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OS TRATAMENTOS SUGERIDOS NÃO DISPENSAM A INTERVENÇÃO DE TERAPEUTA OU MÉDICO ASSISTENTE.

ARTE

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

ANTÓNIO BOTTO - CANTIGA







Se eu fosse alguém ou mandasse
Neste mundo de vileza
Só pensava numa coisa
- Acabar com a pobreza.
Dar à vida outra feição
Mais igual, mais repartida,
Seria o meu grande sonho,
A minha grande alegria,
E a cada boca num beijo
Dar o pão de cada dia.

Quem tem muito poderia
Ter menos um bocadinho
P´ra não haver tanto pobre
A pedir no meu caminho.
Não ouvir o desalento
À noite pelas tabernas,
Nem haver gente com fome
Lutando para viver
Porque eu sou pobre também
E não lhes posso valer.

Acabar com a miséria
Mãe do crime e da loucura
Seria ensinar a ler
Os vermes da sepultura.
Mas, cingido ao fatalismo
De uma luta desigual
O que há-de fazer um triste
Que só chegou a indigente?
- Renunciarmos a tudo
No futuro e no presente.

Não ouvir uma criança
Na tristeza de uma queixa
Fazer-nos sentir a morte
E o luto que ela nos deixa;
Podermos dar num sorriso
A expressão da felicidade;
cada mortal possuir
A sua razão de ser,
- Assim gostava da vida
E gostava de viver.


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - FUI AGORA MEXER NAS TUAS CARTAS






Fui agora mexer nas tuas cartas.

Quem pudesse voltar a acreditar
Nessas palavras doidas e transidas
De febre no delírio da paixão
Que arrastaram num sonho as nossas vidas
Misturando-as na mesma reacção!

Aqui há um juramento além da morte.
Ali dizes que vens logo à noitinha;
E um cheiro a vinho e a fruta – Que doidice!,
Paira naquele quarto do hotel
Onde fiquei três dias e três noites
Esquecido de tudo à tua espera!

Estávamos em Março; Primavera.

Nesta um abraço ainda cinge e aperta
Meu corpo vibrante,
E ali rasga o papel o teu ciúme
Num beijo sensualíssimo de amante.

Além, mais alto, impões que te apareça
- E a noite era uma noite muito fria!
Tanta carta a falar do nosso amor,
Tanta coisa que morre e nem nos deixa
Sequer um vago som de simpatia?

O que eu chorei quando esta recebi,
Esta que diz: «Não volto a procurar-te».
E atrás de ti segui por toda a parte,
Até que te encontrei; e ardentemente
Voltámos à loucura que findou.

Como é que a gente pode mudar tanto
Sem sentir pela hora que passou
- Por essa hora linda de prazer,
Uma saudade, um pormenor qualquer,
- Ficarmos alheados ou suspensos, -
Uma tristeza, uma tremura, um ai
Que nasce e vai morrer lá onde a realidade
Começa e não acaba e nunca expira?...

Não leias estes versos. Tudo isto,
Tudo isto, afinal, é só mentira.


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - EXPLICA-ME TU SE PODES





Explica-me tu se podes
Num movimento de calma,
Porque razão
Se te beijo num desvairo de prazer
Às vezes sou todo corpo
E às vezes sou todo alma?


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - SE FOSSES LUZ SERIAS A MAIS BELA





Se fosses luz serias a mais bela
De quantas há no mundo: - a luz do dia!
- Bendito seja o teu sorriso
Que desata a inspiração
Da minha fantasia!
Se fosses flor serias o perfume
Concentrado e divino que perturba
O sentido de quem nasce para amar!
- Se desejo o teu corpo é porque tenho
Dentro de mim
A sede e a vibração de te beijar!
Se fosses água – música da terra,
Serias água pura e sempre calma!
- Mas de tudo que possas ser na vida,
Só quero, meu amor, que sejas alma!


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - CASAR, MAS PARA QUÊ...





Casar, mas para quê, se o casamento
Não significa o verdadeiro amor?
E se ele existe – seja como for,
Deixa de ser amor nesse momento.

Leva-se a vida, então, no sofrimento
De um conflito movido no torpor
Que amortece o respeito e esse pudor
Necessários ao lar e ao sentimento.

Com piquenas e raras excepções
O homem e a mulher andam no mundo
Ao sabor das mais loucas tentações...

E, mutuamente, embora não pareça,
Desejam ambos libertar-se a fundo
Ou esperam que a morte os favoreça.


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - É DIFÍCIL NA VIDA ACHAR ALGUÉM






É difícil na vida achar alguém
Que seja na verdade um grande amigo,
E se assim penso – e com tristeza o digo,
É porque o sei, talvez, como ninguém.

Se a amizade é um bem – e se esse bem
Traz o conforto de um divino abrigo,
Por mim, direi, que nunca mais consigo
Iludir-me nas graças que ele tem.

Afectos, sacrifícios, lealdade!,
Tudo se apaga ou fica na memória
Se a ilusão dá lugar à realidade.

E ai daqueles que pensam na excepção:
Acabam por ficar dentro da história
De que a vida é um sonho e uma traição.


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - SEI






Sei –
Que outros abraços te apertam
E outras bocas vão beijar
O teu saboroso corpo
Onde mora o meu destino;
Mas, não me zango nem fujo
Nunca mais de te falar –
Como se em ti desconhecesse
O vício de atraiçoar...

Nesta vida transitória,
Afinal, - o que sou eu?
- A força de um pensamento que diz aquilo que diz
E o resumo de uma história
Que ninguém compreendeu.


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - O BRINCO DA TUA ORELHA






O brinco da tua orelha
Sempre se vai meneando;
Gostava de dar um beijo
Onde o teu brinco os vai dando.
Tem um topázio doirado
Esse brinco de platina;
Um rubi muito encarnado,
E uma outra pedra fina.
O que eu sofro quando o vejo
Sempre airoso meneando!
Dava tudo por um beijo
Onde o teu brinco os vai dando.


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - FRISO CONTEMPORÂNEO - O FADO


Desde piqueno
- O meu Sonho,
Era chegar a ser homem,
E ser marujo! – embarcar...

Hoje,
Vejo que a vida não deve
Ser vivida com paixão;
- Tudo foge ao nosso olhar.

Amores, quem é que os teve
Com mais funda intensidade?

Tanto anseio me escaldava
Que todas essas que foram
Tocadas pelo meu corpo
Desempenado e trigueiro
Andam à noite vendendo
O frágil sexo – ao primeiro...

Triste de quem tem amores,
Triste de quem os não tem;
De toda a maneira é triste
Sentir saudades de alguém.

E era aclamado!
Sentiam
A nostalgia do fado
Na minha voz
Pouco amorosa mas quente;
- Numa lágrima,
Dizia,
O meu passado e o meu presente.

O vinho
Entornava-se nos copos;
As almas
Vinham à tona
Da conversa altiva e rude:
«Então, à nossa, rapazes!,
Bebam à nossa saúde!»

E havia sempre o afago
Daquela
Que nas sombras da viela
Tange a sua condição
E é nossa por qualquer coisa.

Sim;
Mordi bocas que choravam
Para de novo as morder;
Depois, um dia, casei
- P´ra mais vida conhecer.

Nisto embarco por dois anos.
Deixo a mulher – e lá vou
Servir a Pátria!,
Servi-la
Com aprumo e galhardia!
Que o digam estas divisas
Que são a minha alegria.

Agora volto. Com outro
Se ajuntou essa perdida;
- Com outro geme o seu cio
Destrambelhado e mordente.
Com outro, dizem; - com «outros»,
Direi eu a toda a gente!

Triste de quem tem amores,
Triste de quem os não tem;
De toda a maneira é triste
Sentir saudades de alguém.


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - APONTAMENTO






Para onde marcha o mundo? O que vai ser
Do pobre que nasceu para servir?
- Trocaram o sorriso pela espada
E é latente a volúpia de agredir!

O que é que os homens querem mais ainda
Além da sua vil mediocridade?
Incêndios, sangue, - ó cegos visionários
Sem alma e sem noção da realidade!
Tambores e metralhas e clarins
Num cântico sinistro, sem beleza,
- Embora a vida seja o hálito da morte,
Uma ilusão de límpida saudade, -
Deixai supor, deixai-vos iludir
De que para viver
Não é preciso matar
Nem é preciso mentir!


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - A JULIETA DO BECO DAS CRUZES






Aos arrancos, lá vai ela
Despedir-se do amante
Nesta manhã de Janeiro!
Coitada, morre por ele!
- Foi o seu primeiro amor
E será o derradeiro.

Todas as tardes, risonha,
Ela falava com ele
Num beco escuro de Alfama.
Era ali que ela morava;
- Até que uma noite foram
Pernoitar na mesma cama.

Estou a vê-la!, cingida
Ao corpo delgado e quente
Desse esbelto carpinteiro!
E vejo-a, dias depois,
nervosa, afastar-se dele
Chamando-lhe: trapaceiro.

Mais tarde ia procurá-lo
À oficina e chorosa
Seguia-o sem que ele a visse;
E naquela perdição
Adoeceu porque um dia
Com outra o viu, - mas, sorriu-se...

Soube-lhe bem ser «mulher»
Do homem que apenas teve
Um desejo passageiro!
Mas, agora, - cruel preço!
Dos olhos fez duas fontes
E do amor um cativeiro.

Adoeceu gravemente.
Nunca mais saiu à rua,
Sempre a tossir e a sofrer...
E era a mãe que, mendigando,
De porta em porta arranjava
Qualquer coisa p´ra viver.

Hoje, constou-lhe que a Guerra
O chamara para as linhas
Do combate, - e combalida,
Vai ao embarque levar-lhe
No silêncio de um olhar
Os restos da sua vida.


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - VIERAM DIZER-ME






Vieram dizer-me
Que te condóis
Da vida que vou levando
Desde o nosso rompimento?...

Não tenhas pena; -
Sou feliz a cada hora,
E mais, a cada momento!

Acabei. Nada me fica
Na lembrança –
Para que eu no tumulto insondável do amor,
Me possa prender
Ao prazer de lembrar seja o que for.

Cuidavas que eu andaria
Doido à procura de ti
Pelos clubes onde vive
A tua neurastenia –
Quando,
Afinal,
Tão diferente
Me encontras, - hoje, abraçado
Ao desconforto e à ruína
Dessa ilusão
Que apenas doirou de luz
O nosso primeiro dia!?

Agora, -
Entretenho-me com essas
Que a troco de um vil amplexo
Dão-nos o mundo num beijo.

De quantas misérias, quantas?!,
Foi feito o nosso desejo!

Esquece-me. Quero andar
Ao sabor do meu instinto
Cultivado na desgraça.

O amor, -
Deixa um travo, mas passa.

Não tenhas pena.

Do alto do meu aprumo
Desafio a tua verve:

- Para morrer,
Qualquer lugar,
Qualquer corpo,
E qualquer boca me serve.


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - CHORA A AMANTE ESQUECIDA





Chora a amante esquecida,
Chora quem vai barra fora;
- Quem não chorou nesta vida
Se o próprio mar também chora?
Sim; tudo acaba num ai,
Num silêncio, num olhar,
Ou numa lágrima triste!
- Nem já sei se te beijei,
Nem me lembro se me viste...
É isto, apenas. O mais,
É mentira e fantasia...
- Se a vida não fosse choro,
O que é que a vida seria?


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - NEM SEQUER PODIA





Nem sequer podia
Ouvir falar no teu nome.
E se fixava o teu vulto,
Irritava-me, sofria
Por não poder insultar-te...

Chuviscava, anoitecia.
- Uma chuvinha
Impertinente e gelada
Como sorriso de ironia
Numa boca desejada.

Já não sei o que disseste;
Nem me lembro do que eu disse...

A chuva continuava.
Atravessámos um jardim
E à luz fosca
Dum candeeiro,
Segredaste ao meu ouvido:
- Quero entregar-te o meu corpo.
E eu acrescentei: - Pois sim.

A chuva tornou-se densa.
Eu ia todo encharcado.
Por fim, chegámos; entrei...

Um marinheiro descia
Ajeitando a camisola
E compondo os caracóis.
Era uma casa vulgar
Aonde o amor
- Oculto a todos os Sóis
Se dava e prostituía
A troco da real mola.

Arrependi-me. Blasfemei;
Mas quando abandonei os teus braços
Senti que tinha mais alma!

E nunca mais te encontrei.


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - NO SILÊNCIO






No silêncio
Do meu desânimo triste,
Fui quebrando
As últimas ilusões...

Da vida não quero nada.

O que é que a gente constrói
Dando amor ou amizade?

Tranquiliza-te, sei bem:
Eras o único afecto
- Um frágil fio de cambraia
Envolvendo
A mais sólida ilusão –
Que se esvaiu como as outras...

Da vida não quero nada.

De tudo me hei-de esquecer...

E se aperto com dandismo
O nó da minha gravata,
É inda um defeito inútil
- Dos poucos que hei-de manter...


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - ANOITECE DEVAGAR






Anoitece devagar.

No terreiro,
Vão-se os pares
Ajustando para a dança.

- Quem é que baila comigo?

Bailarei eu!,
Grita uma linda Maria
De rosto largo e trigueiro.

E o harmónio
Murmurando,
Dá início ao movimento
Que é todo ligeiro e brando.

Agora –
Apertam-se mais
Os corpos
Nas voltas lentas e bruscas
Da toada musical.

Vá de roda, quem mais ama?
Quem mais quer ao seu benzinho?
Quem mais ama mais padece;
Eu hei-de amar poucachinho.

Ao redor do bailarico
Já se vai juntando gente
Que andava um pouco dispersa;
E a minha linda cachopa,
Balanceada,
Contente,
Parece dada a um sonho...
- Nem eu sei o que ela sente!

Paro. Mas o meu braço descansa
Nas espáduas do meu par..

A noite cobriu
De sombras a natureza.

Ah!, se eu pudesse cantar
- E dar luz aos corações!

Fico a pensar e a olhar...

- Já se acenderam balões!

Foi aquele moço! Aquele
Que traz um cravo na boca
- Escarlate
Como a cinta
Com que ele envolve os quadris.

E a olhá-lo me ponho
Na graça quente e flexível
Dos seus aspectos viris.

Ai, a vida!,
É tão enganosa e fria,
Tão outra da que nós temos,
Que é bem melhor desejá-la
Como coisa que flutua
Para lá da que nós vemos...

Vamos descansar ali...
Deixemos...
- Digo ao par que me acompanha.

E ouvindo a voz do harmónio,
E contemplando
Esvaído
Os pares em desalinho
Sinto a mesma sensação
De ter bebido algum vinho.


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - TARDE NEVOENTA E BAÇA






Tarde nevoenta e baça.

Caem salpicos de chuva,
E há nuvens
Que se atropelam, bailando...

A luz do sol,
Indecisa – muito escassa,
Reflexo de uma lâmina puída,
Cai na planície
Aonde
Eu aguardo o início da corrida.

Cavalos e cavaleiros
Num tropel imponente
De vertigem arriscada,
Aparecem
Lá no fundo...

E a luz,
De repente,
Torna-se um pouco doirada.

A alegria
Daquela
Esplêndida juventude
- Que passa!,
E o ruído seco e surdo
Dos cavalos
Em delírio, galopando,
Dão-me um frémito viril
E uma saudável tristeza.

A chuva surge mais densa;
- Agora,
Com remoinhos,
Granítica, sem leveza,
Encharcando a verde relva
E a multidão
Que persiste
Em ficar
Para ver a apoteose final.

Apesar dos aguaceiros,
E apesar da ventania
Quase cortante,
O garbo gentil e atlético
Dos cavaleiros,
É, nos meus nervos,
Um toque dominador,
Sensualíssimo, vibrante...

Uma gargalhada
Metálica – de mulher,
Retine
Como vidraça quebrada
Por um encontrão brutal.

E o esforço
Que tomo
Para não mostrar aos outros
Meu fundo sentir,
Acaba
Por me tornar
Vencido, pálido, mole.

Saio.
- No ar,
Vive uma réstia de Sol.


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - AFIRMAM QUE A VIDA É BREVE






Afirmam que a vida é breve,
Engano, - a vida é comprida:
Cabe nela amor eterno
E ainda sobeja vida.


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - SÊ JOVEM






Sê jovem,
Jovem, apenas.

Não faças literatura
Nem ponhas o melancólico aspecto
De quem sabe
E se debruça
Nos abismos
Desta pobre humanidade
Tão vil e tão desgraçada!

Sê natural como as rosas
Que rebentaram ali nos canteiros do jardim,
- E sê jovem!,
Mas não queiras ser mais nada
Quando estás ao pé de mim.



JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - NO AMOR






No amor,
Não duvides amor meu, -
Dois tipos de homem
Houve sempre.

E esta verdade
Que é maior que a própria vida,
Só por Ele – vê lá bem!,
Poderá ser desmentida.

- Um,
A contemplar se contenta;
E outro,
Apaixona-se, intervém...


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - BERNARD SHAW DIZ QUE...






Bernard Shaw diz que, na vida,
Tudo convém conhecer.
E eu, de tudo,
Mais ou menos dou notícia.
- Só não sei que sabor tem
A fadiga do prazer.


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - BUSCO A BELEZA NA FORMA





Busco a beleza na forma;
E jamais
Na beleza da intenção
A beleza que perdura.

Só porque o bronze é de boa qualidade
Não se deve
Consagrar uma escultura.


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - SE TUDO QUANTO DISSESTE






Se tudo quanto disseste,
- E foram quatro palavras!
Foi tudo quanto sentiste,
Então...,
Porque estranhas
Que eu fique triste?

Podias ter tido pena –
Desta ilusão
Que era a maior e a mais bela
De quantas pude sentir!
Sim, podias ter mentido,
E era tão fácil mentir!

Tentei beijar-te? – perdoa;
Arranjavas um pretexto:
«Agora, não..., outro dia!...»
E eu ficava-me contente!,
- Se eras tu,
A tua boca, os teus olhos,
- Se eras tu quem me mentia!


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - FAZES-ME PENA DIZENDO






Fazes-me pena dizendo
Que sou culpado
Da vida que tens levado...

Mas vá, responde mais claramente:
Eu sou culpado porquê?
Lá por ter sido o primeiro...
- Bem se vê que és infantil
Meu doido amor de algum dia,
Meu adolescente loiro,
- Corpinho alto
Que eu doidamente mordia!

Fazes-me pena continuando a afirmar;
Porque a vida
É sempre o que nós queremos:
- Não rias,
Nem penses que vou brincar.

E se ela nos surpreende
Às vezes
Com alguma coisa, crê-me:
É unicamente –
Porque a nós mesmos,
Raras vezes,
Afirmamos em verdade
O que em verdade queremos.

Bem se vê que és infantil
Meu doido amor de algum dia,
- Corpinho alto
Que eu doidamente mordia.


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - QUE IMPORTA QUE O MUNDO FALE





Que importa que o mundo fale?
Responde com um sorriso,
- Um sorriso, e nada mais.

Quando alguém
Só por suposições
Afirma
Alguma coisa má de nós
É porque tem a consciência
De que posto no mesmo caso
nele seria uma verdade
O que em nós é aparência.

Um sorriso, - e nada mais:
Sim, faz o mesmo que eu faço.



JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - O MAIS IMPORTANTE NA VIDA






O mais importante na vida
É ser-se criador – criar beleza.

Para isso,
É necessário pressenti-la
Aonde os nossos olhos não a virem.

Eu creio que sonhar o impossível
É como que ouvir a voz de alguma coisa
Que pede existência e que nos chama de longe.

Sim, o mais importante na vida
É ser-se criador.

E para o impossível
Só devemos caminhar de olhos fechados
Como a fé e como o amor.


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - LINDA E LOIRA






Linda e loira,
Como a lua quando nasce
Em tardes de Julho.

A sua boca
Pequenina e recortada,
Era vibrante e discreta
Como a flor da romãzeira.
E os seus olhos, muito vagos,
Como a verem além-mundo,
Assemelhavam dois vales
Com dois lagos de cristal azul ao fundo.

Ao longe, num mar de sangue,
Morre o sol.
E uma aragem muito fria
Faz ondular as palmeiras.

Com damasco precioso
Foi coberto o amplo piso
Guarnecido por mosaicos
E vasos d´oiro lavrado.

Fizeram-se juramentos!
E ela, sorrindo, orgulhosa,
Ergueu-se quase divina!

Soaram palmas, exclamações, e delírios!
- Já ninguém pediu mais vinho!

Baila, baila, minha filha!

- Sim; bailarei como nunca!

E o corpete,
Na dança,
Descai-lhe suavemente
Deixando ver os dois seios,
Pequeninos, volumosos,
Como dois frutos doirados.

Como tu bailas, amor!

Soltam-se os véus; e em redor
Da sua graça,
Da sua carne delgada,
Parecem névoas de seda.

Um grande rubi, soberbo,
Resplandece entre os seus seios
Como se fosse uma estrela!...

Está quase nua!
Mas, continua bailando...

No rosto do rei Tetrarca
Há lágrimas e tristeza.

Agora, baila, pisando
Os brocados que envolveram
O seu corpo de Princesa...

Sobre o seu sexo
brilham duas esmeraldas
De raro fulgor.

E a voz lenta
da bailadeira franzina,
Soa mais lenta, mais longa,
Mais sensual e mais quente:
- Profeta dos olhos negros,
Hás-de ser meu esta noite
Antes da lua surgir!...


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - QUEM É POBRE SEMPRE É POBRE






Quem é pobre sempre é pobre,
Quem é pobre nada tem;
Quem é rico sempre é nobre
E às vezes não é ninguém.
Complicada afirmação
Esta – de ter e não ter!...
- O que importa é ter razão,
Saber amar e sofrer!
Quanto a bens materiais,
Coisas que a sorte nos dá
Ou o trabalho conquista,
É tudo sem consistência:
- Antes a cruel saudade
Que me deu a tua ausência.


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - NÃO É CIÚME O QUE EU TENHO






Não é ciúme o que eu tenho,
É pena;
Uma pena
Que me rasga o coração.

Essa mulher
Nunca pode merecer-te;
Não vive da tua vida,
Nem cabe na ilusão
Da tua sensualidade.
- Mas é bela! Tu afirmas;
E eu respondo que te enganas.

A beleza –
Sempre foi
Um motivo secundário
No corpo que nós amamos;
A beleza não existe
E quando existe não dura.
A beleza –
Não é mais do que o desejo
Fremente que nos sacode...
- O resto, é literatura.

Conheço bem os teus nervos;
Deixaram nódoas de lume
Na minha carne trigueira;
- Esta carne que lembrava
Laivos de luz outonal,
Doirada, sem consistência,
A aproximar-se do fim...

Eu já conheço o teu sexo,
Tu já gostaste de mim!

A frescura do teu beijo
E o poder do teu abraço
- Tudo isso eu devassei...

Não é ciúme o que eu tenho;
Mas quando te vi com ela
- Sem que me vissem, chorei...


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - TENHO A CERTEZA






Tenho a certeza
De que entre nós tudo acabou.
- Não há bem que sempre dure,
E o meu, bem pouco durou.

Não levantes os teus braços
Para de novo cingir
A minha carne de seda;
- Vou deixar-te, vou partir!

E se um dia te lembrares
Dos meus olhos cor de bronze
E do meu corpo franzino,
Acalma
A tua sensualidade
Bebendo vinho e cantando
Os versos que te mandei
naquela tarde cinzenta!

Adeus!
Quem fica sofre, bem sei;
Mas sofre mais quem se ausenta!


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - NÃO. BEIJEMO-NOS, APENAS





Não. Beijemo-nos, apenas,
Nesta agonia da tarde.

Guarda –
Para outro momento,
Teu viril corpo trigueiro.

O meu desejo não arde
E a convivência contigo
Modificou-me – sou outro...

A névoa da noite cai.

Já mal distingo a cor fulva
Dos teus cabelos. – És lindo!

A morte
Devia ser
Uma vaga fantasia!

Dá-me o teu braço: - não ponhas
Esse desmaio na voz.

Sim, beijemo-nos, apenas!,
- Que mais precisamos nós?


JOSÉ MARIA ALVES
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ANTÓNIO BOTTO - ALGUNS POEMAS




António Botto nasceu no ano de 1897 no concelho de Abrantes.
Com 5 anos passa a residir em Alfama e aos 23 escreve “Canções do Sul”. Um ano depois publica a primeira edição de “Canções”. Talvez se possa resumir a sua obra poética ao seu livro “Canções”.
Em 1924, na qualidade de funcionário público, é colocado em Angola, para no ano seguinte regressar a Portugal, tendo tomado posse no Governo Civil de Lisboa.
No ano de 1937 é nomeado escriturário de 2ª classe do Arquivo geral de Registo Criminal e Policial.
Em 1942 foi demitido da função pública – demissão e não aposentação compulsiva, o que não lhe deu direito a qualquer pensão – por factos que foram subsumidos ao conceito indeterminado de “falta de idoneidade moral”.
No ano de 1947, decide partir para o Brasil, tendo falecido no Rio de Janeiro, como consequência de acidente, em 1959.

Entre 1919 e o ano da sua morte, Botto teve intensa actividade literária, realçando-se a sua obra poética.
Fernando Pessoa, um dos seus admiradores, disse que o poeta “é o único português, dos que hoje conhecidamente escrevem, a quem a designação de esteta se pode aplicar sem dissonância”.
O livro “Canções”, é nesta perspectiva, uma obra de carácter intelectual onde quer a forma quer o ritmo foram escrupulosamente estudados, onde a beleza e o prazer dominam numa perspectiva que de metafísica nada tem.

Em louvável atitude, no ano de 2008, as Quasi edições começam a publicar as obras completas do poeta “excomungado”.
Que este “caso mal resolvido da literatura portuguesa”, ocupe o lugar que por mérito próprio lhe pertence, o que apenas se conseguirá com a divulgação da sua excelente obra.



JOSÉ MARIA ALVES
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domingo, 13 de dezembro de 2009

SER-SE NATURAL






Ser-se natural.
Ser como a árvore frondosa
Que no silêncio da tarde
Deixa que lhe tirem os frutos
E abençoa com a sua sombra
Todos os que a procuram.
Como a luz da candeia que ilumina
A igreja e o presídio, o padre e a prostituta,
O santo e o ladrão
Ou a chuva que alimenta e faz crescer
O pão e as ervas daninhas.

Quem me dera que os meus dias
Fossem passados com a paz de uma flor,
Das paredes brancas da casa grande da colina
A afagarem o Sol e a Lua,
Sendo o que sou por sê-lo,
Tal como a flor exala o seu perfume
Sem saber qual o seu odor
E a parede a sua alvura sem saber a sua cor.

sábado, 12 de dezembro de 2009

OSCILLOCOCCINUM - HOMEOPATIA





Matéria Médica baseada em patogenesia clínica (Chavannon, Hui Bom Hoa e Julian)

Medo da tempestade.
Tem necessidade de lavar as mãos com frequência. Evita cumprimentar outras pessoas, por temer o contágio de doenças infecciosas.
É um indivíduo meticuloso, intolerante à desordem.
Ansiedade sem motivo.
Sente-se inquieto, também sem motivo.
Indivíduo que apresenta calafrios e marcada palidez.
Tem ideias obsessivas.

Sensível ao frio, resfria-se com uma enorme facilidade. É também extraordinariamente sensível às mudanças meteorológicas.


Otite aguda – no começo.
Coriza – no começo.
Catarro ocular e nasal. Obstrução nasal. Secreção nasal, que pode ser muco-purulenta.
Sinusite. Dor frontal.

Língua branca.
Estômago inchado.
Arrotos pútridos.

Afonia.
Tosse seca.
Tosse com expectoração muco-purulenta.

Gripe – calafrios, febre, grande fadiga, cefaleia, dores musculares ou dores no corpo generalizadas.
Pode ser utilizado como preventivo, no começo, na fase aguda e na convalescença da gripe. (ver VERBETE » GRIPE)

Úlceras varicosas nas pernas – úlceras antigas que não melhoram com o medicamento indicado (uma dose diária durante cinco semanas)



Melhora pelo calor e pelo repouso.
Agrava com o leite e ovos.


JOSÉ MARIA ALVES
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SÓCRATES - CASAR OU NÃO CASAR...






Conta-se que um artífice ateniense, convencido da superioridade intelectual de Sócrates, lhe terá perguntado:
- Ouve-me Sócrates, amo uma esbelta moça, mas a minha mente mantém-se numa indecisão mortal. Que faço, caso ou assim permaneço, solteiro?
Sócrates, terá dito:
- Faças tu o que fizeres, arrepender-te-ás!

***

O casamento é uma gaiola de pássaros. Os que estão fora querem entrar e os que dentro estão, querem sair.
Talvez o casamento perfeito seja o de uma cega com um surdo.
(Montaigne)


JOSÉ MARIA ALVES
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MADAME DE STAEL - MULHERES BONITAS E MULHERES INTELIGENTES








A baronesa Madame de Stael foi uma das poucas mulheres que se destacou em França, a partir de finais do século XVIII.
Sofreu a influência doutrinária de Rousseau – que com o seu “Emílio” fez com que o metódico Kant se esquecesse do seu passeio das cinco horas da tarde, o que é obviamente notável – e de Voltaire, sendo reconhecida pela sua argúcia e frontalidade.

Num círculo intelectual, em amenas divagações, um jovem letrado questionou-a:
- Porque é que os homens se limitam a preferir as mulheres bonitas, preterindo as inteligentes?
Madame, respondeu:
- Como pode constatar meu bom amigo, homens cegos são poucos, mas parvos, muitos.



JOSÉ MARIA ALVES
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ANAXÁGORAS E A MORTE






Anaxágoras foi um dos filósofos pré-socráticos mais estimado por Aristóteles.
Acusado de impiedade pelos tribunais atenienses e condenado à morte, fugiu para Lâmpsaco onde fundou uma escola de filosofia.
Confrontado por um discípulo com a injustiça da condenação, respondeu:
- Também aos que me condenaram a Natureza condenou à morte.

Quando foi informado da morte prematura de seus filhos, terá dito:
- Quando os gerei, já sabia que eram mortais.

Estando às portas da morte, ausente de sua pátria, colocaram-lhe a questão relativa ao seu desejo de ser sepultado na sua terra natal.
Respondeu:
- Tanto quanto julgo saber, a distância da viagem para a Terra dos Mortos, é igual de todos os lugares.


JOSÉ MARIA ALVES
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ARISTIPO E A INSCRIÇÃO NO SEPULCRO









Aristipo, fundador da Escola Cirenaica, fez tenção que na sua pedra tumular fosse gravada a seguinte frase:
“Aqui repousa quem vos aguarda.”

Na minha lápide, insisto desde já, que se inscreva:
“Aqui jaz, quem mais ver-vos não espera.»


JOSÉ MARIA ALVES
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TALES DE MILETO E A MORTE







Tales afirmava que entre a vida e a morte inexistem diferenças substanciais.
Um outro filósofo, questionou-o:
- Se não existem diferenças entre a morte e a vida, podes suicidar-te. Assim sendo, porque é que não te suicidas?
Tales, com naturalidade, respondeu:
- Por isso mesmo, por não haver diferença!


JOSÉ MARIA ALVES
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ORTEGA E GASSET E OS "DON JUANS"







José Ortega y Gasset, foi talvez, o filósofo espanhol a quem maior importância foi atribuída no século XX – criador do raciovitalismo, doutrina que intenta a conciliação entre razão e vida.
No seu livro “Estudos sobre o Amor”, com manifesta sátira, classificou os homens em três grupos fundamentais:
- os que se acham Don Juans;
- os que julgam que o foram; e
- os que acreditam piamente que o poderiam ter sido, mas não o quiseram ser.


JOSÉ MARIA ALVES
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CHAMFORT E O DILÚVIO






Chamfort, filósofo francês do século XVIII, autor de célebres aforismos e reflexões, transmitiu-nos a célebre frase de um desconhecido misantropo:
«Apenas a inutilidade do primeiro dilúvio impede Deus de enviar um segundo.»


JOSÉ MARIA ALVES
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TALES E A COMPAIXÃO PARA COM AS CRIANÇAS







Certo dia, terão perguntado a Tales, o motivo pelo qual não tinha e não queria ter filhos.
- É verdade que os não tenho e os não quero ter. E, por uma única razão: por compaixão para com as crianças.


JOSÉ MARIA ALVES
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segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

POESIA PARA CRIANÇAS (130) - FERNANDO PESSOA - QUANDO AS CRIANÇAS BRINCAM






Quando as crianças brincam
E eu as oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar

E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.

Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no coração.

FERNANDO PESSOA


JOSÉ MARIA ALVES
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POESIA PARA CRIANÇAS (129) - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN - A PAZ SEM VENCEDOR E SEM VENCIDOS







Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida

Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


JOSÉ MARIA ALVES
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POESIA PARA CRIANÇAS (128) - ADOLFO CASAIS MONTEIRO - VEM, VENTO, VARRE







Vem, vento, varre
sonhos e mortos.
Vem, vento, varre
medos e culpas.
Quer seja dia,
quer faça treva,
varre sem pena,
leva adiante
paz e sossego,
leva contigo
nocturnas preces,
presságios fúnebres,
pávidos rostos
só cobardia.

Que fique apenas
erecto e duro
o tronco estreme
de raiz funda.

Leva a doçura,
se for preciso:
ao canto fundo
basta o que basta.

Vem, vento, varre!

ADOLFO CASAIS MONTEIRO


JOSÉ MARIA ALVES
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POESIA PARA CRIANÇAS (127) - TEIXEIRA DE PASCOAIS - CANÇÃO DE UMA SOMBRA






Ah, se não fosse a névoa da manhã
E a velhinha janela onde me vou
Debruçar, para ouvir a voz das coisas,
Eu não era o que sou.

Se não fosse esta fonte, que chorava,
E como nós cantava e que secou...
E este sol, que eu comungo, de joelhos,
Eu não era o que sou.

Ah, se não fosse este luar, que chama
Os espectros à vida, e se infiltrou,
Como fluido mágico, em meu ser,
Eu não era o que sou.

Ah, se não fosse a noite misteriosa
Que meus olhos de sombra povoou,
E de vozes sombrias meus ouvidos,
Eu não era o que sou.

Sem esta terra funda e fundo rio,
Que ergue as asas e sobe, em claro voo;
Sem estes ermos montes e arvoredos,
Eu não era o que sou.

TEIXEIRA DE PASCOAIS


JOSÉ MARIA ALVES
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POESIA PARA CRIANÇAS (126) - MÁRIO SÁ-CARNEIRO - FIM





Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa
E eu quero por força ir de burro!

MÁRIO SÁ-CARNEIRO


JOSÉ MARIA ALVES
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POESIA PARA CRIANÇAS (125) - FLORBELA ESPANCA - SER POETA







Ser Poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer o que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

FLORBELA ESPANCA


JOSÉ MARIA ALVES
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POESIA PARA CRIANÇAS (124) - MIGUEL TORGA - SANTO E SENHA





Deixem passar quem vai na sua estrada.
Deixem passar
Quem vai cheio de noite e luar.
Deixem passar e não lhe digam nada.

Deixem, que vai apenas
Beber água de Sonho a qualquer fonte;
Ou colher açucenas
A um jardim que ele lá sabe, ali defronte.

Vem da terra de todos, onde mora
E onde volta depois de amanhecer.
Deixem-no pois passar, agora

Que vai cheio de noite e solidão.
Que vai ser
Uma estrela no chão.

MIGUEL TORGA


JOSÉ MARIA ALVES
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POESIA PARA CRIANÇAS (123) - JOSÉ GOMES FERREIRA - VIVAM, APENAS







Vivam, apenas
sejam bons com o sol.
Livres como o vento.
Naturais como as fontes.

Imitem as árvores dos caminhos
que dão flores e frutos
sem complicações.

Mas não queiram convencer os cardos
a transformar os espinhos
em rosas e canções.

E principalmente não pensem na Morte.
Não sofram por causa dos cadáveres
que só são belos
quando se desenham na terra em flores.

Vivam, apenas.
A Morte é para os mortos!

JOSÉ GOMES FERREIRA


JOSÉ MARIA ALVES
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POESIA PARA CRIANÇAS (122) - FLORBELA ESPANCA - QUEM FEZ AO SAPO O LEITO CARMESIM








Quem fez ao sapo o leito carmesim
de rosas desfolhadas à noitinha?
E quem vestiu de monja a andorinha,
e perfumou as sombras do jardim?

Quem cinzelou estrelas no jasmim?
Quem deu esses cabelos de rainha
ao girassol? Quem fez o mar? E a minha
alma a sangrar? Quem me criou a mim?

Quem fez os homens e deu vida aos lobos?
Santa Teresa em místicos arroubos?
Os monstros? E os profetas? E o luar?

Quem nos deu asas para andar de rastros?
Quem nos deu olhos para ver os astros
- Sem nos dar braços para os alcançar?

FLORBELA ESPANCA


JOSÉ MARIA ALVES
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POESIA PARA CRIANÇAS (121) - FERNANDO PESSOA - O SILVA






Morreu o filho do barbeiro,
Uma criança de cinco anos.
Conheço o pai – há um ano inteiro
Que me barbeia e nos falamos.

Quando mo disse, o que em mim há
De coração sofreu assombro
E eu abracei-o, incerto já,
E ele chorou sobre o meu ombro.

Nunca acho uma atitude plana
Na vida estúpida e tranquila;
Mas, meu Deus, sinto a dor humana!
Nunca me tires o senti-la!

FERNANDO PESSOA


JOSÉ MARIA ALVES
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POESIA PARA CRIANÇAS (120) - ANTÓNIO GEDEÃO - POEMA DA AUTO-ESTRADA







Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta
vai na brasa, de lambreta.

Leva calções de pirata,
vermelho de alizarina,
modelando a coxa fina
de impaciente nervura.
Como guache lustroso,
amarelo de indantreno
blusinha de terileno
desfraldada na cintura.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.
Agarrada ao companheiro
na volúpia da escapada
pincha no banco traseiro
em cada volta da estrada.
Grita de medo fingido,
que o receio não é com ela,
mas por amor e cautela
abraça-o pela cintura.
Vai ditosa, e bem segura.

Como um rasgão na paisagem
corta a lambreta afiada,
engole as bermas da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que se enterra.
Tudo foge à sua volta,
o céu, as nuvens, as casas,
e com os bramidos que solta
lembra um demónio com asas.

Na confusão dos sentidos
já nem percebe, Leonor,
se o que lhe chega aos ouvidos
são ecos de amor perdidos
se os rugidos do motor.

Fuge, fuge, Leonoreta
vai na brasa, de lambreta.

ANTÓNIO GEDEÃO


JOSÉ MARIA ALVES
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POESIA PARA CRIANÇAS (119) - MIGUEL TORGA - ARIANE



Ariane é um navio.
Tem mastros, velas e bandeira à proa,
e chegou num dia branco, frio,
a este rio Tejo de Lisboa.

Carregado de Sonho, fundeou
dentro da claridade destas grades...
Cisne de todos que se foi, voltou
só para os olhos de quem tem saudades...

Foram duas fragatas ver quem era
um tal milagre assim: era um navio
que se balança ali à minha espera
entre gaivotas que se dão no rio.

Mas eu é que não pude ainda por meus passos
sair desta prisão em corpo inteiro,
e levantar a âncora, e cair nos braços
de Ariane, o veleiro.

MIGUEL TORGA


JOSÉ MARIA ALVES
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POESIA PARA CRIANÇAS (118) - FERNANDO PESSOA - O MENINO DA SUA MÃE






No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
- Duas, de lado a lado –,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com o olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!
(Agora, que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
“O menino de sua mãe.”

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.

FERNANDO PESSOA


JOSÉ MARIA ALVES
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POESIA PARA CRIANÇAS (117) - CARLOS QUEIROZ - LIBERA ME





Livrai-me, Senhor,
de tudo o que for
vazio de amor.

Que nunca me espere
quem bem me não quer
(homem ou mulher).

Livrai-me também
de quem me detém
e graça não tem.

E mais de quem não
possui nem um grão
de imaginação.

CARLOS QUEIROZ


JOSÉ MARIA ALVES
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POESIA PARA CRIANÇAS (116) - FERNANDO PESSOA - DO SEU LONGÍNQUO REINO COR-DE-ROSA







Do seu longínquo reino cor-de-rosa,
Voando pela noite silenciosa,
A fada das crianças vem, luzindo.
Papoulas a coroam, e, cobrindo
Seu corpo todo, a tornam misteriosa.

À criança que dorme chega leve,
E, pondo-lhe na fronte a mão de neve,
Os seus cabelos de ouro acaricia –
E sonhos lindos, como ninguém teve,
A sentir a criança principia.

E todos os brinquedos se transformam
Em coisas vivas, e um cortejo formam:
Cavalos e soldados e bonecas,
Ursos e pretos, que vêm, vão e tornam,
E palhaços que tocam em rabecas...

E há figuras pequenas e engraçadas
Que brincam e dão saltos e passadas...
Mas vem o dia, e, leve e graciosa,
Pé ante pé, volta a melhor das fadas
Ao seu longínquo reino cor-de-rosa.

FERNANDO PESSOA


JOSÉ MARIA ALVES
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POESIA PARA CRIANÇAS (115) - GOMES LEAL - O VELHO PALÁCIO






Houve outrora um palácio, hoje em ruínas,
Fundado numa rocha, à beira-mar...
Donde se avistam lívidas colinas,
E se ouve o vento nos pinhais pregar.
Houve outrora um palácio, hoje em ruínas...

Nesse triste palácio inabitável,
As janelas sem vidros, contra os ventos,
Batem de noite, em coro miserável,
Lembrando gritos, uivos e lamentos.
Nesse triste palácio inabitável...

Só resta uma varanda solitária,
Onde medra uma flor que bate o norte,
Sacudida de chuva funerária,
Lavada de um luar branco de morte.
Só resta uma varanda solitária...

Como nessa varanda apodrecida
Em minha alma uma flor também vegeta...
Toda a noite dos ventos sacudida,
Íntima, humilde, lírica, secreta,
Como nessa varanda apodrecida...

GOMES LEAL


JOSÉ MARIA ALVES
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POESIA PARA CRIANÇAS (114) - FLORBELA ESPANCA - VOZ QUE SE CALA







Amo as pedras, os astros e o luar
que beija as ervas do atalho escuro,
amo as águas de anil e o doce olhar
dos animais, divinamente puro.

Amo a hera que entende a voz do muro
e dos sapos, o brando tilintar
de cristais que se afagam devagar,
e da minha charneca o rosto duro.

Amo todos os sonhos que se calam
de corações que sentem e não falam,
tudo o que é infinito e pequenino!

Asa que nos protege a todos nós!
soluço imenso, eterno, que é a voz
do nosso grande e mísero Destino!...

FLORBELA ESPANCA


JOSÉ MARIA ALVES
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POESIA PARA CRIANÇAS (113) - LUÍS DE CAMÕES - AO DESCONCERTO DO MUNDO






Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos
E para mais me espantar
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado
Fui mau mas fui castigado.
Assim que, só para mim,
Anda o mundo concertado.

LUÍS DE CAMÕES


JOSÉ MARIA ALVES
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POESIA PARA CRIANÇAS (112) - ANTÓNIO NOBRE - VOU SOBRE O OCEANO







Vou sobre o Oceano (o luar de doce enleva!)
Por este mar de Glória, em plena paz.
Terras de Pátria somem-se na treva,
águas de Portugal ficam, atrás.

Onde vou? Meu fado onde me leva?
António, onde vais tu, doido rapaz?
Não sei. Mas o Vapor, quando se eleva,
lembra o meu coração, na ânsia em que jaz.

Ó Lusitânia que te vais à vela!
Adeus! que eu parto (rezarei por ela)
na minha Nau Catrineta, adeus!

Paquete, meu Paquete, anda ligeiro,
sobe depressa à gávea, Marinheiro,
e grita, França! pelo amor de Deus!

ANTÓNIO NOBRE


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POESIA PARA CRIANÇAS (111) - ALBERTO CAEIRO - O LUAR QUANDO BATE NA RELVA






O luar quando bate na relva
não sei que coisa me lembra...
Lembra-me a voz de criada velha
contando-me contos de fadas.
E como Nossa Senhora vestida de mendiga
andava à noite nas estradas
socorrendo as crianças maltratadas...

Se eu já não posso crer que isso é verdade
para que bate o luar na relva?

ALBERTO CAEIRO


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POESIA PARA CRIANÇAS (110) - CARLOS DE OLIVEIRA - CARTA DA INFÂNCIA







Amigo Luar:

Estou fechado no quarto escuro
e tenho chorado muito.
Quando choro lá fora
ainda posso ver as lágrimas caírem na palma das minhas mãos e brincar
com elas ao orvalho nas flores pela manhã.
Mas aqui é tudo por demais escuro
e eu nem sequer tenho duas estrelas nos meus olhos!
Lembro-me das noites em que me fazem deitar tão cedo e te oiço bater,
chamar e bater, na fresta da minha janela...

Pelo muito que te tenho perdido enquanto durmo
vem agora
(no bico dos pés
para que eles te não sintam lá dentro)
brincar comigo aos presos no segredo
quando se abre a porta de ferro a luz diz:
Bons dias, amigo!

CARLOS DE OLIVEIRA


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POESIA PARA CRIANÇAS (109) - LUIZA NETO JORGE - AS CASAS VIERAM DE NOITE







As casas vieram de noite
De manhã são casas
À noite estendem os braços para o alto
fumegam vão partir

Fecham os olhos
percorrem grandes distâncias
como nuvens ou navios

As casas fluem de noite
sob a maré dos rios

São altamente mais dóceis
que as crianças
Dentro do estuque se fecham
pensativas

Tentam falar bem claro
no silêncio
com sua voz de telhas inclinadas

LUIZA NETO JORGE


JOSÉ MARIA ALVES
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POESIA PARA CRIANÇAS (108) - MACHADO DE ASSIS - FÉ







As orações dos homens
Subam eternamente aos teus ouvidos;
Eternamente aos teus ouvidos soem
Os cânticos da terra.

No turvo mar da vida,
Onde em parceis do crime a alma naufraga,
A derradeira bússola nos seja,
Senhor, tua palavra.

A melhor segurança
Da nossa íntima paz, Senhor, é esta;
Esta luz, que há-de abrir à estância eterna
O fúlgido caminho.

Ah, feliz o que pode,
No extremo adeus às cousas deste mundo,
Quando a alma, despida de vaidade,
Vê quanto vale a terra;

Quando as glórias frias
Que o tempo dá e o mesmo tempo some,
Despida já, os olhos moribundos
Volta às eternas glórias;

Feliz o que nos lábios,
No coração, na mente põe teu nome,
E só por ele cuida entrar cantando
No seio do infinito!

MACHADO DE ASSIS


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POESIA PARA CRIANÇAS (107) - LUÍS DE CAMÕES - SETE ANOS DE PASTOR JACOB SERVIA







Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assim negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida;

começa de servir outros sete anos,
dizendo: - Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida.

LUÍS DE CAMÕES


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POESIA PARA CRIANÇAS (106) - ALEXANDRE O´NEILL - CÃO


Cão passageiro, cão estrito,
cão rasteiro cor de luva amarela,
apara-lápis, fraldiqueiro,
cão liquefeito, cão estafado,
cão de gravata pendente,
cão de orelhas engomadas,
de remexido rabo ausente,
cão ululante, cão coruscante,
cão magro, tétrico, maldito,
a desfazer-se num ganido,
a refazer-se num latido,
cão disparado: cão aqui,
cão além, e sempre cão.

Cão marrado, preso por um fio de cheiro,
cão a esburgar o osso
essencial do dia-a-dia,
cão estouvado de alegria,
cão formal da poesia,
cão-soneto de ão-ão bem martelado,
cão moído de pancada
e condoído do dono,
cão: esfera do sono,
cão de pura invenção, cão prefabricado,
cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,
cão de olhos que afligem,
cão-problema...

Sai depressa, ó cão, deste poema!

ALEXANDRE O´NEILL


JOSÉ MARIA ALVES
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domingo, 6 de dezembro de 2009

POESIA PARA CRIANÇAS (105) - ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO - A VOLTA DA PRIMAVERA







Foi-se a quadra fria!
Os bons dias tornaram!
Olha como adornam
Graças aos rosais!

Olha o mar, que espelho!
Como nadam mansos,
Mergulhando, os gansos
Pelos seus cristais!

Como os grous viajam!
Que áureo sol tão limpo !
Claro o azul do Olimpo
Nuvens já não tem!

Em teus chãos lavrados,
Lavrador, exulta!
A semente oculta
já viçando vem!

O olival rebenta,
Pompa verde e prata!
Pâmpanos desata
Báquico vinhal!

Dentre as folhas novas
Ri na flor a truta!
Vê! repara! escuta!
Festa universal!

ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO


JOSÉ MARIA ALVES
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POESIA PARA CRIANÇAS (104) - VITORINO NEMÉSIO - NATAL CHIQUE






Percorro o dia, que esmorece
Nas ruas cheias de rumor;
Minha alma vã desaparece
Na minha pressa e pouco amor.

Hoje é Natal. Comprei um anjo,
Dos que anunciam no jornal;
Mas houve um etéreo desarranjo
E o efeito em casa saiu mal.

Valeu-me um príncipe esfarrapado
A quem dão coroas no meio disto,
Um moço doente, desanimado...
Só esse pobre me pareceu Cristo.

VITORINO NEMÉSIO


JOSÉ MARIA ALVES
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POESIA PARA CRIANÇAS (103) - MENDES DE CARVALHO - S. ROMÃO







S. Romão é a terra e o mar
o vento o luar a noite total e o sol.
Em S. Romão cada um é rei de si mesmo
e lá os reis a valer não têm qualquer realidade.
Em S. Romão podemos ficar ao sol
podemos perder-nos dentro da noite
podemos não fazer coisíssima nenhuma
podemos erguer um hino à preguiça
podemos ficar budamente de mãos na barriga
podemos ter poesia que não venha nos livros
podemos ter um cão nosso conhecido
sem nunca nos ter sido apresentado
um cão sem coleira que ladra à lua
livremente cão esquecido do fisco.

..........................................................

S. Romão não é porto de abrigo.
Desde já aviso à navegação.
Não há faroleiro os rochedos são perigosos
o mar sem distância é aventura
promessa de peixe
certeza de fome.

MENDES DE CARVALHO


JOSÉ MARIA ALVES
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POESIA PARA CRIANÇAS (102) - JOÃO DE DEUS - A UMA GATINHA







Amas, pobre animal, e tens tu pena?...
Ah! pode na tua alma entrar piedade?
Se pode entrar, eu sei! Negar quem há-de
Amor ao tigre, coração à hiena!

Tudo no mundo sente: o ódio é prémio
Dos condenados só, que esconde inferno.
Tudo no mundo sente: a mão do Eterno
A tudo deu irmão, deu par, deu gémeo.

A mim deu-me esta gata, a mim deu-me isto...
Esta fera, que as unhas encolhendo
Pelos ombros me trepa e vem correndo
Beijar-me... Só não vivo! Amado existo!

JOÃO DE DEUS


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POESIA PARA CRIANÇAS (101) - FERNANDO PESSOA - Ó SINO DA MINHA ALDEIA

Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.

FERNANDO PESSOA


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POESIA PARA CRIANÇAS (100) - ANTÓNIO GEDEÃO - IMPRESSÃO DIGITAL








Os meus olhos são uns olhos.
E é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.

Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.

Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros, gnomos e fadas
num halo resplandecente.

Inútil seguir vizinhos,
que ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.

ANTÓNIO GEDEÃO


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POESIA PARA CRIANÇAS (99) - JOÃO ROIZ DE CASTELO-BRANCO - CANTIGA PARTINDO-SE








Senhora, partem tão tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tão tristes, tão saudosos,
tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes os tristes,
tão fora d´esperar bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

JOÃO ROIZ DE CASTELO-BRANCO


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POESIA PARA CRIANÇAS (98) - LUÍS DE CAMÕES - DESCALÇA VAI PARA A FONTE






Descalça vai para a fonte
Leonor pela verdura;
vai fermosa e não segura.

Leva na cabeça o pote,
o testo nas mãos de prata,
cinta de fina escarlata,
sainho de chamalote;
traz a vasquinha de cote,
mais branca que a neve pura;
vai fermosa e não segura.

Descobre a touca a garganta,
cabelos de ouro o trançado,
fita de cor de encarnado,
tão linda que o mundo espanta;
chove nela graça tanta
que dá graça à fermosura;
vai fermosa e não segura.

LUÍS DE CAMÕES


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POESIA PARA CRIANÇAS (97) - ADRIANO CORREIA DE OLIVEIRA - A FONTE








Era uma vez um fraguedo
No meio da solidão:
Deserto de maldição
Que vê-lo fazia medo!

Nem ave, nem arvoredo,
Nem canto de viração!
Passou Jesus, disse então:
«Porque és tão triste, rochedo?»

«Porque não tenho uma fonte
Que dê luz ao bravo monte
E chame a gente, em sorriso.»

«És bom. Descansa: hás-de tê-la...»
Nasce a água em ar de estrela:
Fez-se a Terra um Paraíso!

ANTÓNIO CORREIA DE OLIVEIRA


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POESIA PARA CRIANÇAS (96) - BULHÃO PATO - AMOR FILIAL







Rompeu a aurora esplêndida:
Soltam as avezinhas
A voz, em doces cânticos,
E as tímidas florinhas
Quão vivo aroma têm!
Em tudo, oh Deus, adoro-te;
Mas onde mais te vejo
É quando, em meigos júbilos
De santo amor, eu beijo
Meu pai e minha mãe!

BULHÃO PATO


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POESIA PARA CRIANÇAS (95) - EUGÉNIO DE ANDRADE - URGENTEMENTE







É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão, crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.

EUGÉNIO DE ANDRADE


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POESIA PARA CRIANÇAS (94) - FERNANDO PESSOA - MAR PORTUGUÊS





Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

FERNANDO PESSOA


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POESIA PARA CRIANÇAS (93) - TOMÁS RIBEIRO - SÚPLICA






Jesus! Se o mundo se agita,
Dai-me descanso, Jesus!
Faz-me grama parasita
Encostada ao pé da cruz.

Faz-me insecto da ramada
Que ninguém vê na amplidão:
Quero, à sombra do meu nada,
Perder-me na solidão.

Faz-me fonte na serra
Que ninguém bebe nem vê:
Tira-me os mimos da terra,
Mas dá-me as crenças e a fé!

Que eu sinta sempre o teu nome
Misturar-se aos prantos meus;
E morra embora de fome,
Mas bendizendo-te, oh Deus!

TOMÁS RIBEIRO


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POESIA PARA CRIANÇAS (92) - ALMEIDA GARRETT - SAUDADES





Leva este ramo, Pepita,
de saudades portuguesas;
é flor nossa, e tão bonita
não na há noutras devesas.

Seu perfume não seduz,
não tem variado matiz,
vive à sombra, foge à luz,
as glórias d´amor não diz;

mas na modesta beleza
de sua melancolia
é tão suave a tristeza,
inspira tal simpatia!...

E tem um dote esta flor
que de outra igual se não diz:
não perde viço ou frescor
quando a tiram da raiz.

Antes mais e mais floresce
com tudo o que as outras mata;
até às vezes mais cresce
na terra que é mais ingrata.

Só tem um cruel senão
que te não devo esconder:
plantada no coração,
toda outra flor faz morrer.

E, se o quebra e despedaça
com as raízes mofinas,
mais ela tem brilho e graça,
é como a flor das ruínas.

Não, Pepita, não ta dou...
Fiz mal em dar-te essa flor,
que eu sei o que me custou
tratá-la com tanto amor.

ALMEIDA GARRETT


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POESIA PARA CRIANÇAS (91) - JOSÉ GOMES FERREIRA - AQUELA NUVEM







Aquela nuvem
parece um cavalo...

Ah! se eu pudesse montá-lo!

Aquela?
Mas já não é um cavalo,
é uma barca à vela.

Não faz mal.
Queria embarcar nela.

Aquela?
Mas já não é um navio,
é uma torre amarela
a vogar no frio
onde encerraram uma donzela.

Não faz mal.
Quero ter asas
para espreitar da janela.

Vá, lancem-me no mar
donde voam as nuvens
para ir numa delas
tomar mil formas
com sabor a sal
- labirinto de sombras e de cisnes
no céu de água-sol-vento-luz concreto e irreal.

JOSÉ GOMES FERREIRA


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POESIA PARA CRIANÇAS (90) - BOCAGE - O PASSARINHO PRESO





Na gaiola empoleirado,
um mimoso passarinho
trinava brandos queixumes
com saudades do seu ninho.

«Nasci para ser escravo
(carpia o cantor plumoso),
não há ninguém neste mundo,
que seja tão desditoso.

Que é do tempo, que eu passava,
ora descantando amores,
ora brincando nos ares,
ora pousando entre flores?

Mal haja a minha imprudência,
mal haja o visco traidor;
um raio, um raio te abrase,
fraudulento caçador!

Em que pequei? Porventura
fiz-te à seara algum mal?
Encetei, mordi teus frutos,
como o daninho pardal?

.........................................

Ah! Se a vossa liberdade
zelosamente guardais,
como sois usurpadores
da liberdade dos mais?

...........................................

Mas ah triste! Ah malfadado!
Para que me queixo em vão?
Que espero, se contra a força
de nada serve a razão?

Aqui parou de cansado
o volátil carpidor;
eis que vê chegar da caça
o seu bárbaro senhor.

Trazia encostado ao ombro
o arcabuz fatal, e horrendo,
e alguns pássaros no cinto,
uns mortos, outros morrendo.

..............................................

O preso vendo a tragédia,
coitadinho, estremeceu,
e de susto, e de piedade
quase os sentidos perdeu.

Mas apenas do soçobro
repentino a si tornou,
cos olhos nos seus finados
estas palavras soltou:

«Entendi que dos viventes
eu era o mais infeliz:
que outros têm pior destino
aquele exemplo me diz.

Da minha sorte j´agora
queixas não torno a fazer:
antes gaiola que um tiro,
antes penar que morrer».

BOCAGE


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POESIA PARA CRIANÇAS (89) - FERNANDO PESSOA - UM POEMA DE NATAL







Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!

FERNANDO PESSOA


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POESIA PARA CRIANÇAS (88) - GONÇALVES CRESPO - TRANSFIGURAÇÃO






Sozinha e ao desamparo ela vivia
Nesse pobre casebre abandonado;
Não conhecera pai nem mãe, doía
Fitar aquele rosto macerado.

Nenhum rapaz esbelto a convidava
Para os descantes da festiva aldeia;
E consigo a mesquinha suspirava:
«Doce Jesus! Porque nasci tão feia?»

Quando a lua no céu azul surgia,
De alvor banhando a múrmura devesa,
No postigo do albergue a sós gemia,
Triste mulher sem viço e sem beleza.

Chamou-a Deus enfim: quando passava
O singelo caixão na triste aldeia,
Melancólico o povo murmurava:
«Vai tão bonita, olhai! E era tão feia!...»

GONÇALVES CRESPO


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POESIA PARA CRIANÇAS (87) - ANTÓNIO NOBRE - LUSITÂNIA NO BAIRRO LATINO







Georges! anda ver meu país de Marinheiros,
O meu país das Naus, de esquadras e de frotas!

Oh as lanchas dos poveiros
A saírem a barra, entre ondas e gaivotas!
Que estranho é!
Fincam o remo na água, até que o remo torça,
À espera da maré,
Que não tarda aí, avista-se lá fora!
E quando a onda vem, fincando-o a toda a força,
Clamam todos à uma: «Agôra! agôra! agôra!»
E a pouco e pouco, as lanchas vão saindo
(Às vezes, sabe Deus, para não mais entrar...)

Que vista admirável! Que lindo! que lindo!
Içam a vela, quando já têm mar:
Dá-lhes o Vento e todas, à porfia,
Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas,
Rosário de velas, que o vento desfia,
A rezar, a rezar, a Ladainha das Lanchas:

Senhora Nagonia!

Olha, acolá!
Que linda vai com seu erro de ortografia...
Quem me dera ir lá!

Senhora Da Guarda!

(Ao leme vai o Mestre Zé da Leonor)
Parece uma gaivota: aponta-lhe a espingarda
Ó caçador!

Senhora d´ajuda!
Ora pro nobis!
Caluda!
Sêmos probes!

Senhor dos ramos!
Istrela do mar!
Cá bamos!

Parecem Nossa Senhora a andar.

Senhora da Luz!

Parece o Farol...

Maim de Jesus!

É tal qual ela, se lhe dá o Sol!

Senhor dos Passos!
Sinhora da Ora!

Águias a voar, pelo mar dentro dos espaços
Parecem ermidas caiadas por fora...

Senhor dos Navegantes!
Senhor de Matuzinhos!

Os mestres ainda são os mesmos dantes:
Lá vai o Bernardo da Silva do Mar,
A mail-os quatro filhinhos,
Vascos da Gama, que andam a ensaiar...

Senhora dos Aflitos!
Mártyr São Sebastião!
Ouvi os nossos gritos!
Deus nos leve pela mão!
Bamos em paz!

Ó lanchas, Deus vos leve pela mão!
Ide em paz!

Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados,
O Jeques, o Pardal, na Nam te perdes,
E das vagas, aos ritmos cadenciados,
As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes
«As armas e os barões assinalados...»

Lá sai a derradeira!
Ainda agarra as que vão na dianteira...
Como ela corre! com que força o Vento a impele:

Bamos com Deus!

Lanchas, ide com Deus! ide e voltai com ele
Por esse mar de Cristo...

Adeus! adeus! adeus!

ANTÓNIO NOBRE


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POESIA PARA CRIANÇAS (86) - ALMEIDA GARRETT - ROSA E LÍRIO






A rosa
é formosa:
bem sei.
Porque lhe chamam – flor
d´amor,
não sei.

A flor,
bem de amor
é o lírio;
tem mel no aroma – dor
na cor
o lírio.

Se o cheiro
é fagueiro
na rosa,
se é de beleza – mor
primor
a rosa.

No lírio
o martírio
que é meu
pintado vejo: - cor
e ardor
é o meu.

A rosa
é formosa,
bem sei...
E será de outros flor
d´amor...
não sei...

ALMEIDA GARRETT


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POESIA PARA CRIANÇAS (85) - ANTÓNIO BOTTO - PALAVRAS DE UM AVESTRUZ TODO GRIS





Arrancam-me as penas
e eu sofro sem dizer nada:
- Sou ave
bem educada.

E, se quisesse,
podia
morder-lhes as mãos morenas,
a esses
que sem piedade
me roubam estas penas que me cobrem;
e, no entanto,
sem o mais breve gemido,
o meu corpo
vai ficando...
Desguarnecido...

E elas,
aquelas
que se enfeitam, doidamente,
com estas penas formosas
- que são minhas!
passam por mim, desdenhosas
em gargalhadas mesquinhas.

Sim; eu sofro sem dizer nada:
- Sou ave
bem educada.

ANTÓNIO BOTTO


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POESIA PARA CRIANÇAS (84) - ALEXANDRE O´NEILL - AMIGO






Mal nos conhecemos
inaugurámos a palavra «amigo».

«Amigo» é um sorriso
de boca em boca,
um olhar bem limpo,
uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
na nossa mão!

..........................................

«Amigo» é o contrário de inimigo!

Amigo é o erro corrigido,
não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.

«Amigo» é a solidão derrotada!

«Amigo» é uma grande tarefa,
um trabalho sem fim,
um espaço útil, um tempo fértil,
«amigo» vai ser, é já uma grande festa!

ALEXANDRE O´NEILL


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POESIA PARA CRIANÇAS (83) - GOMES LEAL - SERENATA DA RAINHA DE KACHMIR






O vestido de noivado
da rainha de Kachmir
era a diamantes bordado,
como luar num terrado!...
Parecia o Céu estrelado,
ou a visão de um faquir,
o vestido de noivado
da rainha de Kachmir.

Se é a Via Láctea, em suma,
não há olhar que destrince!...
Nenhuma vista, nenhuma
jurará se é neve ou pluma,
se é leite, ou astro, ou espuma,
nem o próprio olhar do Lince...
Se é a Via láctea, em suma,
não há olhar que destrince!

Levava, nas mãos patrícias,
leque de rendas e sândalo...
Oh! que mãozinhas... delícias
para amimar com blandícias,
para beijar com carícias,
que adorariam um vândalo...
Levava, nas mãos patrícias,
leque de rendas e sândalo.

Cor de lua, os sapatinhos
eram mais subtis que o leque!...
Seu manto, púrpura e arminhos,
não rojava nos caminhos,
pois sua cauda, aos saltinhos,
levava-a um núbio moleque.
Cor da lua, os sapatinhos
eram mais subtis que o leque!

Eis que, no meio da boda,
entrou um moço estrangeiro...
Calou-se a alegria doida
da grande assembleia, em roda!
E a brilhante sala toda
fitou o jovem romeiro.
Eis que, no meio da boda,
entrou um moço estrangeiro...

Pegou no copo, com graça,
e brindou, em língua estranha...
E a rainha, a vista baça,
como a um punhal que a trespassa,
encheu de prantos a taça
e o seu lenço de Bretanha...
Chorou baixo, ao ouvir, com graça,
esse brinde, em língua estranha!

Encheu de pranto o vestido,
encheu de pranto os anéis...
E, sem soltar um gemido,
chorou, num pranto sumido,
o seu passado perdido,
os seus amores tão fiéis!...
Encheu de pranto o vestido,
encheu de pranto os anéis...

Quem era o moço viajante
que fez turbar a rainha?...
Era o seu primeiro amante,
tão leal e tão constante,
que, do seu reino distante,
brindar ao passado vinha...
Tal era o moço viajante,
que fez turbar a rainha.

Saudades de amor quebrado
fazem lágrimas cair!
Por um brinde ao amor passado,
ficou de pranto alagado
o vestido de noivado
da rainha de Kachmir.
Saudades de amor quebrado
fazem lágrimas cair!...

GOMES LEAL


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POESIA PARA CRIANÇAS (82) - CARLOS QUEIROZ - VARINA






Ó varina, passa,
Passa tu primeiro!
Que és a flor da raça,
A mais séria graça
Do país inteiro.

O teu vulto seja
Sonora fanfarra,
Zimbório de igreja;
Que logo te veja
Quem entra na barra.

Lisboa, esquecida
Que é porto-de-mar,
Sente a sua vida
Reconstituída
Pelo teu andar.

Dá-lhe a tua graça
Clássica e sadia.
Ó varina, passa!
Na noite da raça
Teu pregão faz dia!

Vê que toda a gente
Ao ver-te, sorri.
Não sabe o que sente
Mas fica contente
De olhar para ti.

E sobre o que pensa
Quem te vê passar,
Eterna, suspensa,
Acena a imensa
Presença do mar.

CARLOS QUEIROZ


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POESIA PARA CRIANÇAS (81) - RIBEIRO COUTO - SANTOS



Nasci junto do porto, ouvindo o barulho dos embarques.
Os pesados carretões de café
Sacudiam as ruas, faziam trepidar o meu berço.

Cresci junto do porto, vendo a azáfama dos embarques.
O apito triste dos cargueiros que partiam
Deixava longas ressonâncias na minha rua.

Brinquei de pegador entre os vagões das docas.
Os grãos de café, perdidos no lajedo,
Eram pedrinhas que eu atirava noutros meninos.

As grades de ferro dos armazéns, fechados à noite,
Faziam sonhar (tantas mercadorias!)
E me ensinavam a poesia do comércio.

Sou bem teu filho, ó cidade marítima,
Tenho no sangue o instinto da partida,
O amor dos estrangeiros e das nações.

Ah, não me esqueças nunca, ó cidade marítima,
Que eu te trago comigo, por todos os climas
E o cheiro do café me dá tua presença.

RIBEIRO COUTO


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POESIA PARA CRIANÇAS (80) - FERNANDO PESSOA - O MOSTRENGO






O mostrengo que está no fim do mar
na noite de breu ergueu-se a voar;
à roda da nau voou três vezes
voou três vezes a chiar,
e disse: «Quem é que ousou entrar
nas minhas cavernas que não desvendo,
meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»

«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
três vezes rodou imundo e grosso,
«Quem vem poder o que só eu posso,
que moro onde nunca ninguém me visse
e escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»

Três vezes do leme as mãos ergueu,
três vezes ao leme as reprendeu,
e disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
sou um povo que quer o mar que é teu;
e mais que o mostrengo, que me a alma teme
e roda nas trevas do fim do mundo,
manda a vontade, que me ata ao leme,
de El-Rei D. João Segundo!»

FERNANDO PESSOA


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POESIA PARA CRIANÇAS (79) - PEDRO HOMEM DE MELLO - O BAILADOR DE FANDANGO






Sua canção fora a Gota,
Sua dança fora o Vira.
Chamavam-lhe “o fandangueiro”.
Mas seu nome verdadeiro
Quando bailava, bailava,
Não era nome de cravo,
Nem era nome de rosa.
- Era o de flor, misteriosa,
Que se esfolhava, esfolhava...
E havia um cristal na vista
E havia um cristal no ar
Quando aquele fandanguista
Se demorava a bailar!
E havia um cristal no vento
E havia um cristal no mar.
E havia no pensamento
Uma flor por esfolhar...
Fandangueiro! Fandangueiro?...
(nem sei que nome lhe dar...)
Tinham seus braços erguidos
Nem sei que ignotos sentidos
- leitos de Asa pelo ar...
Quando bailava, bailava,
Não era folha de cravo
Nem era folha de rosa.
Era uma flor, misteriosa,
Que se esfolhava, esfolhava...

Domingos Enes Pereira
Do lugar de Montedor...
(O bailador do Fandango
Era aquele bailador!)
Vinham moças da Areosa
Para com ele bailar...
E vinham moças de Afife
Para com ele bailar.
Então as sombras dos corpos,
Como chamas traiçoeiras,
Entrelaçavam-se e a dança
Cobria o chão de fogueiras...

E as sombras formavam sebe...
O movimento as florira...
O sonho, a noite, o desejo...
Ai! belezas de mentira!
E as sombras entrelaçavam-se...
Os corpos, ninguém sabia
Se eram corpos, se eram sombras,
Se era o amor que se escondia...

PEDRO HOMEM DE MELLO


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POESIA PARA CRIANÇAS (78) - JORGE DE LIMA - VINDE, Ó POBRES







Vinde os possuidores da pobreza
Os que não têm nome no século.
Vinde os homens da contemplação.
Vinde os que têm a língua mudada.
Vinde os forasteiros e vagabundos.
Vinde os homens descalços e os que têm
Os olhos cheios de espantos.
Jesus Cristo – Rei dos Reis
Os vossos pés quer lavar,
O filho do marceneiro
Não vos pode abandonar.

JORGE DE LIMA


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POESIA PARA CRIANÇAS (77) - GOMES LEAL - AS ALDEIAS







Eu gosto das aldeias sossegadas,
com seu aspecto calmo e pastoril,
erguidas nas colinas azuladas...
mais frescas que as manhãs finas de Abril.

Pelas tardes das eiras – como eu gosto
Sentir a sua vida activa e sã!
Vê-las na luz dolente do sol posto,
e nas suaves tintas da manhã!...

As crianças do campo, ao amoroso
calor do dia, folgam seminuas,
e exala-se um sabor misterioso
de agreste solidão das suas ruas.

Alegram as paisagens as crianças,
mais cheias de murmúrios do que um ninho,
e elevam-nos às coisas simples, mansas,
ao fundo, as brancas velas dum moinho.

Pelas noites de Estio, ouvem-se os ralos
zunirem suas notas sibilantes...
e mistura-se o uivar dos cães distantes
com o canto metálico dos galos.

GOMES LEAL


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