Da história, principalmente da judaica, retiraram filósofos e teólogos, a certeza de que Deus usa o mal para daí fazer nascer o bem. Santo Agostinho pensa que Deus nada deixaria subsistir de mal na sua obra, se na sua omnipotência e bondade não tivesse a intenção de fazer derivar o bem do mal.
Como é astuto o pensamento! Que estranha forma de reconciliação entre o homem “religioso”, crente num Deus que tem em si a ideia suprema de Bem, com a inevitabilidade do mal.
O mal é tão omnipotente no mundo, quanto Deus na especulação dos metafísicos e teólogos. Como é que poderemos fundamentar tal facto? Se Deus tem em si, todo o poder – mesmo o inimaginável –, se ele é a ideia suprema de Bem – para usarmos a terminologia platónica –, como pode permitir o mal? Iremos retirar-lhe o atributo da omnipotência? Ou muito simplesmente, de forma infantil, atribuímos o mal a uma outra “divindade”, a um demónio, a Satanás? Podemos gerar a premissa, que a criação do homem – criação que só se pode compreender como acto de amor –, faz-se intrinsecamente acompanhar do seu livre arbítrio, para que o Bem ou Deus seja atingido pela maioria dos seres racionais criados. Um novo argumento, engenhoso a uma primeira aproximação. Mas, na sua omnisciência, não terá o Ser Supremo previsto que tipo de mundo viria a existir atenta a imperfeita natureza dos entes racionais que gerou? E que ascender a si, restaria destinado a um punhado de eleitos?
Não terão cabimento, nesta sede, as palavras de Epicuro? E isto apesar dos argumentos se restringirem aos efeitos da criação de um mundo onde o mal habita, sem que se considere o próprio acto da criação, já predestinada à fatal apropriação daquele:
A divindade, ou quer suprimir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode é impotente; e a divindade não o pode ser. Se pode e não quer, é invejosa, e a divindade não o pode ser. Se não quer e não pode, é invejosa e impotente, portanto não é divindade. Se quer e pode (que é a única coisa que lhe é conforme) donde vem a existência dos males e porque não os elimina?
Leibniz, criador da palavra teodiceia – que pretende demonstrar pela razão que não podemos imputar a Deus os múltiplos erros do mundo –, elaborou um conjunto de argumentos, intentando demonstrar que Deus criou o melhor dos mundos, e que na ordem é natural que exista alguma desordem, ou seja, o mal, sob pena daquela ser imperfeita – se o mundo fosse bom e só bom, seria imperfeito, já que a dissonância gera muitas vezes na composição musical, a harmonia.
Mais uma vez a argúcia falaciosa do pensamento.
Deixemos para momento posterior uma observação mais cuidada da teodiceia...
JOSÉ MARIA ALVES