Tal como já deixámos escrito no artigo referente à biografia do Santo – ver ETIQUETA no fim da página, S. JOÃO DA CRUZ – POESIA COMPLETA –, caso o leitor pretenda estudar a obra do Santo, seguindo a ordem constante das suas Obras Completas, é bem possível que se desmotive ao tomar um primeiro contacto com a Subida do Monte Carmelo.
Como ensina o Padre Gabriel de Santa Maria Madalena – Obras Completas, Edições Carmelo – devemos em primeiro lugar tomar contacto com a sua doutrina através do Cântico Espiritual, sem que seja necessário lê-lo na sua totalidade, podendo uma primeira leitura limitar-se às 12 primeiras estrofes.
Deste modo, tomámos a liberdade de adaptar e resumir as primeiras canções da dita obra, preparando a alma para a leitura da mencionada Subida.
Que tal arrojo nos seja desculpado.
CÂNTICO ESPIRITUAL
CANÇÕES ENTRE A ALMA E O ESPOSO
Esposa
1 –
Onde é que tu, Amado,
Te escondeste deixando-me em gemido?
Fugiste como o veado,
Havendo-me ferido;
Clamando eu fui por ti; tinhas partido!
2 –
Pastores que passardes
Lá por entre as malhadas ao Cabeço,
Se porventura achardes
Aquele que estremeço,
Que adoeço, lhe dizei, peno e feneço.
3 –
Buscando meus amores
Irei por esses montes e ribeiras,
Nem colherei as flores,
Nem temerei as feras
E passarei os fortes e fronteiras.
Pergunta às criaturas
4 –
Ó bosques e espessuras
Plantados pela mão do meu Amado,
Ó prado de verduras,
De flores esmaltado,
Dizei-me, se por vós terá passado?
Resposta das criaturas
5 –
Mil graças derramando
Prestes passou dos soutos pela espessura
E enquanto os ia olhando,
Só com sua figura
Vestidos os deixou de formosura.
Esposa
6 –
Ah! Quem poderá sarar-me?
Acaba de entregar-te sem rodeio;
Não queiras enviar-me
Mensageiro entremeio,
Que não sabem dizer-me o que eu anseio.
7 –
E todos quantos vagam
De Ti me vão mil graças relatando,
Mas todos mais me chagam
E mais me vai matando
Um não sei quê que ficam balbuciando.
8 –
Mas como perseveras,
Ó vida, não vivendo aonde deves,
Matando-te deveras
As setas que recebes
Daquilo que do Amado em ti concebes?
9 –
Porquê, tendo chagado
Meu pobre coração, o não saraste?
Depois de o ter roubado,
Porque assim o deixaste
E não tomas o roubo que roubaste?
10 –
Apaga-me a tristeza,
Que mais ninguém me pode aqui valer;
E veja tua beleza
Que é luz dos olhos meus
E para ela só os quero ter.
11 –
Mostra tua presença
Mate-me a tua vista e formosura;
Olha que esta doença
De amor, já não se cura,
Senão com a presença e com a figura.
12 –
Ó fonte cristalina,
Se eu, nesses teus semblantes prateados,
Visse, ó fonte divina,
Os olhos desejados
Que trago nas entranhas esboçados!...
13 –
Aparta-os, Amado,
Que o voo levanto.
Esposo
Volve já, ó pomba
Que o cervo vulnerado
Por sobre o outeiro assoma
Ao ar desse teu voo, e o fresco toma.
Esposa
14 –
Meu Amado, as montanhas,
Os vales solitários, nemorosos,
As insulas estranhas,
Os rios rumorosos
O sibilo dos ares amorosos;
15 –
A noite sossegada
Tocando já com o surgir da aurora,
A música calada,
A solidão sonora,
A ceia que recreia e enamora...
16 –
Caçai-nos as raposas,
Que a nossa vinha já se encontra em flor,
E tantas são as rosas,
Que em pinha as vamos pôr;
No cimo ninguém surja, por favor.
17 –
Detém-te bóreas morto,
Vem austro, que recordas os amores,
Aspira por meu horto,
E corram teus olores
E o Amado pascerá por entre as flores.
18 –
Ó ninfas da Judeia,
Enquanto nos rosais e dentre as flores
O âmbar nos recreia,
Morai nos arredores
Nem cheguem aos umbrais vossos rumores.
19 –
Esconde-te, meu Bem,
E volta a tua face para as montanhas;
Sem o saber ninguém,
E olha para as companhas
Da que por ilhas anda, as mais estranhas.
20 –
A vós, aves ligeiras,
Leões, cervos e gamos saltadores,
Montes, vales, ribeiras,
Águas, ares, ardores,
Mais os medos das noites, veladores.
21 –
Pelas amenas liras
E canto de sereias vos conjuro,
Que cessem vossas iras
E não toqueis no muro,
Para que a Esposa durma mais seguro.
22 –
E já entrou a Esposa
Para dentro do horto ameno desejado
E a seu sabor repousa
O colo reclinado
Sobre os braços dulcíssimos do Amado.
23 –
Sob a árvore de Adão
Ali comigo foste desposada,
Ali te dei a mão
E foste resgatada
Lá onde tua mãe fora violada.
24 –
Nosso leito florido
De covas de leões entrelaçado,
Em púrpura estendido,
De paz edificado,
De mil escudos de oiro coroado...
25 –
Discorrem as donzelas,
Sobre as tuas pegadas, no caminho;
Ao toque das centelhas
E ao temperado vinho,
Dão-te aromas de bálsamo divino.
26 –
Bebi do meu Amado
Na adega interior; quando saía
Por todo aquele prado
Já nada conhecia
E o rebanho deixei que antes seguia.
27 –
Ali me deu seu peito
E ciência me ensinou muito saborosa,
E a Ele, dom perfeito
De mim, Lhe fiz gostosa
E ali lhe prometi ser sua esposa.
28 –
De alma me consagrei
Ao seu serviço e todo o meu haver;
E já não guardo a grei,
Nem tenho outro mister:
Pois já somente amar é meu viver.
29 –
Se pois, no eido entretida
Não mais eu já for vista nem achada,
Direis que estou perdida,
Que andando enamorada
Perdidiça me fiz, e estou lucrada.
30 –
De flores e esmeraldas
Pela frescura das manhãs colhidas
Faremos as grinaldas
Em teu amor floridas
E num cabelo meu entretecidas.
31 –
Aquele só cabelo,
Que em meu colo voar tu advertiste,
Viste em meu colo, e, ao vê-lo,
Preso nele Te viste
E num só dos meus olhos te feriste.
32 –
E quando tu me olhavas,
Sua graça em mim teus olhos imprimiam:
Por isso mais me amavas
E nisso mereciam
Meus olhos adorar o que em Ti viam.
33 –
Não queiras desprezar-me,
Que se morena cor em mim achaste,
Já bem podes olhar-me,
Depois que Tu me olhaste,
Pois graça e formosura em mim deixaste.
34 –
A cândida pombinha
À arca com o ramo regressou
E já a rolazinha
Ao sócio que esperou
Junto às ribeiras verdes encontrou.
35 –
Em solidão vivia,
Seu ninho em solidão pôs escondido,
Na solidão a guia
A sós o seu Querido,
Também, na solidão, de amor ferido.
36 –
Gozemo-nos , Esposo,
Vamo-nos ver em tua formosura
Ao monte e cerro umbroso
Donde mana a água pura:
Entremos mais adentro na espessura.
37 –
E logo às mais erguidas
Cavernas do rochedo subiremos,
Que estão bem escondidas;
Ali logo entraremos
E o mosto das romãs saborearemos.
38 –
Ali me mostrarias
Aquilo que minha alma pretendia,
E logo me darias,
Ó vida e alegria,
Aquilo que me deste noutro dia:
39 –
Da brisa o aspirar,
Da doce filomela a voz amena,
O souto de encantar,
Pela noite serena,
Com chama que consuma e não dá pena.
40 –
Ninguém isto alcançava
E nem Aminadab aparecia
E o cerco sossegava
E à vista descendia,
Das claras águas, a cavalaria.
INTRODUÇÃO
1. – As canções iniciam-se no momento em que a alma começa a servir a Deus até que atinja o último estado de perfeição, que é o matrimónio espiritual.
Nesta obra, S. João da Cruz ocupa-se das três vias de exercício espiritual até que se alcance tal estado:
- a via purgativa;
- a via iluminativa; e
- a unitiva.
2. – As canções iniciais dirigem-se aos principiantes da via purgativa.
Seguem-se as dos iniciados – os aproveitados, na terminologia do Santo –, que respeitam à via iluminativa, onde ocorre o desposório matrimonial.
Depois, as da via unitiva, onde a alma já alcançou um verdadeiro estado de perfeição e se realiza no matrimónio espiritual.
As últimas canções são as do estado beatífico.
COMEÇA A DECLARAÇÃO DAS CANÇÕES DE AMOR ENTRE A ESPOSA E O ESPOSO (JESUS CRISTO)
1. - ANOTAÇÃO
A alma começa a entender claramente qual o seu objectivo neste mundo.
Percebe que a vida é breve, estreita a senda que conduz à vida eterna e que apenas o justo se salva. Que as coisas do mundo mais não são do que perigosas ilusões, que o tempo é incerto e que tudo acaba. A perdição fácil e difícil a salvação. Que desperdiçou a maior parte da sua vida com futilidades, desejos e inquietações, afastando-se de Deus que dela se esconde. Aí, começa a invocar o seu Amado dizendo:
CANÇÃO I
Onde é que tu, Amado,
Te escondeste deixando-me em gemido?
Fugiste como o veado
Havendo-me ferido;
Clamando eu fui por ti: tinhas partido!
2. – DECLARAÇÃO
Nesta primeira canção, a alma enamorada de Deus, queixa-se da sua ausência, o que obsta à união que tanto anseia, e assim diz:
Onde é que tu, Amado
Te escondeste...?
3. – Pede a alma a Deus que lhe mostre ou a encaminhe para o lugar onde se esconde.
Deus é verdadeiramente um Deus escondido (Isaías). Por outro lado a grande dúvida da sua presença manifesta-se nas palavras de Job – se a nós vier não o veremos, e se se for não o entenderemos.
4. – Perante tal incerteza, a alma pede encarecidamente a Deus a clara presença e visão da sua essência.
6. – Para que não vagueie em sendas infrutíferas, a alma terá de reconhecer que Deus está escondido no seu íntimo ser. Assim, querendo-o encontrar, convirá abandonar todas as coisas segundo a afeição e vontade, entrando em recolhimento dentro de si mesma.
Santo Agostinho afirmou que não encontrava Deus fora de si, porque mal o buscava; buscava-o fora quando Ele estava dentro.
Daqui decorre que Deus está escondido na alma.
7. – O Reino de Deus está dentro de nós (Lucas) e nós somos o templo desse Deus (S. Paulo).
Ele está em nós do mesmo modo que nós não podemos estar sem Ele.
8. – Grande é o contentamento da alma quando entende que Deus nunca dela se ausenta, esteja ou não no estado de graça.
Deseja Deus e adora-o na tua alma, porque se o fizeres fora de ti perder-te-ás.
Mas, nunca olvides que embora estando dentro de ti, está escondido.
9. – Se Deus está dentro de nós, como é que o não vemos?
Ele está escondido e para o encontrar havemos também de entrar escondidos no seu esconderijo.
Diz o Santo, que para o podermos encontrar devemos esquecer todas as nossas coisas, afastando-nos de tudo, inclusivamente das criaturas, escondendo-nos no nosso retiro interior do espírito, fechando a porta atrás de nós, abandonando a nossa vontade e recitando as nossas orações em segredo.
10. – Disse Isaías à alma, “anda, entra em teus retiros, cerra tuas portas sobre ti e esconde-te um pouco por um momento”.
A alma “cerra as portas” a todas as suas potências e a todas as criaturas, escondendo-se por este momento da vida temporal quem quiser atingir a união.
Desta forma, veremos Deus.
11. – A fé são os pés com que a alma se dirige a Deus e o Amor é o guia que a encaminha.
12. – Deus é inacessível e escondido, e por mais que te pareça que o tens e o sentes e o entendes, sempre o hás-de ter por escondido e o hás-de servir escondido, escondidamente.
deixando-me em gemido?
13. – Chama-lhe Amado, porquanto Deus acode com maior presteza à alma que o ama. E a alma pode em verdade chamar-lhe Amado, quando está apenas com Ele, não estando apegada a nada que não seja Ele.
Não o estando totalmente, deverá perseverar na oração, porque de Deus nada se alcança que não seja por intermédio do amor.
14. – A ausência do Amado causa um contínuo gemido ao amante. Este, nada amando fora dele, nenhum alívio recebe e a vida torna-se bastas vezes insuportável.
Fugiste como o veado
15. – Nos cantares, a Esposa (Alma) compara o Esposo ao veado, por ser algo estranho e solitário e por ter a virtualidade de se esconder e aparecer, tal como nas visitas que faz às almas e nas ausências que as faz sentir após as visitas, para as submeter a regime de provação e ensinar.
Havendo-me ferido
16. – O desejo ardente de ver o Amado faz com que aumente a paixão quando a alma o vê abandoná-la sem que nem muito nem pouco se deixe compreender.
17. – As feridas de amor são provocadas por toques escondidos de amor, e que ao modo de dardos de fogo ferem e trespassam a alma, abrasando-a em fogo e chama de amor.
18. – A alma por amor reduz-se a nada, nada sabendo senão amar, e julgando intolerável o rigor que o Amor usa para com ele. Não porque a tenha ferido, mas porque a deixou penando e muito sofrendo.
19. – Por isso, diz a alma: deixando-me assim ferida, morrendo com feridas de amor por ti, te escondeste com a ligeireza de um veado.
Esta dor aumenta nela a ânsia de ver Deus.
Clamando eu fui por ti: tinhas partido!
20. – Nas feridas de amor a cura só pode ser realizada por quem feriu. Daí, clamar a alma pelo Amado.
21. – A Esposa ficou ferida por não ter encontrado Deus e vai penando na sua ausência, já que a Ele se havia entregue e não encontrou a esperada correspondência amorosa.
22. – Este pesar e sentimento de ausência de Deus costuma ser tão grande nos que se vão aproximando do estado de perfeição, que se o Senhor lhes não acudisse, acabariam por morrer.
CANÇÃO II
Pastores que passardes
Lá por entre as malhadas ao Cabeço,
Se porventura achardes
Aquele que estremeço,
Que adoeço, lhe dizei, peno e feneço.
1. – DECLARAÇÃO
Nesta canção a alma com algum desespero procura aproveitar-se de mediadores para que dêem conhecimento ao seu Amado de sua dor e sofrimento. Assim lhes diz:
Pastores que passardes
2. – A alma chama pastores aos seus desejos, afectos e gemidos, dado que a apascentam de bens espirituais. No entanto, só os afectos e desejos que nascem do verdadeiro amor chegam a Deus.
Lá por entre as malhadas ao Cabeço,
3. – As malhadas são os coros de anjos, pelos quais de coro em coro vão os nossos gemidos e orações a Deus.
Se porventura achardes
4. – Com isto quer o Santo dizer: se por minha boa sorte e ventura chegardes à sua presença, de forma a que Ele vos possa ver e ouvir.
Atente-se que Deus acode às nossas súplicas não em função dos nossos desejos, mas em tempo oportuno.
Aquele que estremeço
5. – É aquele a quem a alma quer mais do que tudo.
Que adoeço, lhe dizei, peno e feneço.
6. – A alma apresenta três necessidades: doença, pena e morte. E padece de três maneiras segundo as suas três potências: entendimento, vontade e memória.
Acerca do entendimento diz que adoece, porque não vê Deus – saúde da alma.
Acerca da vontade diz que pena porque não vê Deus – deleite da vontade.
E acerca da memória diz que fenece, porque recordando a falta de entendimento e dos deleites da vontade, teme perdê-lo o que se consubstancia na sua morte.
7. – Estas três necessidades e penas estão fundadas nas três virtudes teologais: fé, caridade e esperança, respeitando o entendimento à primeira, a vontade à segunda e por último, a memória à terceira.
CANÇÃO III
Buscando meus amores
Irei por esses montes e ribeiras,
Nem colherei as flores
Nem temerei as feras
E passarei os fortes e as fronteiras
1. – DECLARAÇÃO
A alma apercebe-se de que para encontrar o Amado não lhe bastam gemidos, orações ou ajuda de terceiros, como ficou exposto nas canções anteriores.
Buscando meus amores
2. – A alma convence-se de que para atingir Deus tem de se esforçar para além da simples oração e da intercessão de outrem
3. – Terá de sair do reduto da sua própria vontade e do seu próprio gosto.
Irei por esses montes e ribeiros
4. – Dirigirá o seu esforço para as virtudes, exercitando a vida contemplativa, mortificar-se-á e não abandonará nunca os exercícios espirituais.
Entende que o caminho por onde se busca Deus é o de praticar em Deus o bem e mortificar em si o mal.
Nem colherei as flores
5. – Não colherá as flores que encontrar no caminho para Deus.
Não porá o seu coração na riqueza e bens que o mundo lhe oferece, não admitirá os contentamentos e deleites da carne, nem deverá ater-se aos gostos e consolos do espírito.
Nem temerei as feras
E passarei os fortes e fronteiras.
6. – Mencionam-se aqui os três inimigos da alma: mundo (feras), demónio (fortes) e carne (fronteiras).
10. – À alma convém no seu percurso, não colher as flores, ânimo para não temer as feras e forças para passar por fortes e fronteiras, indo pelos montes e ribeiras da virtude.
CANÇÃO IV
Ó bosques e espessuras
Plantados pela mão do meu Amado,
Ó prado de verduras,
De flores esmaltado,
Dizei-me, se por vós terá passado?
1. – DECLARAÇÃO
Depois de entender o modo como deve começar o caminho, não se detendo em deleites e gozos e das forças necessárias para vencer as tentações e dificuldades, no que consiste o exercício do conhecimento próprio, a alma, nesta canção, trilha a vereda do conhecimento das criaturas indo ao conhecimento do Amado, que as criou.
Depois do exercício de conhecimento próprio, o conhecimento das criaturas é o primeiro na ordem do percurso espiritual que aspira a Deus.
Ó bosques e espessuras
2. – O Santo chama bosques aos quatro elementos, terra, água, fogo e ar, e espessuras à imensidão das criaturas.
Plantados pela mão do meu Amado,
3. – Não obstante Deus faça muitas coisas por mão alheia, como pela dos Anjos e dos homens, a criação é obra totalmente sua.
Ó prado de verduras,
4. – Aqui, refere-se ao céu, cujas coisas, tais como planetas e estrelas, não fenecem nem murcham com o tempo.
De flores esmaltado.
6. – O prado de verduras está também de flores esmaltado, entendendo por flores os anjos e as almas santas.
(...)
JOSÉ MARIA ALVES
www.homeoesp.org
Como ensina o Padre Gabriel de Santa Maria Madalena – Obras Completas, Edições Carmelo – devemos em primeiro lugar tomar contacto com a sua doutrina através do Cântico Espiritual, sem que seja necessário lê-lo na sua totalidade, podendo uma primeira leitura limitar-se às 12 primeiras estrofes.
Deste modo, tomámos a liberdade de adaptar e resumir as primeiras canções da dita obra, preparando a alma para a leitura da mencionada Subida.
Que tal arrojo nos seja desculpado.
CÂNTICO ESPIRITUAL
CANÇÕES ENTRE A ALMA E O ESPOSO
Esposa
1 –
Onde é que tu, Amado,
Te escondeste deixando-me em gemido?
Fugiste como o veado,
Havendo-me ferido;
Clamando eu fui por ti; tinhas partido!
2 –
Pastores que passardes
Lá por entre as malhadas ao Cabeço,
Se porventura achardes
Aquele que estremeço,
Que adoeço, lhe dizei, peno e feneço.
3 –
Buscando meus amores
Irei por esses montes e ribeiras,
Nem colherei as flores,
Nem temerei as feras
E passarei os fortes e fronteiras.
Pergunta às criaturas
4 –
Ó bosques e espessuras
Plantados pela mão do meu Amado,
Ó prado de verduras,
De flores esmaltado,
Dizei-me, se por vós terá passado?
Resposta das criaturas
5 –
Mil graças derramando
Prestes passou dos soutos pela espessura
E enquanto os ia olhando,
Só com sua figura
Vestidos os deixou de formosura.
Esposa
6 –
Ah! Quem poderá sarar-me?
Acaba de entregar-te sem rodeio;
Não queiras enviar-me
Mensageiro entremeio,
Que não sabem dizer-me o que eu anseio.
7 –
E todos quantos vagam
De Ti me vão mil graças relatando,
Mas todos mais me chagam
E mais me vai matando
Um não sei quê que ficam balbuciando.
8 –
Mas como perseveras,
Ó vida, não vivendo aonde deves,
Matando-te deveras
As setas que recebes
Daquilo que do Amado em ti concebes?
9 –
Porquê, tendo chagado
Meu pobre coração, o não saraste?
Depois de o ter roubado,
Porque assim o deixaste
E não tomas o roubo que roubaste?
10 –
Apaga-me a tristeza,
Que mais ninguém me pode aqui valer;
E veja tua beleza
Que é luz dos olhos meus
E para ela só os quero ter.
11 –
Mostra tua presença
Mate-me a tua vista e formosura;
Olha que esta doença
De amor, já não se cura,
Senão com a presença e com a figura.
12 –
Ó fonte cristalina,
Se eu, nesses teus semblantes prateados,
Visse, ó fonte divina,
Os olhos desejados
Que trago nas entranhas esboçados!...
13 –
Aparta-os, Amado,
Que o voo levanto.
Esposo
Volve já, ó pomba
Que o cervo vulnerado
Por sobre o outeiro assoma
Ao ar desse teu voo, e o fresco toma.
Esposa
14 –
Meu Amado, as montanhas,
Os vales solitários, nemorosos,
As insulas estranhas,
Os rios rumorosos
O sibilo dos ares amorosos;
15 –
A noite sossegada
Tocando já com o surgir da aurora,
A música calada,
A solidão sonora,
A ceia que recreia e enamora...
16 –
Caçai-nos as raposas,
Que a nossa vinha já se encontra em flor,
E tantas são as rosas,
Que em pinha as vamos pôr;
No cimo ninguém surja, por favor.
17 –
Detém-te bóreas morto,
Vem austro, que recordas os amores,
Aspira por meu horto,
E corram teus olores
E o Amado pascerá por entre as flores.
18 –
Ó ninfas da Judeia,
Enquanto nos rosais e dentre as flores
O âmbar nos recreia,
Morai nos arredores
Nem cheguem aos umbrais vossos rumores.
19 –
Esconde-te, meu Bem,
E volta a tua face para as montanhas;
Sem o saber ninguém,
E olha para as companhas
Da que por ilhas anda, as mais estranhas.
20 –
A vós, aves ligeiras,
Leões, cervos e gamos saltadores,
Montes, vales, ribeiras,
Águas, ares, ardores,
Mais os medos das noites, veladores.
21 –
Pelas amenas liras
E canto de sereias vos conjuro,
Que cessem vossas iras
E não toqueis no muro,
Para que a Esposa durma mais seguro.
22 –
E já entrou a Esposa
Para dentro do horto ameno desejado
E a seu sabor repousa
O colo reclinado
Sobre os braços dulcíssimos do Amado.
23 –
Sob a árvore de Adão
Ali comigo foste desposada,
Ali te dei a mão
E foste resgatada
Lá onde tua mãe fora violada.
24 –
Nosso leito florido
De covas de leões entrelaçado,
Em púrpura estendido,
De paz edificado,
De mil escudos de oiro coroado...
25 –
Discorrem as donzelas,
Sobre as tuas pegadas, no caminho;
Ao toque das centelhas
E ao temperado vinho,
Dão-te aromas de bálsamo divino.
26 –
Bebi do meu Amado
Na adega interior; quando saía
Por todo aquele prado
Já nada conhecia
E o rebanho deixei que antes seguia.
27 –
Ali me deu seu peito
E ciência me ensinou muito saborosa,
E a Ele, dom perfeito
De mim, Lhe fiz gostosa
E ali lhe prometi ser sua esposa.
28 –
De alma me consagrei
Ao seu serviço e todo o meu haver;
E já não guardo a grei,
Nem tenho outro mister:
Pois já somente amar é meu viver.
29 –
Se pois, no eido entretida
Não mais eu já for vista nem achada,
Direis que estou perdida,
Que andando enamorada
Perdidiça me fiz, e estou lucrada.
30 –
De flores e esmeraldas
Pela frescura das manhãs colhidas
Faremos as grinaldas
Em teu amor floridas
E num cabelo meu entretecidas.
31 –
Aquele só cabelo,
Que em meu colo voar tu advertiste,
Viste em meu colo, e, ao vê-lo,
Preso nele Te viste
E num só dos meus olhos te feriste.
32 –
E quando tu me olhavas,
Sua graça em mim teus olhos imprimiam:
Por isso mais me amavas
E nisso mereciam
Meus olhos adorar o que em Ti viam.
33 –
Não queiras desprezar-me,
Que se morena cor em mim achaste,
Já bem podes olhar-me,
Depois que Tu me olhaste,
Pois graça e formosura em mim deixaste.
34 –
A cândida pombinha
À arca com o ramo regressou
E já a rolazinha
Ao sócio que esperou
Junto às ribeiras verdes encontrou.
35 –
Em solidão vivia,
Seu ninho em solidão pôs escondido,
Na solidão a guia
A sós o seu Querido,
Também, na solidão, de amor ferido.
36 –
Gozemo-nos , Esposo,
Vamo-nos ver em tua formosura
Ao monte e cerro umbroso
Donde mana a água pura:
Entremos mais adentro na espessura.
37 –
E logo às mais erguidas
Cavernas do rochedo subiremos,
Que estão bem escondidas;
Ali logo entraremos
E o mosto das romãs saborearemos.
38 –
Ali me mostrarias
Aquilo que minha alma pretendia,
E logo me darias,
Ó vida e alegria,
Aquilo que me deste noutro dia:
39 –
Da brisa o aspirar,
Da doce filomela a voz amena,
O souto de encantar,
Pela noite serena,
Com chama que consuma e não dá pena.
40 –
Ninguém isto alcançava
E nem Aminadab aparecia
E o cerco sossegava
E à vista descendia,
Das claras águas, a cavalaria.
INTRODUÇÃO
1. – As canções iniciam-se no momento em que a alma começa a servir a Deus até que atinja o último estado de perfeição, que é o matrimónio espiritual.
Nesta obra, S. João da Cruz ocupa-se das três vias de exercício espiritual até que se alcance tal estado:
- a via purgativa;
- a via iluminativa; e
- a unitiva.
2. – As canções iniciais dirigem-se aos principiantes da via purgativa.
Seguem-se as dos iniciados – os aproveitados, na terminologia do Santo –, que respeitam à via iluminativa, onde ocorre o desposório matrimonial.
Depois, as da via unitiva, onde a alma já alcançou um verdadeiro estado de perfeição e se realiza no matrimónio espiritual.
As últimas canções são as do estado beatífico.
COMEÇA A DECLARAÇÃO DAS CANÇÕES DE AMOR ENTRE A ESPOSA E O ESPOSO (JESUS CRISTO)
1. - ANOTAÇÃO
A alma começa a entender claramente qual o seu objectivo neste mundo.
Percebe que a vida é breve, estreita a senda que conduz à vida eterna e que apenas o justo se salva. Que as coisas do mundo mais não são do que perigosas ilusões, que o tempo é incerto e que tudo acaba. A perdição fácil e difícil a salvação. Que desperdiçou a maior parte da sua vida com futilidades, desejos e inquietações, afastando-se de Deus que dela se esconde. Aí, começa a invocar o seu Amado dizendo:
CANÇÃO I
Onde é que tu, Amado,
Te escondeste deixando-me em gemido?
Fugiste como o veado
Havendo-me ferido;
Clamando eu fui por ti: tinhas partido!
2. – DECLARAÇÃO
Nesta primeira canção, a alma enamorada de Deus, queixa-se da sua ausência, o que obsta à união que tanto anseia, e assim diz:
Onde é que tu, Amado
Te escondeste...?
3. – Pede a alma a Deus que lhe mostre ou a encaminhe para o lugar onde se esconde.
Deus é verdadeiramente um Deus escondido (Isaías). Por outro lado a grande dúvida da sua presença manifesta-se nas palavras de Job – se a nós vier não o veremos, e se se for não o entenderemos.
4. – Perante tal incerteza, a alma pede encarecidamente a Deus a clara presença e visão da sua essência.
6. – Para que não vagueie em sendas infrutíferas, a alma terá de reconhecer que Deus está escondido no seu íntimo ser. Assim, querendo-o encontrar, convirá abandonar todas as coisas segundo a afeição e vontade, entrando em recolhimento dentro de si mesma.
Santo Agostinho afirmou que não encontrava Deus fora de si, porque mal o buscava; buscava-o fora quando Ele estava dentro.
Daqui decorre que Deus está escondido na alma.
7. – O Reino de Deus está dentro de nós (Lucas) e nós somos o templo desse Deus (S. Paulo).
Ele está em nós do mesmo modo que nós não podemos estar sem Ele.
8. – Grande é o contentamento da alma quando entende que Deus nunca dela se ausenta, esteja ou não no estado de graça.
Deseja Deus e adora-o na tua alma, porque se o fizeres fora de ti perder-te-ás.
Mas, nunca olvides que embora estando dentro de ti, está escondido.
9. – Se Deus está dentro de nós, como é que o não vemos?
Ele está escondido e para o encontrar havemos também de entrar escondidos no seu esconderijo.
Diz o Santo, que para o podermos encontrar devemos esquecer todas as nossas coisas, afastando-nos de tudo, inclusivamente das criaturas, escondendo-nos no nosso retiro interior do espírito, fechando a porta atrás de nós, abandonando a nossa vontade e recitando as nossas orações em segredo.
10. – Disse Isaías à alma, “anda, entra em teus retiros, cerra tuas portas sobre ti e esconde-te um pouco por um momento”.
A alma “cerra as portas” a todas as suas potências e a todas as criaturas, escondendo-se por este momento da vida temporal quem quiser atingir a união.
Desta forma, veremos Deus.
11. – A fé são os pés com que a alma se dirige a Deus e o Amor é o guia que a encaminha.
12. – Deus é inacessível e escondido, e por mais que te pareça que o tens e o sentes e o entendes, sempre o hás-de ter por escondido e o hás-de servir escondido, escondidamente.
deixando-me em gemido?
13. – Chama-lhe Amado, porquanto Deus acode com maior presteza à alma que o ama. E a alma pode em verdade chamar-lhe Amado, quando está apenas com Ele, não estando apegada a nada que não seja Ele.
Não o estando totalmente, deverá perseverar na oração, porque de Deus nada se alcança que não seja por intermédio do amor.
14. – A ausência do Amado causa um contínuo gemido ao amante. Este, nada amando fora dele, nenhum alívio recebe e a vida torna-se bastas vezes insuportável.
Fugiste como o veado
15. – Nos cantares, a Esposa (Alma) compara o Esposo ao veado, por ser algo estranho e solitário e por ter a virtualidade de se esconder e aparecer, tal como nas visitas que faz às almas e nas ausências que as faz sentir após as visitas, para as submeter a regime de provação e ensinar.
Havendo-me ferido
16. – O desejo ardente de ver o Amado faz com que aumente a paixão quando a alma o vê abandoná-la sem que nem muito nem pouco se deixe compreender.
17. – As feridas de amor são provocadas por toques escondidos de amor, e que ao modo de dardos de fogo ferem e trespassam a alma, abrasando-a em fogo e chama de amor.
18. – A alma por amor reduz-se a nada, nada sabendo senão amar, e julgando intolerável o rigor que o Amor usa para com ele. Não porque a tenha ferido, mas porque a deixou penando e muito sofrendo.
19. – Por isso, diz a alma: deixando-me assim ferida, morrendo com feridas de amor por ti, te escondeste com a ligeireza de um veado.
Esta dor aumenta nela a ânsia de ver Deus.
Clamando eu fui por ti: tinhas partido!
20. – Nas feridas de amor a cura só pode ser realizada por quem feriu. Daí, clamar a alma pelo Amado.
21. – A Esposa ficou ferida por não ter encontrado Deus e vai penando na sua ausência, já que a Ele se havia entregue e não encontrou a esperada correspondência amorosa.
22. – Este pesar e sentimento de ausência de Deus costuma ser tão grande nos que se vão aproximando do estado de perfeição, que se o Senhor lhes não acudisse, acabariam por morrer.
CANÇÃO II
Pastores que passardes
Lá por entre as malhadas ao Cabeço,
Se porventura achardes
Aquele que estremeço,
Que adoeço, lhe dizei, peno e feneço.
1. – DECLARAÇÃO
Nesta canção a alma com algum desespero procura aproveitar-se de mediadores para que dêem conhecimento ao seu Amado de sua dor e sofrimento. Assim lhes diz:
Pastores que passardes
2. – A alma chama pastores aos seus desejos, afectos e gemidos, dado que a apascentam de bens espirituais. No entanto, só os afectos e desejos que nascem do verdadeiro amor chegam a Deus.
Lá por entre as malhadas ao Cabeço,
3. – As malhadas são os coros de anjos, pelos quais de coro em coro vão os nossos gemidos e orações a Deus.
Se porventura achardes
4. – Com isto quer o Santo dizer: se por minha boa sorte e ventura chegardes à sua presença, de forma a que Ele vos possa ver e ouvir.
Atente-se que Deus acode às nossas súplicas não em função dos nossos desejos, mas em tempo oportuno.
Aquele que estremeço
5. – É aquele a quem a alma quer mais do que tudo.
Que adoeço, lhe dizei, peno e feneço.
6. – A alma apresenta três necessidades: doença, pena e morte. E padece de três maneiras segundo as suas três potências: entendimento, vontade e memória.
Acerca do entendimento diz que adoece, porque não vê Deus – saúde da alma.
Acerca da vontade diz que pena porque não vê Deus – deleite da vontade.
E acerca da memória diz que fenece, porque recordando a falta de entendimento e dos deleites da vontade, teme perdê-lo o que se consubstancia na sua morte.
7. – Estas três necessidades e penas estão fundadas nas três virtudes teologais: fé, caridade e esperança, respeitando o entendimento à primeira, a vontade à segunda e por último, a memória à terceira.
CANÇÃO III
Buscando meus amores
Irei por esses montes e ribeiras,
Nem colherei as flores
Nem temerei as feras
E passarei os fortes e as fronteiras
1. – DECLARAÇÃO
A alma apercebe-se de que para encontrar o Amado não lhe bastam gemidos, orações ou ajuda de terceiros, como ficou exposto nas canções anteriores.
Buscando meus amores
2. – A alma convence-se de que para atingir Deus tem de se esforçar para além da simples oração e da intercessão de outrem
3. – Terá de sair do reduto da sua própria vontade e do seu próprio gosto.
Irei por esses montes e ribeiros
4. – Dirigirá o seu esforço para as virtudes, exercitando a vida contemplativa, mortificar-se-á e não abandonará nunca os exercícios espirituais.
Entende que o caminho por onde se busca Deus é o de praticar em Deus o bem e mortificar em si o mal.
Nem colherei as flores
5. – Não colherá as flores que encontrar no caminho para Deus.
Não porá o seu coração na riqueza e bens que o mundo lhe oferece, não admitirá os contentamentos e deleites da carne, nem deverá ater-se aos gostos e consolos do espírito.
Nem temerei as feras
E passarei os fortes e fronteiras.
6. – Mencionam-se aqui os três inimigos da alma: mundo (feras), demónio (fortes) e carne (fronteiras).
10. – À alma convém no seu percurso, não colher as flores, ânimo para não temer as feras e forças para passar por fortes e fronteiras, indo pelos montes e ribeiras da virtude.
CANÇÃO IV
Ó bosques e espessuras
Plantados pela mão do meu Amado,
Ó prado de verduras,
De flores esmaltado,
Dizei-me, se por vós terá passado?
1. – DECLARAÇÃO
Depois de entender o modo como deve começar o caminho, não se detendo em deleites e gozos e das forças necessárias para vencer as tentações e dificuldades, no que consiste o exercício do conhecimento próprio, a alma, nesta canção, trilha a vereda do conhecimento das criaturas indo ao conhecimento do Amado, que as criou.
Depois do exercício de conhecimento próprio, o conhecimento das criaturas é o primeiro na ordem do percurso espiritual que aspira a Deus.
Ó bosques e espessuras
2. – O Santo chama bosques aos quatro elementos, terra, água, fogo e ar, e espessuras à imensidão das criaturas.
Plantados pela mão do meu Amado,
3. – Não obstante Deus faça muitas coisas por mão alheia, como pela dos Anjos e dos homens, a criação é obra totalmente sua.
Ó prado de verduras,
4. – Aqui, refere-se ao céu, cujas coisas, tais como planetas e estrelas, não fenecem nem murcham com o tempo.
De flores esmaltado.
6. – O prado de verduras está também de flores esmaltado, entendendo por flores os anjos e as almas santas.
(...)
JOSÉ MARIA ALVES
www.homeoesp.org
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