Download dos textos de ANTIPOESIA ou a insustentável arte da falsa erudição em –
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se queres aprender a orar
faz-te ao mar
todos sabíamos que aquele navegante perfumado de sal
se deixara há muitos anos no esquecimento das fábulas de proferir orações
mesmo as breves
era um animal marítimo
a morrer todos os dias
nos raios de sol
na espuma branca do vento de sueste
nas vagas aterradoras e ondulantes do fogo nupcial
não se escondia na aura das muralhas impenetráveis onde as palavras transbordam e as mentiras abundam em propícia ladainha
conhecíamos-lhe todos os vícios que o devoravam vivo
queimando-o até à medula
mulheres e vinho
o rum do entardecer
alumiado por fêmeas devoradas na rapina
das horas suaves
os recessos inexplicáveis de uma biografia sem história
a lenda viva dos passos certeiros
à margem das grandes massas de água fosforescente potência desconcertante do medo na camisa rasgada por unhas celestes
por vezes
tão humano como searas de pão
viçoso clarão
da suprema energia
em branda floração
outras
animal em faúlhas
a romper os pulmões das estrelas
a escrever com os dedos de cristal no tabuado do seu velho barco em botão obscenidades e verdades cruentas seladas pelo estilo sóbrio da loucura embalsamada
a melancolia
feroz
do destino
era-lhe alheia
também
o pesadelo
das rugas sulfurosas
decifrava as coisas ocultas
os frutos maduros das aparências
a perfeição dos diamantes ao luar
com a noite chegavam os cios em que se divinizava
com os olhos nas palmas das mãos estriadas pelas escotas de pedra afundava-se na matéria da casa flutuante onde todas as mulheres eram sombras rítmicas e os desejos o cercado inviolável da besta ferida na urgência da dança sísmica dos corpos glorificados
sem razão
poisava a boca
nas formas decadentes
abrindo à sua passagem
a transparência da volúpia
numa humidade tão exacta
como chama a luzir
no horizonte promíscuo do prazer
para que queria ele naqueles momentos em que os astros arrefecem e as luzes ressuscitam na saliva adocicada a razão
o desatino erecto da nudez
abria o portal do covil amoroso
com um estrondo a reluzir
nos espasmos implacáveis
cifrados em mapas antigos
atulhados de praias desertas
orladas por jardins onde
as paisagens foram inscritas
pelo nó das labaredas
em combustão
não dormia respirava as brisas quentes que se esgueiravam pelo tabuado deixando o corpo dormente vacilar na alucinação dos sonhos e na serenidade cravada no beliche encerado pelas artérias explosivas do sono supérfluo
quando as velhas adriças batiam contra o mastro imperturbável num toque rimado
ouvia os pescadores na barra com as suas lanternas e motores ruidosos
como prédios amontoados nas trevas da cidade
indiferente
olhava
as escotilhas
apavoradas
pela negritude
desordenada e
ouvia o balouçar
da água nos ramos
verdes da enseada
afinal
tinha sido sempre o rosto do mar
a mão das nuvens
o coração do sol
o espelho da liberdade e da imprudência o lazer abrasado e confiante
que poderia deus dele querer
quando a ondulação sustinha na crista das vagas a respiração enlutada
ainda sóbrio
sentava-se no bar sobranceiro ao cais
apertando a fronte como numa alucinação
pelos espelhos de vidro suado desfilavam
as cicatrizes dos corpos de mulheres em rebentação
alguns embriagados nas mesas orvalhadas de iluminações insondáveis suspiravam sílabas roucas
nadadores das profundidades feitas frestas no limbo exótico e acabrunhado das crianças mortas por baptizar
àquela hora na igreja matriz
a missa do sétimo dia por alma de seu pai um montanhês tão rigoroso como o gelo da calota polar
tinha chegado do mar
no crânio um grito desfraldado
fazia estremecer a rede oculta
do nome das coisas insensíveis
à dor e à morte
a crepitar nas fornalhas do esquecimento
cruzou os braços e clareou o espaço
com os relâmpagos da harmonia crescente
ele era o seu próprio templo
cristão por baptismo
trocara a igreja
por uma garrafa de rum
a seiva divina
vertida em longos copos raiados
sozinho trocara o seu reino
por um tonel de vinho
o prodígio das bênçãos
cadeias de oiro bravio
a pedra escura no rio
da infância submersa
com ele nobremente trajado
de mão dada pelas lojas
chiques da baixa pombalina
o chiado
a chaga de todo um corpo vazio
a mãe estaria lá negra de carvão vestida os amigos os indecisos a família
lembrariam o nome com outros nomes de forma célere e contínua falariam dos mistérios e em segredo dos dogmas da redenção das coisas de casa sempre com o espírito ausente e algumas lágrimas insulsas nos dedos
seria preciso escalar
as montanhas lunares
reduzir a cinzas
a matéria estelar
destroçar os cometas ameaçadores
para olhar com agrado
a terra carregada de silvedos
entrançados nos maxilares da paixão
entoação salvífica de falsos credos
olhou para dentro de si engolindo um punhado de medo
sentiu a queimadura da alma
o sangue a ferver
e pausadamente
debruçou-se na ordem das ideias frias
tudo lhe parecia coroado por anémonas
membranas e tendões na abertura dos portais da consciência apunhalada com ferocidade por suas próprias mãos
valia-lhe mais estar ali
galvanizado por memórias no pavor dos cantares inebriantes
despejou com deslumbre um outro copo
nele
o poder da criação solitária
da compaixão interna
tesouro esbraseado fundido no recanto mais obscuro do seu castelo
tudo resolvido ou por resolver na ignição côncava das expressões inconscientes da arte de entrar em si
de se amar
e florir fértil num mundo por deus abandonado
sabendo que
a imaginação do poeta
tem de ser
maior do que o universo
mais violenta do que uma noite de núpcias
mais amorosa do que um corpo vestido de vermes
e ao frio tremendo
estar na primeira fila
primazia outorgada
ao valor
desvalido
do agora
assim
consolação da morte
na desgraça possível
do gancho de jade
da flor selvagem
sobre os montes
enobrecidos
versos
verdade das coisas
à beira das margens
do rio negro
onde despes o corpete
e banhas as veias
brancas
com doce mel
cristal a reluzir
à voz do outono
em terras alheias
quadras
a desfazer rosas
enquanto o dia
leva a noite
nas luzes das estrelas
para a orla
da floresta calada
onde as espigas
são aos molhos
na passagem
para outra vida
onde sou
serei
marinheiro
com amor
poeta
não
minha alma é do mar
do oceano sem fim
da glória das vagas
para onde os corvos
voam
e dizem
a vida é o dia de hoje
a vida é o dia de hoje
vida atraiçoada pela memória
costumava sentar-se nas rochas passajadas e batidas por golpes de mar
umas vezes tão terno
floco de neve nas mãos da criança marítima
outras
violento soldado com a mão direita
a tremer o gatilho da morte
só custa matar a primeira vez
a partir daí matar e ver morrer
a quem não se quer é tão normal e arrepiante
como amar corpo que se não conhece
parecia estar cansado da vida dos homens
na marina-passadeira
de pernas
sapatos
roupas de marca
e dos sorrisos elegantes e asnáticos
raramente os olhava
e quando olhava
o seu olhar atravessava carne
vísceras e ossos
fixando-se num além indecifrável
via-o do meu veleiro quando nas noites de luar preparava o aparelho para soltar as amarras da mente na vastidão das águas pintadas de escuro azul
o seu rosto era sempre o mesmo
rugas torneadas pelo sol da angústia leitosa
pouco lhe importava a ferida que o meu pesado patilhão abria no coração do mar fazendo-o sangrar
as minhas velas lembravam-lhe as asas duma gaivota esfomeada
nunca quis partilhar uma viagem ao mar profundo
o seu olhar circular envolvia todos os oceanos com seus cabos tormentosos temporais e calmarias
horn e boa esperança
hoje não o vi
dizem-me que morreu
o último dos navegantes do sonho
reduzido a cinzas
sepultado no horizonte do seu olhar
ouve se me ouves partirei do teu lugar
mas não morrerei em terra
morrerei no mar
e de todos vós que amo e amei
vosso nome a maiúsculas escrito
na areia deixarei
como triste pescador que o nome do amor repete às algas incandescentes
numa nesga de céu
solitária
a polar
aponta-lhe o caminho da amada
queimados os ramos
a cinza espalhada
no corpo amarrotado
nada no porão
da barcaça derramada
nas ondas da manhã
em floração
tivemos um sonho
um homem rasgado ao meio passeava-se em calçada labiríntica
havia veneno no tecto ao entardecer
a estrela da manhã impedia qualquer pensamento
feliz ou contente
o que lhe agradava a ela estrela
porque o silêncio do cosmos não se compraz com ideias cimentadas no chilreio do cérebro
que fechasse os seus botões de algas para que alegre fosse o homem largo de ombros corpo de boi
em bardo de fibras ardentes de teares polidos
a manhã estava serena e tinha os cornos afiados ao sol obsceno
no rosto coroado de desgostos e pecados do dia nascente o cárcere era redondo e alguns dos presos semelhantes a ventoinhas andavam em círculo
não lhes víamos a cabeça apenas o tronco e seus ramos apodrecidos
estavam todos vestidos de azul como quem se veste para a primeira comunhão de grupo e eram anjos de interior supusemos
havia um coral no meio deles que discursava acerca da verdadeira fé
as ondas deslizavam no horizonte vendo-se o topo de um mastro incendiado a bordo de um veleiro fantasma
cercado por montanhas de água paralisadas em quadro neo-realista dum pintor cego
só havia vinho velho e nenhuma mulher
assim não vale a pena sonhar
acordemos então
anoitece em alto mar
eu
sozinho
as velas
as estrelas
tartarugas
golfinhos
um corpo
uma vida
um sonho
no orvalho do convés
é tão triste o desamor
no bolorento poente da vida em passos de mistério escondido
na tarde de oiro palpita vagueando de mão em mão o velho coração de corda
é tão triste envelhecer
a mendigar com o olhar
a visão do amor e do mar
conheci-o descalço
na praia
em verões e invernos
a mesma camisa
aos quadrados
com mil e um rasgões
dormia ao luar
num batel azul
morto na areal
pouco comia
habituara-se a um caldo
frio uma vez ao dia
dizia sonhar com florestas de velas
longínquas infinitas
como o mar
seria tarde
as ondas abraçavam amorosamente as rochas pontiagudas como folhas de navalha
um peixe prateado saltou sem destino
aerador no esplendor do fim de tarde em flor
parecia um sonho transparente de quem cerrava lentamente as pálpebras à realidade fechando o livro de escuma aberto à sua frente
em lume brando
consumo este sentimento
semelhante ao dos deuses
na luz morta do luar
cinza que escorre na palma da mão do corpo suado por águas escuras onde as vozes naufragam depois do exílio em barcas pelo tempo impelidas para as cidades submersas da solidão
voltara a ouvir a voz
clamava na noite dos espectros azulados acompanhada do rufar de mil tambores
não te acorrentes a nada
a âncora é da palamenta a escrava das grades
levanta ferro
para oeste
nunca olhes para trás
o oceano é o teu destino
náufrago errante
o mar
a serra
a mulher
nas páginas abertas do meu coração
plácidas como noites de verão
estão escritos os vossos nomes
ondas ligeiras cruzadas azul ultramarino e espuma alva a adornar o navio
o cume aceso
pinheiro silvestre
alecrim
rosmaninho
cobertos de neve e gelo
a quimera de uma noite morta
ao leme
que a barca orça
a vela rasgada
encharca o vento
de espuma salgada
a vaga varre a proa
sacode as escotas
range o aparelho
cega o timoneiro
ao leme marinheiro
que a morte espreita
deus nos valha
o mar rasgou-se
há rajadas de alegria
na magia incomensurável
provocada pelo firmamento
em movimento circular
as estrelas escrevem poemas
cadáveres esquisitos
orgasmos a residir
na glória do relógio inerte
da casa dos vivos e dos mortos
prémio
ou
castigo
as marés vivas sem nome arrastam para a areia longas cabeleiras entrançadas
brilhantes obscuros de quem ignorou
os auspícios proféticos de mestre antão
para uns santo
para outros charlatão
sentara-se na proa a alisar as barbas malhadas de branco e entrançadas pelo descuido de quem desperta sem querer despertar
uma gaivota esquelética rondava o pontão de sueste em arcos defectivos
com as asas descompassadas na cadência nativa do nascimento da terra
o mar não o via
com a clareza súbita
de predador avezado
ao sangue da superfície
olhos extenuados de tanto olhar
não ousava aterrar
as adriças açoitavam os mastros despidos
madeiro alto de súplica
corroído de sal
ruído de címbalos decadentes desarmónicos a anunciar a missa de fim de tarde
os dias corriam lestos naquela manhã cruenta apeada do seu cargo natural
o sémen esgotado por noites doridas anojadas no leme calejado por mãos de dedos cortantes aceirados pela ferócia das vagas cruzadas
vagas encapeladas dos cabos que resguardara nas navegações sem rumo de agulha de marear fosca e imperscrutável
afastara-se das pontas de terra que penetram as águas
das escarpas das costas até à invisibilidade dos pormenores e dos pontos conspícuos
arredara-se para a segurança das águas profundas que por benevolência aumentam a distância das popas das ondas penteadas em cume de montanha submissa onde o coração pulsa lento e pacífico
longe da rota dos grandes cargueiros
e dos monstros oceânicos
não podia dispor do destino
os seus passos milagrosos no espelho das águas azul-celeste e o ponto marcado na carta amarelecida pelo tempo ignoto e pelo salitre não eram seus
não poderia dispor do acaso
o vento leve e falso fazia abater a embarcação que rolava e que seria o seu catre e esquife
deixava-a ir a correr com o tempo maldito
de nada lhe serviria contraverter o querer do mar arrebatado em fúria
mar-mulher
mar-pai
mar-filho
mar-tudo
sem ansiedade olhava os limites do futuro
a incerteza dos passos marítimos a tocar as nuvens brancas e luminosas das ondas a jorrar
deixou-se embalar pelo movimento enternecedor desfrutando voluptuoso o medo desse momento mágico
sabedoria de azul cromada à deriva
o amanhã poderia ser um túmulo perene nas amorosas águas do largo na bonança do serpeado contraído
e surdo
ouviu-se um acorde de dó maior no corredor escuro da casa grande do embarcadouro
alguém soletrava palavras de versos salgados que ecoavam no horizonte cinzento-pérola
maresia e acórdão entrelaçados em acto de amor
ao fundo da rua estreita via-se o céu carregado de sombras e a lua timidamente a espreitar
uma cantora com uma garrafa de rum ao peito encostara-se ao garrido papel de parede descolorado por alucinações larvares
não se iria deitar sem homem
no ferro-velho do pontão norte encontraria pelo menos um velho mutilado ou um magistrado embriagado
iria beber o licor da volúpia
num qualquer vão de escada
enquanto o mar descansava nos degraus do cais
o mastro da grande toca as nuvens com brandura
nuvens baixas com cabelos de prata ondeados ao vento de leste
o luar varre a vaga
lanternas de mil barcos
em vigília sonora
com velas remendadas tremulando
pôs-se o sol
o frio veio
o medo mistura-se
com o místico prazer
das flores coloridas
que à superfície
toldam o azul nocturno
e a luz cristalina
reflexo áureo da corrente quente das lágrimas de pedra
entregaram-me ontem
de novo
a chave do oceano
há meses que escotas e adriças me não correm pelas mãos calejadas afinando o rumo aos teus seios salpicados de sangue
o mar bate nas costas de ilhas despovoadas que se enchem de pedras negras raiadas roubadas às praias rochosas e desertas
aí vivem fantasmas de marinheiros mortos a entoar em coro a triste canção do velame despedaçado e do tabuado negro à deriva
e à noite
quando as ondas se desfazem em longas cabeleiras nas praias ouvem-se nas canções longínquas os gemidos dos navegantes
ah essa febre que me vem
que me entristece
e incendeia a tarde
que desce sobre o mar
bebe-a tu amiga
faz teus os meus espinhos
as minhas mágoas
meus lamentos e saudades
porque o marfim da tua alma
no alabastro de tua pele
não consente
ferida e desventura
febre ou amargura
cai a noite
a boda vai findando
lentamente
sem música
com a felicidade única do vinho
na rua principal do povoado o silêncio
o mesmo silêncio gelatinoso e sepulcral do campo-santo onde dormem quimeras ósseas de vaidade e da nobreza sem vintém
dói-me o corpo
quebradiço em arco
não há para onde ir
o último navio fantasma
esgueirou-se há séculos
pela fresta da porta de castanho cozida pelos anos doridos da guerra
nele partiram todos os meus sonhos todas as minhas transparências a minha vontade argêntea os meus desejos laminados a ouro
ficou este som de morte
preso por um fio de inócua aranha
a desenhar a flor do mundo
uma espada flamante no bosque bordejado por trilhos insondáveis
fascínio de encantamentos
o outono é a estação por excelência e mérito conveniente à dormência no sossego das folhas cor de fogo
o aroma a sangue dos castanheiros abatia-se sobre o ribeiro das primeiras águas mornas no ardil das lamentações
a arca fechada
adversidade de dama
casada com marido
distante enfadava
mareava incerto em mares dessabidos e
em terra deixara
quem augurava bem entesourada
forte como rochedo convicto
como um deus em panteão fervente
dobram trindades pelos seus taciturnos pecados guardados a sete chaves de prata
pão que comeu
pelo diabo amassado
brame mar
tu que arrastas as folhas soltas
nas marés vivas da morte
ruge mar
às doces estrelas
da madrugada silente
esbraceja
ensanguentado
ao piedoso céu
à vida que ceifaste
pela chama de tuas mãos
no corpo que amava
posso amar-te
mas perdoar-te não
o corpo embrulhara-se nas ondas da costa donde se avistava uma casca de noz
havia mais banhistas praieiros do bronze da aparência
uma velha muito velha
enrugada como ensombro ancestral
toda vestida com chapéu de aço e aspeito de quem está prestes a afogar-se nas areias letíferas da arriba ouvia em rádio de mão o enredo de seu sonho asfixiado em alheia novela
num salto ergue-se um corpo majestoso como esmeralda encastrada em rubi a vagar no espaço
seios descobertos
com gotas cristalinas
ventre arredondado
como arvoredo cuidado
cabelos ondeados
à forma do prazer ajustados
o sorriso aberto de quem
sabe despertar o anelo
adormeci na areia quente exausto
sonhei que te dava
em branco este caderno
ferruginoso onde escrevo
dar-te-ia com ele as mãos do olvido
em desabrigo
as memórias do esquecimento
cor de verbena
assombrada
ao sol claro
de primavera
quimera
de poema solitário
nos versos de ninguém
o mar morreu
já não tem espuma
nem ondas
nem marés
morreram-lhe as lágrimas
salgadas
e este caderno
é teu
os jardins
junto ao oceano
foram invadidos
por uma maresia frenética
pelas raízes
dos corpos
de velhos navegantes
cabelos orçados
ao norte
cariados
nas pedras submersas
abismadas
onde vagueiam cardumes de douradas cantando o silêncio dos túmulos
errantes como gaivotas em noite de temporal desfeito
as ondas crescem
o mar revolto
faixa negra no horizonte
ao leme
ao leme
gente
não há braço que aguente
riza a grande
recolhe a giba
iça o estái
estalam chicotes
na espuma desfeita
a morte espreita
força ao leme
diabo
proa ao vento
prepara a capa
desabam cristas a meio-navio
há mar fora
há mar dentro
medo
orações caladas
balbuciadas
ais ao vento norte
montanhas de água
a desabar no convés
patrão veja a escota ensarilhada
a grande rasgada o estai de viés
que deus nos proteja já vejo a morte
de azul vestida de escuma ornada
no mar sepultaram os náufragos os últimos esboços do livro de bordo
o caderno branco das lembranças registadas ao pôr-do-sol quando a faina descansa
cores quentes diluídas pelo sal
cores agora frias
o bafio da velha embarcação a teca do convés corrompida pela soberania fúngica
as escotilhas deram de si o piloto anónimo veste-se de estopa
no horizonte a ferida astral de um novo continente
rumo e estima na água em que os céus se apoiam e as nuvens se reflectem envergonhadas
não há quem das escarpas não imagine solidamente os vórtices da alma
e a inexactidão do meio-dia solar
a tarde envidraçada na marina esboça gente nas palmeiras porto das aves hirtas que descem da colina petrificada aos pares
um silvo corta os ares ainda por florescer
os relógios pararam
um veleiro apresta-se o rumo da solidão
até às raízes da glória obscura
uma cicatriz na face do patrão é prenúncio de mau tempo
o eco do marulhar entra no coração pelas frestas sanguinolentas
a paisagem cola-se à proa
lá fora o mar chora como criança
o barco avança pelas nuvens em erosão
talvez uma última viagem
perde-se a vista na neblina
parte lento
três nós
enquanto a hora da torre recomeça a contagem do tempo
luzes quero luzes
que descalço caminho
no sol por levantar
onde nem pó
se vê
nem os rios que correm
nas lágrimas de sal
do coração palpitante
acendei
luzeiros
que cego
julgo estar
com a alma
a cavar centelhas
no mar profundo
onde me afundo
pés que na terra não poisam
no caminho perdido
a lua em foice
cheira a antigamente
nas folhas do espelho
pupilas baças
de céu inquieto
a ecoar
o mais suave e luminoso
de todos os perfumes
no jardim devassado
o pescador
num banco de pedra
amor de amar
a barca corre com o tempo
leme de rugas a marulhar
o pescador de corações
morre lentamente
nas redes do mar
o fogo estrangulado pelas dunas desenha o teu corpo no regresso dos navios que irrompem pelas cristas da sonoridade oceânica
os gritos fecundos das águas em ruínas inclinam-se às praias desertas e orvalhadas
as janelas abrem-se a cada sonho que se acende na imensidão das sílabas húmidas
na sonolência o teatro da vida tomba nos escombros
ossos de guerra milenar do passado
mudar tudo
colocar andaimes nos pisos do coração ferruginoso
infectar os olhos de espelhos fotográficos
não tenho fome
não tenho sede
há um susto na noite que consome o tempo
o lado escuro das vozes das embarcações solitárias
o tejo canta no silêncio a crueldade do frio marítimo
os corpos dos pescadores são a paciência da peste sideral
os deuses estão exaustos
palpáveis e luminosos como convém à invenção da fadiga e do desespero
abandono tudo
olho-me metamorfoseado
contaminado pelo sangue espesso do calendário
logo pode ser tarde
os dias descalçam as paisagens
e abafam os luzeiros da criação
conheço bem a liturgia das horas salgadas e a imensidão do deserto que cresce a cada passo na fulguração dos relâmpagos inquietos
voltar atrás
sonhei que estava de volta à cidade das épocas mortas com as suas danças e ânforas de vinho novo
as festas de verão nas ruas
coretos de raparigas nuas
voltar atrás
amorável generoso e recto
com o perdão nas palmas das mãos
indiferente ao desejo e à aversão
os passos luminosos a penetrarem aparências e o coração vitorioso como um longo poema que fala de si no rebuliço dos dias isentos das enfermidades enviesadas
a tua etérea presença repleta de múltiplas flores nas faces rosadas
o puro canto do sabor dos nossos beijos nas alças do destino vindo do mar
a maresia pacífica da tua presença a permanecer na vida colhendo as lágrimas do desalento e da injustiça
os meus erros
meus pecados
voltar atrás
límpido como os cumes nevados das mais altas montanhas num passado violentado
no jardim de inverno a sedução da sarça ardente e dos grupos sangrentos de antigos gladiadores e das mulheres obesas dos pintores de outrora expulsos na rebelião dos portos atlânticos
os pulsos cortados
os ventres vazios
o matagal desbastado
a ilha deserta
mares que não foram navegados
florestas incendiadas
derrubadas as árvores de grande porte
restar-nos-á
o consolo da morte nas cinzas das rosas
***
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