***
NAVEGANTE
se queres
aprender a orar
faz-te ao mar
todos sabíamos
que aquele navegante
perfumado de sal e maresia
se deixara há muitos anos
no esquecimento das fábulas
de proferir orações mesmo as breves
era um animal marítimo a morrer todos os dias
nos raios de sol na espuma branca do vento de sueste
nas vagas aterradoras e ondulantes do fogo nupcial
não se escondia na aura das muralhas impenetráveis
onde as palavras transbordam e as mentiras abundam
em propícia ladainha enovelada por algas costeiras
conhecíamos-lhe todos os vícios
que o devoravam enquanto vivo
queimando-o até à medula
mulheres e vinho
o rum do entardecer alumiado
por fêmeas devoradas
na rapina das horas suaves
os recessos inexplicáveis
de uma biografia sem história
a lenda viva dos passos certeiros
à margem das grandes massas de água fosforescente
potência desconcertante do medo
na velha camisa rasgada por unhas celestes
por vezes
tão humano como searas de pão
viçoso clarão da suprema energia
em branda floração
outras
animal em faúlhas
a romper os pulmões das estrelas
a escrever com os dedos de cristal
no tabuado do seu velho barco em botão
obscenidades e verdades cruentas
seladas pelo estilo sóbrio do amanhecer
ou da loucura embalsamada do entardecer
a melancolia feroz do destino era-lhe alheia
também o pesadelo das rugas sulfurosas
decifrava as coisas ocultas
os frutos maduros das aparências
a perfeição dos diamantes ao luar
com a noite chegavam os cios
em que humano se divinizava
com os olhos nas palmas das mãos
estriadas pelas escotas de pedra
afundava-se na matéria da casa flutuante
onde todas as mulheres
eram sombras rítmicas
e os desejos
o cercado inviolável da besta ferida
na urgência da dança sísmica
dos corpos glorificados
sem razão poisava a boca
nas formas decadentes
abrindo à sua passagem
a transparência da volúpia
numa humidade tão exacta
como chama a luzir no horizonte
promíscuo do prazer
para que queria ele
aqueles momentos
em que os astros arrefecem
e as luzes ressuscitam
na saliva adocicada a razão
o desatino erecto da nudez
abria o portal do covil amoroso
com um estrondo a reluzir
nos espasmos implacáveis
cifrados em mapas antigos
atulhados de praias desertas
orladas por jardins onde as paisagens
foram inscritas pelo nó
das labaredas em combustão
pouco ou nada dormia
respirava as brisas quentes
que se esgueiravam pelo tabuado
deixando o corpo dormente vacilar
na alucinação dos sonhos
e na serenidade cravada no beliche
encerado pelas artérias explosivas
do sono supérfluo
quando as velhas adriças batiam
contra o mastro imperturbável
num toque rimado
ouvia os pescadores na barra
com as suas lanternas e motores ruidosos
como prédios amontoados
nas trevas da cidade
indiferente
olhava as escotilhas apavoradas
pela negritude desordenada
e ouvia o balouçar da água
nos ramos verdes da enseada
afinal
tinha sido sempre o rosto do mar
a mão das nuvens
o coração do sol
o espelho da liberdade e da imprudência
o lazer abrasado e confiante
que poderia deus dele querer
quando a ondulação
sustinha na crista das vagas
a respiração enlutada
ainda sóbrio
sentava-se no bar sobranceiro ao cais
apertando a fronte como numa alucinação
pelos espelhos de vidro suado
desfilavam as cicatrizes
dos corpos de mulheres em rebentação
alguns embriagados nas mesas
orvalhadas de iluminações insondáveis
suspiravam sílabas roucas
nadadores das profundidades
feitas frestas no limbo exótico
e acabrunhado das crianças
mortas e por baptizar
àquela hora na igreja matriz
a missa do sétimo dia
por alma de seu pai
um montanhês tão rigoroso
como o gelo da calota polar
tinha chegado do mar
no crânio um grito desfraldado
fazia estremecer a rede oculta
do nome das coisas insensíveis
à dor e à morte
a crepitar nas fornalhas do esquecimento
cruzou os braços e clareou o espaço
com os relâmpagos da harmonia crescente
ele era o seu próprio templo
cristão por baptismo
trocara a igreja por uma garrafa de rum
a seiva divina vertida em longos copos raiados
sozinho
trocara o seu reino por um tonel de vinho
o prodígio das bênçãos
cadeias de oiro bravio
a pedra escura no rio
da infância submersa
com ele nobremente trajado
de mão dada pelas lojas
chiques da baixa pombalina
e pelo chiado
memória de tempo ido
de um amor agora sofrido
a chaga de todo um corpo vazio
a mãe estaria lá
negra de carvão vestida
os amigos os indecisos a família
lembrariam o nome com outros nomes
de forma célere e contínua
falariam dos mistérios
e em segredo dos dogmas
da redenção das coisas de casa
sempre com o espírito ausente
e algumas lágrimas insulsas nos dedos
seria preciso escalar
as montanhas lunares
reduzir a cinzas
a matéria estelar
destroçar os cometas ameaçadores
para olhar com agrado
a terra carregada de silvedos
entrançados nos maxilares da paixão
entoação salvífica de falsos credos
olhou para dentro de si
engolindo um punhado de medo
sentiu a queimadura da alma
o sangue a ferver e pausadamente
debruçou-se na ordem das ideias frias
tudo lhe parecia coroado por anémonas
membranas e tendões
na abertura dos portais da consciência
apunhalada com ferocidade
por suas próprias mãos
valia-lhe mais estar ali
galvanizado por memórias
no pavor dos cantares inebriantes
despejou com deslumbre um outro copo
nele o poder da criação solitária da compaixão interna
tesouro esbraseado fundido no recanto
mais obscuro do seu castelo de pranto
tudo resolvido ou por resolver
na ignição côncava das expressões inconscientes
da arte de entrar em si
de se amar
e florir fértil
num mundo por deus abandonado
costumava sentar-se nas rochas
passajadas e batidas por golpes de mar
umas vezes tão terno
floco de neve nas mãos da criança marítima
outras violento soldado
com a mão direita a tremer o gatilho da morte
- lembranças de um amar perdido e do ultramar -
só custa matar a primeira vez
a partir daí
matar e ver morrer a quem não se quer
é tão normal e arrepiante como amar corpo
que se não conhece
parecia estar cansado da vida
dos homens na marina-passadeira
de pernas sapatos roupas de marca
e sorrisos elegantes e asnáticos
raramente olhava as fêmeas em cio exuberante
e os falsos navegadores
e quando olhava o seu olhar
atravessava a carne e as vísceras e ossos
fixando-se num além indecifrável
via-o do meu veleiro
quando nas noites de luar
preparava o aparelho
para soltar as amarras da mente
na vastidão das águas pintadas de escuro azul
o seu rosto era sempre o mesmo
rugas torneadas pelo sol da angústia leitosa
pouco lhe interessava a ferida
que o meu pesado patilhão
abria no coração do mar
fazendo-o sangrar
as minhas velas lembravam-lhe
as asas duma gaivota esfomeada
nunca quis partilhar uma viagem ao alto mar
dizia-se velho e costeiro
apesar de nele inexistir qualquer medo
existindo tão-somente aquele respeito
que só os verdadeiros mareantes têm
o seu olhar circular envolvia todos os oceanos
com seus cabos tormentosos
temporais e calmarias
horn e boa esperança
hoje não o vi
dizem-me que morreu
o último dos navegantes do sonho
reduzido a cinzas
sepultado no horizonte do seu olhar
***
UM CONTO DE NATAL
Foto de João Tilly – Serra da Estrela
tio zé ferreira assomou à janela do casebre
quando o dia começava a clarear
a neve caía em pequenos flocos
com suavidade e doçura
afagando a terra deslumbrada
nos seus oitenta e cinco anos
com os caminhos intransitáveis
bastas vezes passara um natal nevado
anos para si incontáveis
do casamento com a santinha
como carinhosamente chamara
à companheira das longas invernias
nasceram três filhos
o mais velho morto na guiné
numa guerra que nunca conseguira entender
o do meio com vida feita em terras de frança
e a mais nova nas américas
casada com um filho
de emigrantes de folgosinho
tanto sonho
tanta alegria
tanta esperança
pusera na sua vida
quando agora
apenas tinha por companhia
o seu cão
o sofrimento
e o vinho
a santinha
madalena de seu nome
abandonara-o há treze anos
com uma daquelas amaldiçoadas doenças
em que os médicos
mandam os pobres morrer em casa
desde aí
o pequeno casal que sempre habitara
nunca mais fora o mesmo
a senhora morte arrastara consigo
as réstias de felicidade que ciosamente
guardava na alma envelhecida
e já saudosa do amor ausente
de um filho que uma mina
despedaçara ainda moço
a televisão alimentada por painéis solares
trazia-lhe notícias de um mundo que não conhecia
e se recusava a aceitar e compreender
naquela caixa cheia de imagens apregoava-se
paz justiça caridade solidariedade humildade enquanto guerras e crimes se multiplicavam
e a corrupção o compadrio e o aproveitamento próprio
eram as regras duma sociedade falida
que se apregoa moralista e justa
mas é imoral degradada e injusta
sociedade que até parece aplaudir os homens
que abusam de criancinhas
os governantes que enriquecem à custa do povo
e os que matam gratuitamente em nome de deus
ou de um estúpido nacionalismo
o vale serpenteado pelo mondego
e ladeado pelas montanhas imponentes
a companhia do fiel
seu amigo de quatro patas
davam-lhe o alento suficiente
para continuar vivo
atenuando-lhe o sofrimento
triste é o vale que não tem um rio que o atravesse
como triste é o homem que não tem paixões
pensava ele naquela forma simples e sincera
que é desconhecida aos poetas e filósofos
a neve continuava a cair
agora com mais intensidade
estava na hora de acender o lume
para quebrar o frio gélido
que se entranhava nos ossos
através das carnes ressequidas
os animais estavam acomodados
e o fiel enroscado a um canto
olhava-o com uma expressão de ternura
que só o cão do pastor tem
por conhecer a solidão
e a paz da natureza sem gente
ajeitou as mantas da cama velha
e sentou-se vagarosamente
na cadeira junto à lareira
com os olhos postos no fogo
caíram de seus olhos duas lágrima
que deslizaram pelo rosto rugoso
na cruel lembrança dos ausentes
mais logo seria noite de natal
noite vazia como tantas outras
triste e branca como quem se despede
da virgem na cova da iria
as horas foram passando lentamente
enquanto pela memória recuava ao passado
por momentos o padecimento
era mitigado por um eterno agora
quietude sem tempo
realidade de um fogo crepitante
envolto em farrapos de neve
vindos de um céu que começara a escurecer
estado altamente sensível na sua intemporalidade
o encanto da noite nascente
não pertencia a este mundo
mas o seu coração sofria doente
pôs a panela de ferro ao lume
para cozer as batatas e as couves
escolheu uma posta de bacalhau
e encheu um jarro de vinho
comprado ao albertino em folgosinho
sobre a mesa colocou a toalha bordada pela santinha
e que havia servido para todos os dias festivos
o seu prato lascado um copo um garfo e uma colher
bem na sua frente o mesmo
a madalena iria estar ali com os filhos ao redor
saltando e brincando e pedindo um naco de centeio
barrado com manteiga e açúcar
enquanto lhe puxavam ansiosamente
pelas longas saias pretas
quis chorar
mas faltaram-lhe as forças
os seus olhos haviam secado
nas duas últimas lágrimas
tal como seca
o ribeiro da montanha
no calor do verão
- na serra nove meses de inverno
e dois de inferno -
preparava-se para comer
quando a porta estremeceu
com três pancadas sucessivas
com aquele tempo
ninguém se arriscaria a andar pela serra
talvez fosse ilusão dos desgastados sentidos
mas fora estava um homem de meia-idade
envolto num longo capote
de barbas grisalhas a tocar o peito
e olhos dóceis a pedir guarida
mandou-o entrar
partilhou a ceia em silêncio
oferecendo-lhe o lugar
que de direito pertencia à falecida
pouco falaram
há anos que a sua curiosidade
se começara a extinguir
e o desconhecido
também não era homem de muitas falas
estranhamente um cálido perfume
invadiu o aposento e surgiu uma terna presença
abençoada e penetrante
como o clarão do relâmpago no cimo do monte
ou na imensidão do oceano ondulante
o homem parecia nada possuir
nem coisas nem ideias
conforme chegou assim partiu
malgrado a insistência
para que se não fizesse ao caminho
de imediato algo de sagrado inundou a casa e o vale
cobriu a encosta e estendeu-se para além da serrania
era o centro da criação
que imperecível
transcendia o tempo-espaço
passou a noite sem dormir
com o pensamento parado
tão presente quanto distante
de manhã raiou a aurora no céu sem nuvens
e era vago o contorno das montanhas cobertas de neve
havia em si um sentimento de vastidão absoluta
de imensa beleza e amor
de total plenitude
a sua mente
no auge da paixão e da sensibilidade
experimentava a essência das coisas
sem que o pensamento interferisse
numa verdadeira oração de silêncio
havia uma infinita solidão que não era inerte
mas viva
preenchendo a imensidão do cosmos
nela estava o principio e o fim de tudo
e a sua visão era infindável
ultrapassando rios e montanhas
a terra e qualquer horizonte imaginável
luz pura em inefável êxtase
o viajante era afinal o deus-menino
o deus que existe em todos os homens
e que transfigurou o seu coração
que pôde então adormecer na paz e na esperança
que só os justos e os pobres em espírito conhecem
***
2011
***
MANIFESTO
já pensei tudo
o que há para pensar
parece-me
apesar do que parece
nem sempre
ser o que parece
poderei ou não estar errado
como tudo
numa vida inconsistente
na impermanência dos dias consumidos
como quem sorve sem saborear um cigarro
de fumo invisível
ou mareia no mar encapelado
e apenas espreita a estrada suja de asfalto
afinal o pensamento não é ilimitado
e a imaginação é o erro do desesperado
que o mergulha na mais triste ilusão
pensei o já pensado
em caminho poento
por muitos trilhado
rasto de sangue vivo
o pensamento é dor acutilante e opressiva
é a enxovia torturante da falsa inocência
da candidez e da castidade mental
pensei o que muitos outros pensaram
mas poucos são os que o sabem
por terem guardado esses pensamentos
numa gaveta suja e sem fundo
na torre subterrânea dos desejos inconscientes
nas masmorras abissais das entranhas sórdidas
no espaço insignificante de seus bolsos rotos
pensei e penso
que não vale a pena escrever
que não me irão ler
que não irão ter paciência
livros há-os em demasia
editoras em insolvência
como riqueza e pobreza
editados dia-a-dia
neste mundo
tudo é demais
por excesso ou insuficiência
no entanto
a questão de deus
o deus verdadeiro que não o dos homens
continua a ser pendência fulcral
quando eu
eu mesmo
deveria ser o objecto
selecto de minhas inquietações
quem sou
donde venho
para onde vou
se sou ou não
se vim ou não vim
se vou ou não vou
se ele é
se eu sou ele
ou ele eu
se existimos
ou não existimos
pela ilusão
ludibriados sermos
se tudo é delusão
o sonho realidade
a realidade sonho e
no desvario do engano
se embromado estou
porque padeço atroz
e porque algo permanece
em vez do nada
desse vazio pacificador
e se nada existisse que voz se levantaria
a questionar que corpo ou mente sentiria dor
também a questão da alma
merece especulação
e se quem conhece a alma
conhece deus
fico-me com um único mistério
o da alma-deus ou o do deus-alma
tanto faz
se o que penso só serve
para alimentar a confusão
e o que escrevo
não passa de incoerência
ou de pura ilusão
de quem pensa ser e não é
melhor seria
exterminar o desassossego
melhor seria não pensar
para quê manifestar o que ninguém quer ver manifestado
um manifesto para a humanidade
um manifesto para a eternidade
num manifesto escreve-se
escreve-se para que poucos leiam e
poucos sintam enquanto
nenhuns praticam
redige-se nas areias
límpidas da beira-mar
em tempo de marés vivas
nem na gandaia um sem-abrigo olhará as suas letras a formar palavras indecifráveis
nem um letrado filósofo da orla marítima se dignará prestar-lhe atenção
nem os cães que passeiam seus donos junto à rebentação das magníficas ondas irão sentir seu odor ilusório
um manifesto escritura-se
de preferência num papel velho
digno
com cheiro a velas de catedral
e fisionomia de monumento nacional
protegido ou censurado por leis obsoletas
anacrónico anárquico e dissonante
um manifesto é sempre extemporâneo
como navio calafetado no fundo dos mares
ou vela acesa num qualquer meio-dia de primavera
tem-se esperança num manifesto
como mãe que aguarda o nascimento de um filho
ou a sua chegada da guerra
um manifesto é um nado-morto
um estropiado em combate
um corpo num ataúde
numa urna de chumbo
carregado além-mar
crivado de fragmentos
e marcas de dor oculta
sangrada por estilhaços
de vida sem sentido
apenas três palavras
podem mudar o mundo
três palavras cheias e não ocas
porque as ocas são apenas palavras
e as palavras não são as coisas
nem sentimentos nem emoções
as ocas são o reflexo da humanidade
no espelho poeirento sujo e deformado
do cérebro do tempo
apenas conheço três palavras
capazes de abranger o universo
amor liberdade beleza
palavras deturpadas pelo pensamento
esventradas por acções oportunistas
dos que interpretam a realidade em
conformidade com seus deformados umbigos
se algum dia as atingir em sua verdadeira essência já não mais serei eu
serei um-com-deus
e quando for um-com-deus não irei perder tempo a escrever
nem a pensar
deus não sabe ler
e a alma
não especula
***
PSICOGRAFIA
aqui cheguei sem saber donde
daqui parti em travessia
cujo destino desconhecia
do nada para o nada
que tudo é e será
verdade vedada
pela ilusão da matéria
pela ilusão da própria ilusão
que a si mesma se lamenta
guarda as lágrimas
para os males do mundo
se te amas não te lastimes
se te amas não te deplores
se me amas não me chores
comigo nada transportei
nem a sombra dos bens que acumulei
não vejo realidade
no que realidade não tem
estou liberto da ilusão
aliviado das trevas de maya
da injúria e do louvor
não voltarei a conhecer a dualidade
tudo é um
suprema beatitude a da unidade
na mansão eterna do amor gratuito
ceifei com o gume
da espada dos justos
as amarras da dor
e vogo agora
num mar de êxtase
eu que sou
o sal que se dissolve
no oceano da vida
o sol que brilha no todo
o tudo que no tudo se decompõe
o que na pura alegria
da beleza e do amor sem fim
se refugia e
enquanto a noite escura vos ilude
trespasso o universo
a infinitude de formas mortais
sequiosas de divino afecto
meu corpo ardeu e fez-se brasas
as brasas fizeram-se cinzas
as cinzas vaso de recordação
enquanto em morada eterna vivo
num horizonte de ternura infinito
o pote de argila desfez-se
em cinzas no fogo ardente
as cinzas subiram nos céus
depositando-se em partículas no solo violado
o meu coração incandescente já não existe
cinzas são apenas cinzas
derramadas noutras cinzas mortas
que não sujam nem são sujadas
não ofendem nem são ofendidas
não humilham nem são humilhadas
destruído o vaso de argila
desagregaram-se para todo o sempre
os sentimentos negativos
mesmo os mais profundos e obscuros
os desejos e as paixões
o eu mortal inconstante e impermanente
animal ferido na floresta minada de perigos
que se agita inquieto e angustiado
extinto o desejo
aniquiladas as paixões
com a mente apaziguada
na tranquilidade do vazio
penetrei a alma
onde ele reside
não há orgulho que consuma o que está consumido
atingi a minha morada
o mundo deixou de me seduzir
não me choro nem vos choro
não me peças perdão
perdoa-te
na terra das searas do pão eterno
não há nada a perdoar
tal como não havendo ferida
não há enfermidade para curar
a minha morte tem um gosto amargo
para os que em vida não souberam morrer
sou um pastor com o rebanho tresmalhado
nas pastagens para sempre verdes
do vale doirado da reunião
confundido pelo medo agonizante
do dia da vossa perda
amo e sou amado
para além de qualquer
condição ou contradição
cuidarei de vós de mãos dadas
com quem de mim agora cuida
que em vós não haja mais orgulho
ganância ou ambição
que nada vos afecte
nem calúnia
louvor
ou insulto
não recebais
tais presentes envenenados –
devolvei-os aos seus doadores
peço-vos paciência
peço-vos esperança
peço-vos caridade
sigam o amor
sem ódio rancor ou raiva
que os rios caudalosos vos não atormentem
que as montanhas em queda vos não apoquentem
que cada passamento seja uma lição
vençam a morte em vida
façam florir o lótus em qualquer estação
aguardo por vós na luz
na terra da alegria infindável
chamada reino
podes ter tudo o que quiseres
somar matéria à matéria
acumular bens
ostentar riqueza e poder
mas não terás descanso
enquanto não cremares o desejo
não destruíres o apego
o falso ser e o ter
dedica as tuas acções
àquele de que me alimento
e fica onde estás
ou parte sem partires
todo o lugar é templo de adoração
e o maior de todos a tua alma
quem o conhece
conhece a alma do mundo
fica onde estás
não o procures de igreja em igreja
de peregrinação em peregrinação
ele está no mais profundo de teu coração
fica onde estás
mesmo ausente
alivia o jugo da tua mente
morto o desejo
vive para a eternidade
o caminho é estreito e pedregoso e a porta inabalável
clamai por ele para que o trinco de seus portais se abra
sejam felizes em vida e na morte
não me chorem
não se chorem
festejemos este dia
na paz dos tempos
na terra chamada reino
só é feliz
quem o bem
tem dentro de si
faz o bem
essa é a tua única missão
todo o resto ilusão
guarda as lágrimas
para os males do mundo
se te amas não te lastimes
se te amas não te deplores
se me amas não me chores
faz o bem
***
02/11/2010
***
UMA COLÓNIA BRASILEIRA
o dia está acinzentado
sem estar abafado
no quiosque junto ao meu prédio
uma velha entediada queixa-se do verão
terei de passar as férias nesta solidão
respondo sem pensar
isso não é verão
e sigo o meu caminho na direcção
de uma bola de berlim e de um café curto
noto que os seus olhos me seguem
sem saber porquê seguem os meus passos e sua sombra
julgo que pensa
boa vida tão novo e sem nada para fazer
ou lê ou finge ler com o livro debaixo do braço
quem lhe dera a ela uma melhor reforma
para passar os dias a fazer ponto de cruz
e arraiolos exercitando a prática da morte
na esplanada há uma espécie de tristeza amargurada
uma morte viva melancólica estúpida fastidiosa e triste
a tristeza do tédio opaco de vagos pensamentos sem rumo ou destino
de pequeno veleiro engolfado nas águas letais da barra
penso e pergunto-me porque existo
reparando como quem não repara
na existência de duas lésbicas na mesa ao lado
e de um homem sem cabeça com um jornal desportivo
a servir de pára-sol na mais afastada
há sempre alguém com um jornal desportivo a servir de cabeça
há sempre alguém que discute a asinina política desportiva
há sempre alguém que vive como bola de borracha
pontapeada por mancos acanhados
o homem levanta-se e eu sinto-me serenar
como quem está para urinar há horas e não encontra lugar
sinto-me aliviado
tenho espaço
preciso de espaço para me questionar se o meu verão
não será um quiosque com horas certas de abertura
e encerramento fumado por um marlboro
ou um jardim em que as rosas florescem no inverno
e a geada queima os crisântemos no estio ardente
uma das lésbicas assoa-se limpando-se do passado
passa lentamente com os dedos pelas narinas
removendo pequenos filamentos
de incompreensíveis sentimentos de culpa
a outra está imóvel
sorvendo o fumo de longo e fino cigarro
olhos postos nos automóveis de luxo que passam na praça
parece procurar presa
é o macho penso
como quem está ausente da razão
mas que tenho eu de julgar
apenas factos
quedemo-nos pelos factos
os seus olhos penetram fixamente
os mesmos objectos em que os meus se demoram
mulheres
mulheres belas e elegantes
somos ambos predadores
indiferentes um ao outro
apesar de ambos sermos lésbicas
jovens-mulheres desfilam seminuas mirando-se nos vidros das lojas que servem de espelho
a maioria brasileiras
compenetradas no seu encanto
algumas andam dançando e pelo canto do olho
admiram o seu jeito peculiar de andar
o seu modo especial provocante bamboleio
em pernas altas baixas médias magras gordas redondas
pernas para todos os sabores
pernas para todos os odores
eu olho-as a lésbica também
o verão seria diferente se me apaixonasse
as lésbicas casar-se-iam
eu igualmente
sem boda odeio banquetes festanças
as lésbicas levantam-se ainda não almoçaram
levanto-me e mudo de mesa
volto a sentar-me
lá dentro uma jovem almoça
com roupa de ginásio
e com o saco de desporto caído ao lado
pequena
magra
graciosa
de olhos penetrantes
distantes
não demonstra interesse em nada que a rodeia
pede o serviço à atenciosa empregada brasileira
sem se dignar olhá-la
- todas as empregadas são brasileiras -
olho-a mansamente entre o espaço de duas colunas irregulares de fumo
lembra-me uma namorada antiga na sua frágil beleza
a mesma de uma flor exposta ao rigor do tempo
ou de uma erva da calçada com displicência acalcanhada
sentam-se duas brasileiras
uma talvez não seja
quase a não ouço falar
a outra fala sem cessar
menopausa precoce
afrontamentos e verborreia
mesmo querendo não a ouvir
sou cativo da voz
penetrante
irritante
as brasileiras invadiram-nos estão em todo o lado
portugal
é uma colónia brasileira
para gosto de uns e desgosto doutras
por mim por vezes projecto viver no brasil
partir para itacaré ou uma praia deserta no norte
onde possa erguer velas ao vento e bolinar largo
junto à costa de sereias intocadas de ventres cor de bronze
e seios hirtos apontando o horizonte
navegar no amazonas
sorver o odor da selva
escutar o louco canto das aves brilhantes
com uma amada a bordo estirada nua no convés
a meio-navio envolta no cordame de seda
uma nativa escura e bela que ame por amar
inebriada ao sol e afagos
a quem possa agasalhar no meu peito
nas noites húmidas e fartas de estrelas cadentes
enquanto o leme solitário manobra em faina segura
levando-nos de mansinho com a proa a cortar águas
para terra-de-ninguém
sonho mas que mal faz sonhar
senão o mal do próprio sonho
quando não há terra-mãe
uma mãe entra com a filha ao colo
qual delas a mais bela
aprecio-a sem a desejar
é de uma beleza intocável
pura
maternal
deixai-a estar enlevada
deixai-a repousar nas carícias embevecidas
que com o olhar dispensa à criança
é mãe o que lhe basta
a brasileira papagueia
enquanto a amiga de óculos escuros
para não ouvir simula que presta atenção
gesticula ri alto meneia-se
faz reiki pratica yoga
assevera que encontrou a paz
tem sensações no corpo
nalguns órgãos como se estivessem a ser
miraculosamente limpos durante as sessões
agora tem as energias equilibradas
e os bolsos mais vazios e mais asseados
mas age como quem em emboscada fatal
de guerrilha está debaixo de fogo cerrado
as mãos tremem-lhe e há um ou dois
pequenos tiques evidentes que a traem
temos de viver o dia-a-dia
amar a vida os outros e ter forças
diz
e ter energia a que vem de nós das nossas acções e a que nos canalizam
deve estar a referir-se ao terapeuta-canalizador penso
ela que eléctrica e vertiginosa tem uma tomada mal ligada à terra
e um fusível inoperante ao excesso de tensões
e julga ser um braço-de-deus
- deus deve ser uma centopeia penso e sorrio
disfarçando o sorriso na página do livro aberto -
alguém uma amiga da baía
deitou-lhe as cartas
encheu-a de búzios
apenas certezas
no passado não errou
no presente acertou
no futuro vaticinado abstractamente
tudo cursará o melhor leito
será rica feliz amada e finar-se-á bem tarde
a boba encartada
convida a amiga para jogar golfe
com a equipagem do falecido
será viúva divorciada ou mal-amada
instiga-a a aprender
o problema diz está nos tacos as bolas são todas iguais
o mais importante do equipamento são os sapatos
preciso de descansar os ouvidos
volto para casa
e no silêncio da solidão não penso nada
***
MAL-AVENTURANÇAS
mal-aventurados os pobres de espírito
porque serão embromados
e pasto de burlões e vigaristas
mal-aventurados os mansos
porque serão objecto de injúrias
e das mais terríveis calúnias
mal-aventurados os que choram
porque serão destruídos pela melancolia
e por este mundo canibal devorados
mal-aventurados os que têm fome
e sede de justiça
porque serão injustiçados
em tribunais para ricos criados
mal-aventurados os misericordiosos
porque todos deles se aproveitarão
simulando ser pobres e necessitados
mal-aventurados os limpos de coração
porque serão vilipendiados
e na sua honra açoitados e sangrados
mal-aventurados os pacíficos
porque serão sempre agredidos
e não responderão à agressão
mal-aventurados os que padecem
perseguição por causa da justiça
porque nunca serão recompensados
bem-aventurados
os que tiverem coração de pomba
e espírito de serpente
neste mundo doente
e do céu ausente
***
2015
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