***
O CAMINHO
sigo o meu caminho
atropelam-me
vossos braços
pensamentos
fantasias e invenções
vossas crenças e hábitos
abraços e mãos
memórias e ilusões
trapaças e traições
querem que beba de vosso vinho
que caia nos vossos braços e me
emporcalhe em vossa falsa verdade
que me prenda aos vossas grilhões
que convosco construa uma história
de horrores maldições e crueldade
a vida para vós
é um castelo de cartas
soprado pelos ventos
uma colossal delusão
besta sem compaixão
um palco de terrores
onde os fortes vivem
e os fracos falecem
vida de bens materiais
aos pobres roubados
projectos mesquinhos
ambições e tabernáculos
desejos insalubres
doentios e amarelentos
infinitos e orbiculares
tudo se transforma num elo
em frágil vontade do momento
império que vedes e não vejo
vã esperança de tempo ido
preso às mais vis grilhetas
imbecis e resignados
burros de carga
corruptos sem palavra
pantomineiros
invejosos
compadres do oiro
comadres do dinheiro
ladrões e tratantes
parceiros de canalhas
abúlicos
sevandijas
mentirosos
sendeiros
sois tristes bestas de nora
companheiros de criminosos
matilha de escandalosos
ratoneiros
miserável gentalha
sois vós sem vereda
sem vergonha
sem honra
e sem piedade
vermes da peçonha
e da iniquidade
que vos quereis
ídolos da humanidade
com três deuses que detesto
oiro sexo e poder
que execro não por si
mas por serem de vossa vida
os únicos valores válidos
reflexo pérfido e danoso
de um mundo asqueroso
vicioso e desalmado
por vós criado
não não é esse o meu caminho
não não bebo do vosso vinho
não não sigo no vosso rebanho
não respondo a perguntas
não me justifico
não presto contas a alguém
não confesso minhas faltas
vou e volto
parto e fico
comigo não vai
nem fica ninguém
não sou de parte alguma
sou daqui e de todo o lado
não tenho nacionalidade nenhuma
sou cidadão do mundo
que percorro andando
sem qualquer lamento
o meu caminho é meu
eu sou o meu trilho
nasci para morrer caminhando
na terra e no firmamento
peregrino na terra
mendigo dos céus
as horas passam
eu envelheço
os meus cabelos são brancos
se fui jovem e forte
hoje já avisto o senhor da morte
os tempos felizes da infância
não voltam
da adolescência amores e paixões
são estranhas lembranças
ora me levanto
ora desfaleço
tenho sangue e lágrimas
no peito e nos flancos
não me acredito
no vosso deus
nem nos anjos
nem no demo
amarrações e feitiços
bruxedos e maldições
promessas e orações
passo a passo desbravo
cardos e silvados
palavras gestos e actos
durmo num catre só meu
a nada nem ninguém temo
meu coração a espinhos lavro
recolho no meu ventre
desvalidos e violentados
afogo na barra
bandidos e beatos
políticos e magistrados
polícias e catedráticos
e outros embriagados
da riqueza apaixonados
sigo meu caminho
mar dentro
navego
altivo e sozinho
serei sempre patrão do alto
na vida e na morte
será essa a minha sorte
tendes o vosso caminho
florido por perfídias
vós os quarenta ladrões
que vez à vez
ides à missa
tendes ilusões
rezais o terço
ides às procissões
viveis das vestimentas
das aparências
da toleima e da burrice
da hipocrisia
da impostura
do cinismo e avidez
das mentiras e vigarice
tendes partidos
clubes
gurus
televisões
canastrões por ídolos
telenovelas
concursos e discursos
políticos ladrões
advogados manhosos
médicos rançosos
cães raivosos
e uma bandeira
suja de sangue
dos famintos
e dos inocentes
sois covardes
sonâmbulos e astutos
viperinos sabujos
vermes do poente
tendes filhos
fraca semente
futuro negro
que a si próprio
se desmente
sigam-no vocês nessa planície
onde o traçaram na imundície
sigam-no vós gente demente
eu sou apenas eu
não vos pertenço
não comungo do vosso pão
não vivo da vossa vida
tudo o que vos pertence
me aborrece
de vós não quero nada
que me estorve a passada
sigo o meu caminho
de mão dada comigo
sofrido e sozinho
o meu caminho é meu
o meu caminho sou eu
não me estorvem
não me digam nada
deixem-me passar
que nesta estrada
vossos passos não cabem
e nela é o meu lugar
não quero o vosso caminho
não bebo do vosso vinho
vou e volto
parto e fico
comigo não vai
nem fica ninguém
***
10/2014
***
MIRITO O MEU AMIGO LOUCO
Bronzino
mirito nasceu
nasceu num palheiro
como jesus
paredes de pedra rude
à mão amontoada
pedra não aparelhada
telhado de colmo
donde se espreitavam as estrelas
e sentia a chuva fria
entrada em dia de borrasca
na torre da igreja o sino tocava
e voltava a tocar
na dança do ar perfumado pela geada
que começava a cair no vale
mirito nasceu de rosto belo e já trigueiro
ao som da ave-maria tocada noite e dia
no campanário da pequena aldeia
que deus o abençoe disse a mãe
que a senhora da fátima
seja sua madrinha
e lhe faça a cruz na testa
para afastar demónios e tentações
disse a parteira da aldeia
tia zefa do moinho
a zefa da anunciação
a vizinha madalena
rezou um padre-nosso
e uma oração calada
para ninguém ouvir
a não ser nosso senhor
não te esqueças mulher
de acender uma vela
na santa eufémia
uma vela do tamanho do rapaz
tanto faz
respondeu a parturiente
a vela terá o porte da minha bolsa
o que vale é a intenção
e olha que a tua oração
não irá cair em cesto roto
mirito nasceu
mirito cresceu
nasceu em noite de luar
de sombras a afagar a pobreza
e com o sino a tocar a tocar
prenúncio de tristeza
anúncio de morte a bailar
na escuridão a luz
no altar a cruz
que mirito haveria de carregar
correia a enlaçar
de aldeia em aldeia
cantando e dançando
melodias desconhecidas
até que um qualquer arimateia
o levasse a sepultar
em cova funda e anónima
depois de o encontrar caído
na curva da estrada
poeirenta e resplandecente de luar
encontrá-lo-ia
agonizante sem remédio nem cura
sem glória
com a senhora da morte ao lado
diria se pudesse
estou certo que miro diria
se o soubesse exprimir
leva-me para o norte
que calor não suporto
leva-me para o norte onde é doce a morte
doce e alva de neve pura
onde perco a memória
de vida mal-afortunada
eu sou o mirito doce e suave
gentil louco e sem dono
a vida que em vós não existe
sou o próprio norte
a liberdade
a tristeza
e a força da natureza
eu sou tudo o que
o homem não é e despreza
não sou como os demais
sou miro
servo e dono
da terra
dos céus
das estrelas
de bonanças e temporais
e quero ser sepultado em cova funda
onde animais e homens não possam
nem encontrar
nem importunar
que ressuscitar não quero
quero conforto
quero a paz
que a embriagado
louco e morto
ninguém deve furtar
que assim seja
tenham dó de mim
mirito cresceu descalço
roto
esfarrapado
com sobretudo
de alto a baixo rasgado
sobretudo do inverno
sobretudo do verão
sobretudo da chacota
da garotada da freguesia
crueldade de rapaziada
para com o pobre desgraçado
que andava caminhava e se sóbrio
se escondia em qualquer pinheiral
ou no mato de olival por tratar
mirito não foi à escola
não aprendeu a ler
a somar
nem seu nome aprendeu a escrever
mirito não aprendeu a brincar
não foi à escola e de nada lhe serviria
contava até dois e depois
qualquer número servia
oito cinco dez quatro
raramente mencionava o três
letras não as conhecia
nem o a e i o u
falava entaramelado
mas asneiras dizia
escorreito quando o arremedavam
essas eram poucos
os que as não entendiam
mas na escola não se ensinavam
apenas se aprendiam
e quem as já conhecia
afinal que proveito tirava de horas mortas
a inquietar outros garotos
nunca aprenderia a ler
a contar
ou escrever
e mesmo que algo aprendesse
seria necessário querer
por injustiça assim nasceu
vagueando ora soturno
ora alegre feito bobo
percorrendo
aldeias
povos
quintas
sendo escorraço de quintaneiros
pouco falando
por não querer
ou não saber que dizer
mirito cresceu com o vinho
e com aquela cabeça tonta
que desagrada aos homens
e agrada a deus
um copo aqui outro além
por alma de quem lá tem
vá lá um copo não faz mal
é mirito quem diz
vá lá por um momento
faz mirito feliz
vai-te embora rapaz
o vinho ataca-te a moleirinha
ficas mais estouvado do que és
bebe sumo
um pirolito
uma gasosa e
dou-te um quarto de trigo
com manteiga da arca
daí o enganava o taberneiro intentando besuntar o pão com margarina da lata suja ou com molho velho das iscas a saber a ranço
quero vinho o resto come-o tu replicava miro
e o pobre mirito crescia enquanto o sobretudo encolhia
os rapazes vinham dos campos
alguns tocados à paulada
da lavra por acabar
jogavam à bola no terreiro
mirito passava e seguia
sem saber para onde
olhando saudosamente para trás
saudades sem saber de quê
saudades porquê
os rapazes brincavam com as raparigas
dizendo-lhe coisas de que todos se riam
mirito sorria por ver rir mas não entendia
diziam-lhe
cresce tonto
depois se verá
alguns namoravam um beijo às escondidas
mirito sentia e sem saber como se fazia
ficava triste
uma melancolia natural acompanhada
pela ligeira brisa do pinhal
ao lado do cemitério
onde ensaiava com trejeitos
os beijos da moçada
imaginava uma bela moça
como vira num jornal da venda
e que lhe valera um pontapé no traseiro
por olhar coisas de gente normal
até a formiga-tonta
já tem catarro
disseram os homens
que jogavam ao chincalhão
mas a bela loira de cabelos longos
não lhe saía do toutiço
afinal só olhara para uma fotografia
suja de vinho e amarrotada de um jornal
que parecia tão antigo como ele
ele que tudo daria
para ter aquela fotografia
como seria feliz
namorando-a com os olhos
todas a noites no seu leito de palha
seria abençoado se a pudesse beijar
ainda que manchada e feita de papel
essa loira cor de mel
de quem se via um pedacinho dos seios
estava-lhe na memória
enchia-lhe a mente inocente
não saberia o que fazer
talvez mexer de mansinho na carne luzidia
talvez um beijo na face rosada
ou na boca de dentes brancos
o restante desconhecia
apenas sabia
o que nas partes baixas sentia
e por instinto tão bem lhe sabia
melhor lhe agradaria de outra maneira
dizia-se em segredo na venda ao domingo
que por ter bom ouvido ouvia
e ninguém lhe dizia
ela havia de o ensinar
quem sabe se hoje à noitinha
e por acaso
aparecesse na curva deserta da estrada
que vai do sobral à mata
e sonhava
sonhava o pobre louco
que nem à escola fora
a bola jogara
na ribeira pescara
e nunca amara
e mirito crescia
enquanto o sobretudo encolhia
pobre miro
pobre louco
coitadito
a sua cabeça rodopiava como carrossel
da feira de são bartolomeu em trancoso
e via
via coisas estranhas
que o assustavam por momentos
que rapidamente esquecia
e que de súbito lembrava
coisas do diabo
coisas assanhadas
arrepiadas
que o possuíam e arrastavam
pelos caminhos tortuosos
na direcção de uma malga
cheia de vinho avinagrado
ó meu mirito
sofres tu
e sofro eu
à noite
no palheiro
via demónios
uns sentados
outros dependurados nas vigas
de madeira velha e empenada
das frechas do granito amontoado
soltavam-se espectros luminosos
em riso rugido
demónios
diabos
fantasmas
aparições
espectros
diziam em voz rouca
em gemido tremelicante
miro tu és doido varrido
bêbado
vai-te vai-te
vai-te não durmas
não te deixaremos dormir
vê vês
vê a mulher loira
de longos cabelos entrançados
é feiticeira
de todas a mais bela
de todas as aldeias que conheces
vai-te enfeitiçar
vai-te encantar
serás um sapo
e os rapazes irão pôr-te a fumar
até rebentar
foge miro
foge
pobre diabo
foge para as sombras da noite
deixa-os na tua corte
que fiquem com o curral
que nem teu é
que durmam na tua palha
nos panos velhos cor de carreiro poeirento
carago filhos de uma grande cabra
que me não largam
raios os partissem
almas de trinta diabos
tanto bento
tanta bruxa
tanto filho do demo
e da puta
tudo para me causar tormento
e mirito noite dentro
quilómetro a quilómetro
ia da mata ao sobral
do sobral ao ribeiro
do ribeiro à aldeia-nova
sem demora e tento
até fulgir o primeiro raio de sol
até ao sol nascente
quando o sol nascia
o canto dos pássaros
abafava a vozearia dos diabretes
com figura de gente
catano
ora o caralho destas almas penadas
uma coisa assim
santo deus ó jesus
que porra
ainda lhes dou com o cabo do sacho
calai-vos que queres tu de mim
deixai-me vós também
não vos quero ouvir almas do demónio
vá de retro satanás
vai de retro belzebu
miro desesperava
miro gritava
carago inde-vos
a venda abria e miro à porta da taverna
olhava mudo o taberneiro estremunhado
que já sabia ao que vinha
que já lhe conhecia o vício
um copo por deus
para matar o chavelhudo
um copo por nossa-senhora
um copo para suster a agitação
cinco tostões para matar a sede
tostão a tostão para matar o demo
pelas alminhas que com jesus lá tem
pelas que no velório
aguardam o purgatório
com barrabás e o outro ladrão
vai-te daqui agoirento
que a satanás encarniçado
nem vinho nem pão
pede-o a judas que é teu irmão
um copo pelo seu descanso
por alminha de sua mãe
e de seu pai também
pela mãe pelo pai há pouco falecido
agora sim tocara-lhe no coração
por agoiro ou compaixão
toma alma-do-diabo
bebe
mirito bebia um dois ou três e ia
sem direcção sem destino sem querer
pobre casmiro pobre louco sem-tostão
miro pobre-louco a quem as bruxas
não deixavam sequer adormecer
em pequeno passava à minha porta
ele já homem
eu rapazito
tomava da gaveta alguns tostões
tia cândida via e fingia não ver o que via
fazia a vontade ao filho-sobrinho
que queria ser padre
e tanto amava
pobres
loucos
velhos
doentes
fracos
e animais
zéia que vais fazer perguntava
nada de mais
vou ver o mirito
que me chama do caminho
e logo interrompia as orações
ou fechava o livro de horas
dois ou três copos de vinho
com cuidado escondidos
mirito cantava agradecido sabendo
que aquela porta
lhe estava sempre aberta
enquanto eu ingénuo
o olhava embasbacado
na sua dança estrada fora
braços abertos a rodopiar
voz rouca a soletrar língua
que parecia ser estrangeira
adeus mirito
amanhã passa por aí
eu peço à tia
e mirito sorria
e eu não sabia que sua alegria
e minha felicidade
de nada valia ao agravar
a doença de que padecia
adeus mirito
pobre louco
até amanhã
até outro dia
à falta de capão
cebola e pão
à falta de um tostão
volta que te darei
do vinho da tia
palavra
tiro-o da adega
às escondidas
ninguém vai ver
ninguém vai saber
o sino toca para a missa
ou é para o terço
não estou certo
eu cresço
mirito mais velho
o sino tange uma morte
eu estou no sul
mirito no norte
o sino toca a rebate
arde a encosta poente do vale
o incêndio belo ameaçador
já lavra no monte
eu estudo para doutor
mirito cada vez mais doente
o sino toca aves-marias
eu já não rezo
mirito o tonto não dança
eu já não vou à igreja
mirito com muita dificuldade caminha
o sino toca toca sem cessar
e aquele pobre diabo está-me na alma
na saudade que o vento frio da serra traz
para as paredes negras da cidade
saudade que rói e dói
mirito pobre louco
eu também sofro
noite de inverno
temporal
miro já não tem as mesmas forças
nessa altura eu vivia num jardim de betão
com uma nesga de céu
acorrentado à liberdade
miro está cansado
eu tenho depressão
o sobretudo cada vez mais rasgado
deixa passar o frio a chuva a neve
para a roupa interior do esfarrapado
o vento bramia
vergava ramos de velhas árvores
retorcia as novas há pouco plantadas
o vento gemia
nas sombras dos olivais
nos espectros das nuvens baixas
fazendo rodopiar as folhas caídas
uma chuva fina e fria
que se entranhava na miséria
molhava-lhe a alma
miro continuava
miro caminhava
tinham-lhe dito
não te metas ao caminho
mirito não os ouvia
vou para a mata
vou dormir
caminhava contra o vento
que rodopiava e rugia
começou a nevar
já não havia espíritos imundos
legiões de almas do outro mundo
surgiram anjos alvos
a bailar ao som do vento
sinos a tocar aves-marias
arcanjos que sorriam e o afagavam
num leve arremesso
a neve caía em desconhecida melodia
melodia que nenhum bach comporia
e vestia-o de branco puro
miro parecia uma pomba no escuro
um dominicano em êxtase de alegria
mirito pobre louco sorria e ria
dançando ao vento e à neve
com anjos e querubins de verdade
e jesus menino
que assistia enternecido a ver
tanto amor e liberdade
chegado à curva dos sonhos
da loira encantada
miro cansado
deixa-se tombar no valado
exausto a dormir
a sonhar com o amor
que sempre lhe fora negado
morrendo sem saber e sofrer
na neve enregelado
os anjos entenderam
jesus concordou
maria sorriu
melhor seria fazê-lo ascender
mirito faria o céu feliz
haveria festa e alegria
uma felicidade imensa
bondade e inocência
do homem que sempre fora petiz
ave-maria
ave-maria
miro pobre louco
meu bom amigo
casmirito morreu no inverno
mirito subiu ao céu entre anjos e arcanjos
miro abandonou o inferno
***
CANSADO DE TANTA MORTE
a curva da estrada
apesar do quebranto
algo me impele a estancar
há sombras vivas
que repousam no asfalto
árvores retorcidas
que já deram o seu fruto
vinhedos esquecidos
o sol brilha
através dos ramos dos pinheiros bravos
um lavrador come a merenda
à sombra de uma fraga
a mulher prepara estacas
o semeador descansa e bebe
o vinho com a frescura da água da mina
ao seu lado
pão de centeio
queijo da serra
um naco de presunto
sorri
o seu sorriso arrasta-me
pela memória dos tempos
o seu sorriso é rosa-do-mundo
vejo-me nos calções azuis cor de céu
e na alva branca na missa de domingo
há missa
os sinos tocam
casimiro casmiro casmirito mirito miro
o meu amigo-louco
da infância perdida
miro
o louco
de sorriso infinito
aberto
livre
ingénuo
contagiante
que ia à igreja
só para me ouvir
e ver ler
sinto saudades
não sei se da vida
se da morte
se do mal
se do bem
sinto saudades
e sentir saudades
é ter feridas
sangrantes
mas sempre é melhor
ter saudades
que não ter nada
sento-me no muro em pedra circular
vejo um vulto no chão
- eu que desde criança vejo coisas
coisas que não devia ver -
foi aqui que miro veio morrer
estou cansado de tanta morte
***
6/2010
***
CAIS DO SODRÉ
tarde fria de inverno
ramon termina o trabalho
na garagem conde barão
como há algum tempo
encontramo-nos vestidos a rigor
a norton 500
uma preciosidade
não permite desalinho
nem desdém
julgo que por essa altura
teria dezassete anos
com mestres de envergadura
cais do sodré
filadélfia e texas
copenhaga e jamaica
mais tarde o atlântico
famigerados bares
não havia marinheiro que jejuasse
não havia náufrago em terra
que após viagens de longo curso
sobre mares de prata lustrada
não tenha sonhado com noites loucas
de orgasmos suados
de sabor a sal e
com um quarto de pensão rasca
num sobe-e-desce
no corre-corre de uma nota
trocada por minutos de prazer
maiores de 21
lê-se à entrada
eu entro sempre
sou amigo de gerentes
empregados
porteiros
dos clientes
bartolini
russo e
outros de estranhos apelidos
principalmente do ramon
emblemático
com idade para ser meu pai
porte de cedro do líbano
parecença de artista de animatógrafo
dos anos sessenta
- paz à sua alma -
para as prostitutas eu era o miúdo
para os amigos e proxenetas também
os porteiros olhavam para o lado
e diziam umas vezes sorrindo
outras entediados
entra
a tua já anda por aí com um cámone
ou
tens princesa nova para cantar
chegou da província
é virgem dos ouvidos
sarcasmo duma vida em pé
a ver entrar e sair
subir e descer
corpos anónimos
porteiros tapetes-de-putas
homens sem rosto
sem história própria
por tanto viverem as dos outros
pernas habituadas ao cansaço e à dor
à chuva ao frio e ao calor
do cais do sodré
já não se partia para a índia
de caravela
construída na ribeira das naus
do cais do sodré
saíam e saem cacilheiros
para cacilhas
autocarros para toda a cidade
eléctricos amarelos
comboios para oeiras e cascais
agora até o metropolitano
que um dia vai inundar
- palavra de quem sabe -
no cais do sodré entrava-se
com uma pita
num quarto a cheirar a mofo
e saía-se mais leve
com sono e sem guita
havia gente que corria
que se atropelava
para não perder o barco
não perder o comboio
gente exausta
sem identidade
autómatos do progresso
que se empurravam
por um lugar sentado
no eléctrico
que subia a rua do alecrim
para o camões
bastava um tanso começar a correr
que tudo o seguia
rebanho de bacocos
corriam para não perder a hora
uns atrás dos outros na esteira do guia
lanterna-vermelha atrás
a manquejar o coxinho
já sem ver o condutor
mas corria saltinho atrás de pulinho
por vezes um de nós tirado à sorte
fazia o papel de batedor
para diversão do ócio
do descanso da praça
correndo sem parar para a estação
num dia fim de tarde
um pipi-de-alcântara estatelou-se
a fronha ensanguentada
rimos
enquanto se preocupava com os rasgões
das calças e dos cotovelos da jaqueta
comprada na rua da palma
ou palmada no estoril
a fronha que se quilhasse
tinha compostura
a vestidura não
na rua do arsenal
bacalhau às postas
grosso miúdo médio
inteiro
o cheiro a bacalhau seco
caras de bacalhau
cheiro forte
intenso
perfumado de séculos
vendedores de rua
varinas
homens descalços
com caixotes
às costas
vendedeiras
vendedores de bugiarias
vigaristas
um verdadeiro reboliço
para as mãos sensíveis dos carteiristas
bancas de jornais
revistas
o material de guerra escondido
proibido pelo estado novo
um jornal desportivo
de operários e estivadores
o engraxa desaparecera
começou a mostrar o dinheiro que rendeu
o assalto ao banco da avenida de roma
só engraxava quem queria
um bufo-carteirista deu à língua
o engraxa foi dentro
nunca mais o vi
irmãos de profissão
não mais confiei em ninguém
nos bares dançava-se
bebia-se cerveja
e amava-se
há séculos que marinheiros sedentos
navegantes de mares cruzados
longas viagens ao sabor do vento
vazavam os desejos
bebiam os sonhos desfeitos
havia todo o tipo de chulos
apenas uma meia-dúzia trabalhava
os outros nada faziam
tinham as chavalas a render
a partir da tarde encostavam-se
cigarro no canto da boca
às paredes do largo
ou vagueavam de bar em bar
como marinheiros
impelidos por bons ventos
no mar
espreita-me aquela a estibordo
olha alentejano a bombordo
é capital seguro prá reforma
vê-me a ana marada
o xico da mouraria levou-a ao tira-picos
está de cabeleira armada
hoje à reforço na mesada
a esganiçada vem de proa alevantada
ontem não fez nem um é pra compensar
ou faz ou o caga-milhões
cega-a de porrada
isto está mau não há bronze
o pessoal bota a nota debaixo do sapato
e toca uma gaitada
sai barato
ontem à noite houve sova de pau no texas
os fuzos com os feijões-verdes
que estão para embarcar para a guiné
esfrangalharam o negócio todo
e o bar ao homem
eu também estou a berrar
a marizé pirou-se com um olho negro
adianta-me uma vintena
descansa que é para pagar
não te vou dar nenhuma banhada
elas davam prazer aos marujos
alguns de água doce
os chulos protegiam-nas
e davam-lhes prazer
tudo tem um preço diziam
ninguém se vende
não há nada para vender
só prestação de serviços
o casamento também é um contrato
e quase nunca é a valer
prostitutas de todas as idades
vindas de toda a parte
novas velhas de meia-idade
umas limpas outras esquentadas
nada que uma injecção não curasse
prostitutas obrigadas
prostitutas necessitadas
prostitutas de verdade escondida
prostitutas cansadas
prostitutas vadias
calaceiras
solteiras viúvas e casadas
- naquele tempo não havia divorciadas -
mas confidentes da adversidade alheia
ouvintes atentas do pagador
que tantas vezes
ia apenas em busca
de um punhado de amor
ou para desafogar mágoas
de casa
do trabalho
do filho estropiado
por uma mina na picada
prostitutas
prostitutas sim
mas não mercenárias
prostitutas como já não há
cais do sodré de tantas quimeras
cais do sodré de alegrias e misérias
num dos bares
corpo novo lavado
chamavam-lhe cleópatra
alta
mais alta do que eu
tão alta como o ramon
esguia
quadris de sonho
rosto egípcio
olhos rasgados
cabelos negros
modelados em ondas
perfeitas e sensuais
roçando a cintura
e os seios estáticos
a clamar ao anseio
a perpetuar o desejo
beleza incomparável
chegara há dias
não ia assim com qualquer um
não era eleita
ela elegia
às vezes não fazia nenhum
no cais do sodré nunca tal se vira
passava distante pelas mesas
alguns clientes abordavam-na
olhava-os de baixo a alto
tirava-lhes a pinta
complexava-os
uma ou duas palavras
noutras abordagens
seguia indiferente
magnificente e desejada
na mesa cheia de cervejas
de brejeiros e madraços
nasce o desafio
miúdo
cervejas por um mês
faz-te à garina
só vale se for uma borla
riram-se
insistiram na festa
nunca cheiraste nada assim
já comeste pior e a pagar
vá
olhei em redor
mais uma cerveja
depois vou
juro
se levar uma latada
não serei o último
nem o primeiro
riram-se adivinhando festival
aguardando pela caldeirada
eu sorri tímido às cervejas
olho-a
ela ignora-me
volto a olhar
ou sim ou sopas dizem
como é ó chouriço vais ou não
é só gargalo
levanto-me
espera
deixa a narta na mesa
ó esperto
ou queres mamar à conta
dos otários
só tenho dez paus respondo
deixa-os
poiso-os contrariado na mesa
os olhos ora no chão ora na cadeira
e se me voltasse a sentar
não
ela está ao balcão
intimidatória
bela
sinto um aperto no estômago
um sobressalto de alma
um tiro de obus no coração
deve ter mais dez anos do que eu
que mulher
debruça-se na direcção do barman
por cima do balcão
a roupa cola-se ao corpo
meu deus
que formas que lastro
não conheço o chulo
ainda me dá cabo do canastro
aproximo-me
espero que saia do balcão
abordo-a a meio da sala obscurecida
enevoada pelo fumo
boa tarde digo
tarde não noite diz
isso a medo respondo
que mal fiz eu a deus penso
a suar do peito
olha-me demoradamente
como quem aprecia um objecto
baixo os olhos
vem-te sentar miúdo
respiro fundo de alívio
ela percebe
não bebemos nada
olho-a submisso
bebemos ou não
bom aqueles gajos
ficaram-me com o dinheiro
sorriu e o seu sorriso
não foi o de uma meretriz
vejo-a fazer um sinal ao jóia
o velho empregado
de imediato
duas imperiais
falamos
ouço-a e a voz é lenta e pausada
como se lesse pauta de sinfonia
dá tranquilidade e paz
ajeita o vestido tapando os joelhos
assume o diálogo
faz-me perguntas e fala dela
diz que tenho um sorriso triste
que não sei rir
lê-me a alma e entende a minha agitação
tens namorada
digo que não
riu numa gargalhada contida
não devias andar por aqui
neste antro só há vício
não vais aprender nada
estás a tempo miúdo
tens dormido com muitas
encolho os ombros com timidez
ela sorri benevolente
ouve
sabe mais de amor o homem de mulher só
que homens de muitas mulheres
ignorantes de afectos
do prazer e da paixão
ouço-a
esqueço-me dos companheiros
na mesa do fundo
só eu existo e ela
uma
talvez duas horas
passadas num ápice
pergunta-me a frio
vamos
não entendo
ou finjo não entender
repete
vamos miúdo
gaguejo
não tenho dinheiro
não me ofendas vem
não tenho chulo
não tenho ninguém
a quem prestar contas
vou
corpo direito como fuso
sem olhar os apostadores atónitos
coração a bater alvoraçado
a pensão é perto
vamos a pé
as escadas são negras e sujas
sigo-a
dá-me a mão e estremeço
vai à frente e paga o quarto adiantado
a matrona indica-nos o ninho
apontando-o com um molhe de couves
apertado na mão
estava a fazer sopa
tira-me as medidas
o quarto é velho
não parece ter sido
convenientemente limpo
há um bidé
um lavatório ao fundo da cama
duas toalhas minúsculas e gastas
a cama está coberta
por uma colcha coçada
desenhada com flores
que foram outrora púrpura e azul-violáceo
por baixo lençóis amarelados
que já devem ter sido usados
milhares de vezes
uma janela pequena dá alguma claridade
iluminando as sombras da penumbra
uma mesinha de cabeceira
um quadro da nossa senhora da conceição
na parede onde está uma mesinha
com pernas desengonçadas
o tabique tem um rombo superficial
de meio metro
o chão de madeira não está aplainado
ou então está empenado
range aos passos
tapado parcialmente por dois tapetes
que certamente passaram
pela guerra do ultramar
tal o seu estado
ouve-se um rumor no quarto ao lado
um cliente quer o terceiro prato
ela
não sei quem
grita
paga anormal
ou há papel ou não há palhaço
vai afagá-lo na tua mãe
vejo-a tirar os sapatos
descobrindo metade das pernas
arredondadas e cor de pinho-mel
sento-me na cama vestido
ela aproxima-se
envolve-me com os seus longos braços
acaricia-me a face e os cabelos
beija-me no pescoço junto ao peito
não estou à vontade
o odor libertado pelo quarto mofento
mistura-se com os nossos perfumes
sinto à flor da pele
um vento suave e doce
um calafrio como se a morte
passasse ao lado
incógnita e indiferente
vou alcançando lentamente
segurança
alguma serenidade
no amparo das suas carícias
enlaço-a e beijo-a na boca rosada
as minhas mãos percorrem com suavidade
o seu corpo escultural adivinhando
uma nudez esplêndida
nada me lembra ou faz pensar
nos dias de amor que por ela desfilaram
somos apenas nós
dois que de momento a momento
se transformam num só
as mãos já me não tremem
os dedos deslizam no veludo dócil da pele
paulatinamente
como quem embala uma criança
dispo-a descobrindo-se
um corpo alucinante
os meus lábios percorrem o seu ventre
os seios e os ombros de marfim cinzelado
as minhas mãos sobem dos joelhos
com a leveza de um movimento circular
e detêm-se na flor do seu sexo
talhado por escultor heleno
os corpos unem-se num místico amplexo
há um leve gemido
que se contorce de prazer
um grito abafado pela almofada bordada
de modo imperfeito ou grosseiro
a matrona bate à porta
avisa
vê se te despachas o tempo acabou
ela levanta-se
porta entreaberta
estende-lhe uma vintena
talvez duas ou três
diz
a noite é nossa
fecha-a definitivamente
corre para o leito
o quarto transforma-se
não tem o odor do sexo
do suor das tardes
e noites mal-amadas
é movimento
é fulgor
é êxtase
ausência de pensamento
no ar
pairam orgasmos sucessivos
que bailam ao luar da janela
há gritos
bramidos
ruídos surdos
um só corpo a amar
um só corpo a bailar
há odores a flores silvestres
margaridas
camomilas
narcisos
o quarto decorado
a rosmaninho
salva e alecrim
há arrebatamento
há o fim do pensamento
há um deus que nos incita
a amar
ao amor
há uma ânsia de continuar
de amar sem findar
há a eternidade da inocência
eternidade que não quer terminar
um amor com o vento norte a pairar
um amor forte e violento como a morte
olhamo-nos
suados de aroma celestial
mente vazia
de quem nasceu para a vida
em horas de místico prazer
despedimo-nos
uma lágrima escoa de seus olhos negros
nasceste para isto miúdo
não se aprende
não se ensina
nasce e morre
com a gente
sussurra
suave e doce
amaviosa
enquanto com os dedos
me penteia os cabelos em desalinho
miúdo
diz
hoje perdi a virgindade
sou tua
consegues perceber o que digo
respondo que sim
sustenho a respiração
em mim o coração num aperto
fecho os olhos
vendo o que não voltarei a ver
amando ainda por segundos
o que jamais voltarei a amar
quebro o silêncio a tristeza e a saudade
e sentindo no peito o dia a clarear digo
com a timidez de uma criança
hoje sei o que é amar
contigo ou sem ti
sou e serei sempre teu
nunca mais a vi
nunca quis receber o prémio da aposta
***
6/2010
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