a meu pai
Cada dia te víamos andando
mais para dentro de ti mesmo. O tempo
ia ficando parado
à medida que o sangue, mais pequeno,
circulava num espaço
que já era seu próprio esquecimento.
A certa altura, a placidez do campo
lavrava teu rosto. Que terreno
era então ver-te olhando,
como se olhar e o fio do centeio
fossem a luz do ano
com nostalgia de parecer eterno.
Foi essa a idade em que haver sido amado
pelo pão, pelo vinho e pelo vento
te trouxe a crestação com que o trabalho
deu tez ao sonho, e honradez e peso
a ficares assim, em paz sentado,
marceneirando teu próprio pensamento.
E, aos poucos, por ele madrugando,
seguiste ainda mais por ele adentro,
de forma que, hoje, nem te vemos. O halo
onde foste minguando é só aceno
de quem se foi pensando
até ao outro lado de si mesmo.
Do outro lado de si mesmos, cantam.
Desde outra margem sua voz arriba,
imperceptivelmente alcandorada
nessa tensão em que o cristal é cima.
Como essa margem se está excedendo. Que alta
se cumpre a melodia
por onde a inteligência fundou haver montanhas
de que nos chega somente a nostalgia.
Que as vozes que, do outro lado de si mesmas, cantam
deixam os ecos propagar-se à santa
alcandoração da disciplina.
Sobre os Mortos
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