O terramoto de Lisboa de 1 de Novembro de 1755 – Dia de Todos-Os-Santos - permitiu a Voltaire polemizar em verso contra Alexander Pope e Leibniz, para quem “tudo está bem” – vejam-se neste blogue os artigos referentes à teodiceia e Leibniz (utilize o pesquisador).
Se Pope dulcifica e pacifica os males que nos atingem, já Leibniz julga-os uma consequência inelutável da nossa natureza e da estrutura do próprio universo.
Para Voltaire, este não é o melhor dos mundos possíveis e “que triste jogo de acaso é o jogo da vida humana!”, valendo-lhe o “POEMA SOBRE O DESASTRE DE LISBOA ou exame deste axioma. «Tudo está bem»”, uma resposta de Rosseau.
Segundo este, Voltaire, que sempre pareceu acreditar em Deus, realmente nunca acreditou senão no Diabo, já que o seu pretenso deus não passa de um malfeitor, que em sua perspectiva, outro intento não tem, nem sequer prazer, que não seja o de o prejudicar a si e aos seus semelhantes. Daqui, Voltaire gera e arrasta-o no desespero e não na esperança.
Num mundo de calamidades, num país calamitoso, em que a terra se começa já a esventrar em aborto de terceiro mês, que nem águas correntes poderão absterger, nem homem ditoso evitar, legitima-se a edição de excertos do dito poema – veja-se o texto integral na excelente tradução de Jorge P. Pires, em Voltaire, o Desastre de Lisboa, editora frenesi -, relembrando os que necessitam de ser relembrados, na sequência de Rousseau, de que nada vale ficar, obstinados em torno de nossos casebres, expondo-nos a novos e novos tremores, já que aquilo que se abandona muito menos vale do que aquilo que se pode levar...
Ó infelizes mortais! Ó deplorável terra!
Ó agregado horrendo que a todos os mortais encerra!
Exercício eterno que inúteis dores mantém!
Filósofos iludidos que bradais «Tudo está bem»;
Acorrei, contemplai estas ruínas malfadadas,
Estes escombros, estes despojos, estas cinzas desgraçadas,
Estas mulheres, estes infantes uns nos outros amontoados
Estes membros dispersos sob estes mármores quebrados
Cem mil desafortunados que a terra devora,
Os quais, sangrando, despedaçados, e palpitantes embora,
Enterrados com seus tectos terminam sem assistência
No horror dos tormentos sua lamentosa existência!
Aos gritos balbuciados por suas vozes expirantes,
Ao espectáculo medonho de suas cinzas fumegantes,
Direis vós: «Eis das eternas leis o cumprimento,
Quem de um Deus livre e bom requer o discernimento?»
Direis vós, perante tal amontoado de vítimas:
«Deus vingou-se, a morte deles é o preço de seus crimes»?
Que crime, que falta comentaram estes infantes
Sobre o seio materno esmagados e sangrantes?
Lisboa, que não é mais, teve ela mais vícios
Que Londres, que Paris, mergulhadas nas delícias?
Lisboa está arruinada e dança-se em Paris.
(...)
Ide interrogar as margens do Tejo;
Revolvei os escombros deste sangrento despejo;
Perguntai aos moribundos, nesta morada de pavor,
Se é o orgulho quem clama: «Ajudai-me, Senhor!
Ó céus, tende piedade do humano fadário!»
«Tudo está bem», dizeis vós, «e tudo é necessário.»
Mas quê! O Universo inteiro, sem este abismo infernal,
Sem engolir Lisboa, teria estado em maior mal?
(...)
Não, não ostenteis mais a meu coração alterado
Essas imutáveis leis da necessidade,
Essa cadeia dos corpos, dos espíritos, e dos mundos.
Ó sonhos de sábios! Ó desvarios profundos!
Deus tem na mão a corrente, e não está acorrentado;
Por sua escolha benévola tudo é determinado:
Ele é livre, ele é justo, e não é implacável.
Porque sofremos então com um amo justo e amável?
(...)
Elementos, animais, humanos, tudo está em guerra.
Há que reconhecê-lo, o “mal” está sobre a terra:
Seu princípio secreto não nos é de todo conhecido.
Do autor de todo o bem, terá o mal decorrido?
(...)
Um Deus veio consolar a nossa raça alarmada;
Visitou a terra, mas não a mudou em nada!
Diz-nos um sofista arrogante que ele o não pôde fazer:
«Ele poderia», diz outro, «mas havia de o querer:
Querê-lo-ia, sem dúvida;» e, enquanto se apregoa,
Há trovões subterrâneos que vão engolindo Lisboa,
E de trinta cidades dispersam os lambris,
Das margens sangrentas do Tejo até ao mar de Cádis.
Ou o homem nasceu culpado, e Deus pune sua raça,
Ou esse senhor absoluto do ser e do espaço,
Sem furor, sem piedade, tranquilo, indiferente,
De seus primeiros decretos segue a eterna torrente;
Ou a matéria informe, a seu mestre rebelde,
Transporta consigo defeitos tão necessários quanto ela;
Ou Deus nos põe à prova, e esta estadia mortal
Não é senão uma passagem estreita para um mundo eternal.
Aqui experimentamos dores transitórias:
Falecer é um bem que termina as nossas misérias.
Mas quando por fim sairmos desta passagem de agruras,
Qual de nós pretenderá merecer colher venturas?
(...)
Leibniz nunca me ensina por que nós invisíveis,
No mais bem ordenado dos universos possíveis,
Uma desordem eterna, um caos de infelicidades,
A nossos vãos prazeres mistura certas dores que são verdades,
Nem por que é que o inocente, tal como o culpado,
Sofre do mesmo modo este mal desgraçado.
Também não concebo como tudo estaria bem:
Sou como um médico; infelizmente nada sei.
(...)
“Um dia tudo estará bem”, eis aí a nossa esperança;
“Tudo está bem hoje em dia”, eis aqui a ilusão.
(...)
Outrora um califa, chegado à hora em que se falece,
Ao deus que adorava disse então como prece:
«Trago-te, ó único rei, único ser sem limitação,
Tudo o que não possuis na tua imensidão,
Os defeitos, os remorsos, os males e a ignorância.»
Mas poderia haver acrescentado ainda “a esperança”.
Tradução de Jorge Pires