra afirma

só pode resultar em manifesta confusão


o melhor a fazer é olhar

para além do certo e do errado



não há nada

                 que não seja isto

não há nada

                 que não seja aquilo


o que não pode ser visto por aquilo

pode ser compreendido por mim


só se podem conhecer as coisas

através

do conhecer-se a si mesmo


daí digo

isto emana

daquilo

aquilo também

deriva disto


esta é a doutrina

da interdependência

disto e daquilo


não obstante

a vida resulta da morte

e a morte resulta da vida


a possibilidade

                  decorre da impossibilidade

e a impossibilidade

                  decorre da possibilidade


a afirmação

                  baseia-se na negação

e a negação

                  baseia-se na afirmação



sendo esse o caso

o verdadeiro sábio

rejeita todas as distinções

e refugia-se na natureza

buscando a iluminação

que lhe vem do céu



precisamos entender

que mesmo que nos detenhamos no isto

o isto também é aquilo

e o aquilo também é isto


isto tem decerto os seus certos e errados

e aquilo tal como o isto também os tem


existe realmente

ou não existe

a distinção

entre isto e aquilo


quando o isto subjectivo

e o aquilo objectivo

não têm correspondentes

são o verdadeiro eixo do tao

o seu ponto de quietude


e quando esse eixo passa através do centro

                  para o qual o infinito converge

                     as afirmações e as negações

                  confundem-se no infinito único



daí se diz que não há nada

como conservar a luz

para além do certo e do errado



tomar um dedo

como prova de que um dedo não é um dedo

não é melhor do que tomar uma qualquer coisa

que não seja um dedo para provar

que um dedo não é um dedo


tomar um cavalo

como prova de que um cavalo não é um cavalo

não é melhor do que tomar uma coisa qualquer 

que não seja um cavalo para demonstrar

que um cavalo não é um cavalo


o mesmo se dá com o universo

que não é nem dedo nem cavalo



o possível é possível

e o impossível é impossível

o céu e a terra são como um dedo

as dez mil coisas são como um cavalo



o tao trabalha e o resultado obtido é o seguinte


as coisas recebem nomes

                          e afirmamos serem o que são


por que são elas assim

porque se afirma serem como são


por que não são de outro modo

porque se afirma não serem assim


as coisas são assim por si mesmas


não existe nada

                     que não seja de certo modo

e não existe nada

                     que não possa ser de certo modo



toma por exemplo uma pessoa feia


e uma grande beleza


e tudo o que for estranho e monstruoso


tudo isso é igualado pelo tao



a divisão é o mesmo que criação

a criação é o mesmo que destruição


não há uma criação ou uma destruição

porque essas condições

são irmanadas de novo numa única


todas elas são uma no tao



só os verdadeiros sábios

compreendem o princípio de igualar

todas as coisas numa única



descartam as distinções

       refugiam-se nas coisas comuns e ordinárias


as coisas comuns e ordinárias

       servem para certas funções

e portanto conservam

a integridade da natureza


partindo

dessa integridade

uma pessoa compreende

e da compreensão

chega ao tao

aí pára


parar

      sem saber

      como pára

      e se parou

                     eis o tao



mas cansar o intelecto

numa ligação obstinada

com a individualidade das coisas


não reconhecer o facto de que

todas as coisas são uma única

a isso chama-se três pela manhã



o que é três pela manhã


um tratador de macacos disse-lhes

que cada um devia comer

três nozes pela manhã e quatro à noite


os macacos ficaram furiosos


então o tratador resolveu

que poderiam comer

quatro nozes pela manhã e três à noite


os macacos ficaram satisfeitos


o número de nozes continuou a ser o mesmo

porém havia uma diferença

devida à avaliação subjectiva de gostos e aversões


isso também deriva disto

por via do princípio da subjectividade


em consequência o verdadeiro sábio

reúne todas as coisas diferentes

e descansa no natural equilíbrio do céu


a isto se chama o princípio de seguir dois cursos

ou os dois lados de uma só vez



o sábio harmoniza

o certo e o errado e repousa

no equilíbrio da natureza



o conhecimento dos homens antigos

tinha um limite

qual era esse limite


remontava

   a um período

      em que a matéria

         não existia


era esse ponto extremo

que o seu saber alcançava



o segundo período

era o da matéria


porém

   da matéria

      sem condição

          ou período indefinido

            onde não lhe era dado nome



a terceira época

viu a matéria

com condição definida


no qual

         ainda se desconhecia

         o que foi depois julgado

verdadeiro ou falso

o certo ou errado


quando

o verdadeiro e o falso

o certo e o errado

apareceram

o tao

começou a declinar

e

com o declínio do tao

surgiu o desejo

o fim individual



além disso teria o tao

chegado ao apogeu e declinado



***



o verdadeiro sábio

foge da luz que o deslumbra

refugia-se no comum e no ordinário


por esse meio chega à compreensão



suponhamos

                 que haja uma afirmativa


não sabemos se pertence a uma categoria ou a outra

mas se reunirmos as diferentes categorias numa única

então as diferenças de categorias deixam de existir


devo explicar melhor


se houver um começo

então

houve uma época

antes

desse começo

e uma época

antes da época

que ficava

antes da do começo



se há uma existência

deve ter havido

uma não-existência



e se houve um tempo

em que nada existia

então deve ter

havido uma época

em que nem mesmo

o nada existiu


o nada veio a existir

subitamente



alguém poderá dizer realmente

      se pertence à categoria da existência

            ou da não-existência


       até mesmo das palavras

                       que acabo de proferir

               não posso dizer

                               se significam

                      ou não

                                alguma coisa



sob o pálio do céu

   não há nada maior

      do que o comprimento

         da penugem

            de um pássaro

               no outono

enquanto

que o monte tai é pequeno



tão-pouco

      há vida mais longa

            do que a da criança

                ceifada pela morte

                       na sua infância

    enquanto

    o próprio

    peng tsu

    morreu jovem


o universo e eu

viemos

à existência juntos


eu e tudo que existe

somos

uma única coisa



   se todas as coisas

     são uma única


      qual o lugar

   para a palavra


por outro lado


desde que eu possa dizer

a palavra única

como pode a palavra não existir


se existe mesmo

temos a única

e a palavra dois

e dois e um três



daí em diante até

os melhores matemáticos

deixam de alcançar o derradeiro


e será que as pessoas comuns

             falhariam muito mais


se de nada

se pode chegar a alguma coisa

e consequentemente a três

será ainda mais fácil

se se partir de algo


desde que não

se possa prosseguir

pára-se aí



o tao

pela sua natureza

jamais

pode ser definido



a palavra

pela sua natureza

não pode exprimir

o absoluto



daí surgem as distinções

                        que são

          direito e esquerdo

          relacionamento e dever

          discernimento e discriminação

          competição e luta


são as chamadas oito virtudes



além dos limites do mundo externo

o sábio reconhece que existe

mas não fala sobre o assunto


dentro dos limites do mundo externo

o sábio fala

mas não comenta


com respeito pela sapiência dos antigos

integrada no livro da primavera e do outono

que é a crónica dos antigos reis

o sábio comenta mas não interpreta



entre as distinções feitas

existem diversidades

que não podem ser feitas

entre as coisas interpretadas

existem coisas

que não podem ser decifradas


      como pode ser            pergunta-se



o verdadeiro sábio

guarda o conhecimento

para si


os homens em geral usam o seu

em argumentos com o propósito

de se convencerem uns aos outros



diz-se que aquele que argumenta o faz

porque não pode ver certas realidades


aqueles que disputam não vêem




o tao perfeito

                 não pode receber um nome


um argumento perfeito

                              não emprega palavras


quem é que conhece o argumento

que não pode ser alegado sem palavras

e o tao que não se declara como tao


daquele que o sabe

   pode afirmar-se

      que entrará no reino espiritual


    sendo preenchido sem ficar cheio

       e despejado sem ficar vazio


sem saber como isso terá sido feito

é a verdadeira arte de ocultar a luz



***



o homem perfeito

é um ser espiritual



mesmo que o oceano

ferva sob o sol

ele não se sente quente


mesmo que os

grandes rios congelem

não sente frio


mesmo que as montanhas se desagreguem

em consequência de raios vindos do céu

e as suas profundezas colossais se virem do avesso

como consequência de terríveis tempestades

           ele não tremerá de medo


subirá acima das nuvens do céu

e guiando o sol e a lua adiante

passará para além dos limites da existência mundana


a morte e a vida

não lhe oferecem

mais vitórias


a vida

e a morte

não o afectam


será

que se pode

                preocupar

com a distinção

                     entre ganho e perda

                                               entre o bem e o mal



***



chu chiao dirigiu-se

a chang wu tse

do seguinte modo


ouvi confúcio dizer


o verdadeiro sábio

não presta atenção

aos negócios deste mundo


não procura o ganho

                           nem evita as perdas


nada pede

            das mãos dos homens


não adere

            às rígidas regras de conduta


algumas vezes

                  diz algo sem falar


outras fala

             sem nada dizer


assim paira para além dos limites

do mundo dos homens



confúcio disse que

são fantasias vazias


      mas para mim

      são a personificação

      do tao mais primoroso


qual é a tua opinião



chang wu tse

respondeu


são factos que

deixarão perplexo

até o imperador amarelo


como o haveria de saber confúcio


além disso

tu és muito leviano

a tirar conclusões


quando vês o ovo de uma galinha

esperas ouvir o galo cantar


quando vês um arco

esperas ter um pombo assado



dir-te-ei algumas palavras como exemplo

e ouvi-las-ás do mesmo modo


como é que o sábio se senta entre o sol

e a lua e conserva nas mãos o universo


reúne tudo num todo harmonioso

rejeitando a confusão disto e daquilo

título e precedência


coisas que o homem vulgar

   cultiva cuidadosamente

      o sábio ignora-as totalmente


         amalgamando as disparidades

            de dez mil anos numa matéria pura

                o próprio universo conserva

                  e mistura tudo do mesmo modo



como sei que o amor à vida não é uma ilusão


como sei que aquele que teme a morte

não é uma criança que se perdeu no caminho

e que não sabe como voltar para casa



a senhora li chi era filha de um oficial de ai


    quando o duque de chin

    a quis tomar para si

    pranteou até que

    o corpete do seu vestido

    ficou encharcado de lágrimas


quando chegou à habitação real

partilhou o sumptuoso leito do duque

comeu finas iguarias

e lastimou-se de ter chorado



como poderei saber que o que morre

irá arrepender-se de se ter apegado à vida anterior


como poderei saber que os mortos

não ficarão espantados caso alguma vez voltem à vida



os que sonham com a festa

acordam para os lamentos

e para os pesares


os que sonham com lamentos e pesares

acordam para se reunirem

aos que vão caçar


enquanto sonham não sabem que estão a sonhar


alguns até farão interpretações do sonho que estavam a ter


só quando acordam

compreendem

que tiveram um sonho



pouco a pouco

   vamo-nos aproximando

      do grande despertar

         e verificamos que esta vida

            foi realmente um grande sonho


os tolos pensam que estão acordados

e ficam convencidos de que tudo sabem


que espírito estreito têm


      tu e confúcio são ambos sonhos 


      e eu que afirmo que vós sois sonhos


      também eu não passarei de um sonho


é um paradoxo


amanhã um sábio

talvez se erga para o explicar


mas esse amanhã

não virá senão depois

que se tenham passado

dez mil gerações


contudo

talvez o encontres ao dobrar a esquina




supõe que discutimos


se tu levares a melhor

e eu não conseguir argumentos

que batam os teus 

és tu necessariamente quem tem razão

e serei eu que estou errado


ou se eu levar a melhor na argumentação

sou eu necessariamente quem tem razão

e serás tu que estás errado


ou ambos teremos razão em parte

e em parte estamos errados


ou ambos estamos completamente certos

e completamente errados


tu e eu não o podemos saber

e portanto vivemos todos nas trevas



a quem chamaremos para juiz nesta questão


         se eu pedir a alguém

         que tenha a tua opinião

         ficará do teu lado

         e será parcial


que adiantará um tal juiz entre nós


         se eu pedir a opinião de alguém

         que tenha o meu ponto de vista

         ficará do meu lado e será parcial


de que nos adiantará um tal juiz


         se eu nomear alguém

         cuja opinião seja diferente das nossas

         ficará em situação de não poder decidir

         já que difere de ambos


e se eu nomear alguém

que concorde com os dois

também ficará em situação

de não poder decidir

já que concorda com ambos 


se tu e eu e os outros homens

não podemos decidir

como podemos depender um do outro


as palavras dos argumentos

são todas relativas



se queremos alcançar o absoluto

necessitamos de os harmonizar

por intermédio da unidade de deus

e seguir a sua evolução natural

de modo a que possamos completar

a duração de vida que nos foi concedida


mas qual é a harmonia

por meio da unidade de deus


é isto

o certo pode não ser realmente certo

o que parece pode realmente não o ser


esquece o tempo

e a distinção

o certo e o errado

goza o infinito

repousa nele



***



as trevas disseram à sombra


tu agora estás em movimento


daqui a pouco ficas parada


ora te sentas para daqui a pouco te levantares


porquê toda essa indecisão



a sombra respondeu


talvez eu dependa de algo

que me faça fazer o que faço

e talvez essa coisa dependa

por sua vez de outra

que a obriga a fazer

o que faz


ou talvez a minha dependência

seja como um movimento inconsciente


como posso dizer porque faço uma coisa

ou porque não faço outra



***



certa vez

eu

chuang tse

sonhei que

era uma borboleta

esvoaçando

alegremente

daqui para ali

e dali para aqui

usufruindo a vida

sem saber

quem realmente era


de repente acordei

e ali estava eu

eu mesmo

chuang tse


sonhou chuang tse que era uma borboleta

ou foi a borboleta que sonhou ser chuang tse


deve haver alguma diferença

entre chuang tse e a borboleta


este é

um acontecimento de transmutação

de coisas materiais






***


Versão livre dos Capítulos Interiores de Chuang Tse


***




José Maria Alves

https://homeoesp.blogspot.com/

https://homeoesp.org/



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