Download dos textos de ANTIPOESIA ou a insustentável arte da falsa erudição em –
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a omar khayyam
o que de omar khayyam é
hoje pó
e aqui o teu próprio pó plagiado que te importa a ti o cardanho de tuas palavras-mortas
a poeira das ideias dispersas na terra-dos-defuntos que aproveito nesta lengalenga sem nexo
a poesia é a loucura de pequeno homem que quer aparecer aos olhos do mundo como grandioso
todos os que te conheceram
- porventura mal -
sabem que jamais rumorejaste súplicas aos ouvidos das deidades que foste sempre consentâneo nos teus actos eu não irra alienado
mudo a cada dia
porque se não mudasse não seria eu
seria uma coisa
- mas se até as coisas mudam -
de mim essa desusada súcia de línguas peçonhentas do velho bairro sabem ou pensam saber se é que pensam e quando pensam que nunca calei a minha libertinagem e os meus mais terríficos estorvos nem os mais infames desejos nem impiedades nem os intensos apetites tão devastadores e opressivos como tempestades desfeitas no equador dos navegadores dementes eles os maiores canalhas-ordinários cerram os olhos como a puta da justiça e julgam os outros à sua imagem com a espada da penúria mental que não mata nem dá vida
estou enfadado das suas energias moribundas e das suas carnes flácidas
eu sim eu tal como tu por vezes indulgente quando o não devia ser e afável numa elegância adestrada outras animal sem tino sem propósito e sem razão também não estou certo se permanece uma magistratura sagrada ou comiseração olímpica
- piedade senhor que não sei em que confiar -
quer existam ou não busco a pacificação dos íntegros e dos imerecidos confiado e desapaixonado porque sempre fui legítimo apesar de desacautelado
sento-me na venda da aldeia com um copo à minha frente e de olhos postos no vazio desço às negras profundidades da minha consciência acendem-se ténues velas nas sombrias criptas do passado
fantasmas decrépitos pululam na algazarra da mente pertinaz há uma opacidade e um fedor a carne pútrida nas galerias subterrâneas que se movimenta nos ossos do passado minando o presente
o sino toca a beatério chegam mortificadas as viúvas enroladas em mantilhas e as virgens desassossegadas sorriem aconchegadas aos velhorros nas suas farpelas desusadas
começam os cânticos santos deuses que dissonância esganiçada orquestrada pelas mãos esvoaçantes em meneio-larilas do cura da paróquia e toda aquela inveja que atinge os corpos juvenis corrói a atmosfera putas das velhas-sem-serventia
prostrado num templo o pensamento bolorento e a alma distante
- mas isso foi antigamente -
hoje pouco me preocupa saber se os deuses existem ou não
- porque sei que nunca o saberei -
e se no seu querer que destinação me reservam se é que para mim algo guardam ou amparam
não há profetas do futuro os profetas pertencem todos ao passado
o conhecimento verdadeiro é e será sempre uma ilusão esquece não te apoquentes a atingir o que transcende terras mares e céus
não me vou agoniar com pensamentos nublosos tal como tu não te atormentaste com as tuas perplexidades pelo menos por agora
mas não posso deixar de ser compassivo para com os que se inebriam de vinho puro e meretrizes nas vielas da perdição deixemos nos bolsos esfarrapados a maledicência porque também nós feitos de pó e cinza temos imperfeições não me posso queixar de mim mesmo seria estultícia contra natura
no entanto se pensarmos nos pobres nos deserdados nos que com frio tremem em todos os infelizes que em abundância gemem nos que à fome morrem nos sem voz sentiremos a felicidade a paz e a tranquilidade baterem-nos à porta com a doçura de quem nada procura porque procurar é pura louquice
- não não digas que com o mal dos outros podes tu bem –
se és sensato não semeies o sofrimento domina-te sempre controla-te e a cada momento não te abandones à ira à cólera e à vingança se queres ter um espírito de paz e um corpo harmonioso
sorri então ao destino que te fere mas não firas ninguém que à espada morre quem com espada mata não comandes nem te deixes comandar e só trabalhes se fores obrigado a trabalhar
- o trabalho é uma das estúpidas invenções do homem –
e tu jovem sem feitor bebe e ama até que mais não sejas capaz antes que seja tarde
o tempo é cruel
- quantas vezes o não disse já está a transformar-se numa obsessão –
faz por seres feliz hoje o que é que te trará o dia de amanhã alegria ou tristeza calmaria ou borrasca vida ou morte
goza e agarra uma garrafa de nobre vinho o colo de uma mulher senta-te à luz da lua e bebe pensando que amanhã talvez seja em vão que o sol te procure
antes de morreres mata o tédio para que possas viver os últimos dias com placidez as paixões ausentam-se os membros fraquejam o cérebro definha e tu velho insensato continuas a acumular oiro e prata como se ainda te sobrasse tempo para o usar de nada te serve seres como os outros homens
burros de carga que de quando em vez lêem a bíblia o corão o guitá
livros que o pensamento sagrou
mas quantos se deleitam diariamente com a sua leitura quantos cumprem os seus decretos quantos cristãos conhecem os evangelhos as palavras de jesus
são religiosos que às ocultas saciam os seus mais desprezíveis desejos cristãos-de-ocasião e outros que tais padrecos cheios de filhos dos outros bispos da opus gay patriarcas que se urinam nos paramentos
neste mundo de todos-os-demónios resta a piedade dos homens para consigo mesmos não o esqueças
nos bordos de todos os copos repletos de vinho nas bordaduras dos lábios das mais belas donzelas triunfa esculpida uma secreta verdade a todos dada a saborear muito poucos a gozam um num milhão
o vinho é o nosso tesouro os bares os nossos palácios e mansões esqueçamos as lições de moral propaladas por pedófilos e ladrões
pertencemos à copus night repito à copus night à noite verdadeira dos despretensiosos
graças aos deuses
a sede e embriaguez são os nossos fiéis condiscípulos e o doce hálito das mulheres a mágica poção que nos faz viver e reviver em cada instante
ignoramos o medo e as inquietações porque sabemos que os nossos corações os nossos cálices e nossas roupas manchadas nada têm a temer do pó da água e do fogo
não há céu que nos reprove os deuses estão narcotizados desvendaram que não são imortais
neste mundo infernal dá-te por contente com raros amigos a treta da amizade se fores um homem de sucesso um dos ricos ou poderosos quantos amigos te louvarão sem inveja que amigos tens tu afinal quadrúpede das tuas ilusões e avidez e tu pobre homem quem te recebe no tapete persa da sala de visitas
ninguém não inspires pois a mesma simpatia que alguém te inspirou escolhe atento os que te hão-de acompanhar e se alguém tiveres para amar aprende a ser isento e esquivo
antes de apertar a mão a um homem pensa se ela não te ferirá um dia a amizade não se compra com tostões
antes de beijares uma mulher certifica-te que não serás seu escravo o amor por vezes sim esse mercadeia-se
somos pó não te esqueças nunca disso
esta jarra esmaltada foi em tempos idos um pobre amante que sofria cativo o desdém altivo de uma moça
as asas da jarra eram o braço que rodeava o alvo pescoço da sua benquista que por tudo e por nada o escorraçava
como é pobre vil e doente o coração que não sabe amar que não se embriaga de amor
melancolia horrenda da solidão de um corpo plangente nu e só no esplendor da noite
se no mundo há gente que não ama certamente não entende na ausência do amar a palavra deslumbrante do sol e a leve doçura do luar belo a deslizar a perder de ver pelo verde vale do prazer
vale fulgurante de mil e uma noites
a minha juventude regressa hoje com o vigor das giestas amarelas a anunciar a primavera com todas as suas flores serve-me vinho minha amante vinho cor de rubi vinho de todas as cores vinho ardente vinho vinho novo velho vinho vinho não sou exigente não importa qual quero vinho urgente e um beijo candente talvez até a melhor colheita me pareça tão acre como a vida maltratada e pela dor pisada
não sei o que será o meu amanhã e tu terás algum poder sobre o teu destino imbecil tolo criatura frágil e inquieta por que te amedronta o porvir por que tens medo do que há-de vir
julgas-te sábio um entendido que sabes tu asno
goza o momento goza o presente porque o futuro é como quem mente que te pode trazer o futuro alegria ou sofrimento
quem o sabe e se o sabe nunca to dirá seguramente
manténs a esperança sempre a esperança de que o amanhã será diferente de hoje hoje não sei amanhã saberei o tempo sempre o tempo nos teus projectos
enquanto aqui está a estação inefável eis a estação da fé em que almas sedentas de outras almas procuram uma quietude perfumada
cada flor será por acaso a excelsa mão branca de moisés
cada brisa será por ventura o leve hálito de jesus que todos aclamam e ninguém segue
pelo caminho oblíquo e seguro não vai o justo nem o iníquo não vai o homem que o fruto da verdade não colheu
se porventura o colher da árvore da ciência ouve ele sabe que os dias passados e os dias que estão para vir em nada se distinguem do infeliz primeiro dia da criação
e ainda há o paraíso e o inferno sinto-me perdido
poderei abarrotar de pedras o oceano porque faço eu o que não devo
sinto desprezo por ateus e antipatia pelos devotos há por aí quem me certifique de que irei para o céu ou de que para o inferno na morte partirei
o que é o inferno e o céu conheces alguém que tenha visitado essas regiões misteriosas e incompreensíveis se há que nos diga se não que se cale
- quem fala não sabe e quem sabe não fala –
vou sentar-me e beber beber até morrer
para lá dos limites da terra para lá dos limites do infinito procurava eu o céu e o inferno e nada vi uma voz séria e avisada murmurou o céu e o inferno estão em ti
as delícias do amor e do pensamento arroubado os orgasmos ao luar o aroma dos seios alvos e o suave toque de longos cabelos no meu peito eis o céu a terrível constatação de que para além desta vida está o nada o nada sem remissão vácuo da perdição eis o inferno
já nada me preocupa nada me afecta ergue-te e dá-me vinho o néctar dos deuses
a tua boca esta noite como de outras vezes é a rosa mais formosa do céu e da terra serve-me vinho rubro como o teu rosto a tornar leve e ligeiro o meu arrependimento e alados os meus remorsos
como leves são os teus sorrisos a aragem da primavera refresca e aviva o corpo das rosas e na sombra anilada do horto acaricia o teu rosto
na plenitude que vivemos esqueço o nosso passado tão sedutora é a amorosa doçura do agora
e eu aqui simplesmente aqui
fugazes são os nossos dias correm velozes como a água dos rios e os ventos secos do deserto
dois dias me deixam indiferente o ontem que morreu e que já sepultei e o amanhã que ainda não nasceu e que não sei se e como o viverei
tenho algumas lembranças não as deveria ter viver o instante apenas
ser ser apenas sem querer nada ser
quando nasci não celebro o que não recordo
não lembro o que lembra minha mãe
quando morrerei não sei
ninguém memora o dia do seu nascimento nem está apto a augurar a hora do seu decesso
vem ó doce amante quero deslembrar no embriagamento a dor da nossa ignorância e do nosso padecimento
caí no fogo da dor da angústia existencial e vou ser convertido em cinzas imortais
o anjo da morte cortou o cordão umbilical e o fenecimento ofereceu a sua glória por uma cantiga
por que me angustiam os meus muitos pecados não será inútil a minha melancolia e a discórdia interior
que existe depois da morte o nada ou a piedade
vá homem vive em paz
não há conhecimento perfeito não mergulhes nas páginas de livros que te oferecem a salvação não há livros sagrados é tudo pura invenção de espíritos amedrontados
nos mosteiros nas igrejas nas sinagogas e mesquitas refugiam-se os débeis temerosos do inferno crentes na ressurreição ou reencarnação
quem experimentou o poder da verdade não cultiva no seu coração as funestas sementes do medo da súplica do terror e da oração
se te acreditas na ressurreição dos mortos porque temes a morte segues jesus e se ressuscitares para glória do pai irás ao encontro dos que partiram antes de ti e ficarás a aguardar pelos que te irão seguir sem que tenhas de descer aos infernos como ele desceu antes de subir aos céus então o que temes tu falso-cristão que nem a doutrina conheces
tenho saudades não as deveria ter mas tenho e na primavera costumo sentar-me à sombra de uma árvore frondosa junto a um campo de flores silvestres
quando esbelta moça me oferece húmido e rosado seu cálice de vinho e amor não quero saber da minha saúde nem me preocupa a salvação em boa verdade seria menos que um cão se estivesse com tal apreensão
o mundo interminável um grão de poeira no vazio
toda a ciência e saber que o homem acumulou palavras
as gentes os animais e as flores dos sete climas sombras
a tua contínua meditação nada
mesmo que acredites ter solucionado o mistério da criação diz-me qual será o teu destino
mesmo que dês por garantido ter desnudado a verdade de todos os seus véus diz-me será que conheces o porvir
mesmo que admitas a felicidade de ter vivido durante cem anos e que outros cem anos te aguardam diz-me mas será que conheces o teu fim
capacita-te de que um dia um qualquer dia a tua alma vazia abandonará o corpo e serás arrastado por um véu flutuante entre o conhecido e o desconhecido
enquanto esperas sê feliz bebe ama não sabes donde vens nem para onde vais saberás pelo menos quem és
pensas ter em ti a imensa sabedoria do mundo
aqueles que se julgam doutores do conhecimento não passam de asnos vendados iludidos por palavras e visões falsas aqueles que temos por maiores sages sábios filósofos caíram no abismo da ignorância no entanto esses brilhantes opacos foram as lanternas de referência das suas épocas jazentes
mas afinal que fizeram essas sumidades
pronunciaram algumas frases esotéricas escreveram alguns textos obscuros deitaram-se e adormeceram para sempre
entretanto o coração disse-me quero saber quero aprender ensina-me tu que tanto estudaste que mergulhaste em livros aos milhares
disse eu a primeira letra e o meu espírito respondeu-me
sei olha o um é o primeiro do número que nunca acaba o que nunca começou nem acaba
os mistérios ah os mistérios mistérios
ninguém os pode entender como também ninguém é capaz de ver o que se oculta por detrás das aparências os nossos sentidos são tão limitados e as nossas moradas temporárias excepto a derradeira na terra que nos há-de comer
bebe vinho e ama basta de palavras inúteis em lodaçal escritas
a vida é um jogo insípido com dois prémios certos dor e morte
feliz a criança que morreu ao nascimento mais feliz ainda aquele que não chegou a nascer
na feira que atravessas no teatro da vida não intentes encontrar amigo tão pouco busques refúgio ou porto seguro
aceita a dor com alento sem a esperança de um bálsamo que não existe
sorri à adversidade não peças nem impeças ninguém que sorria para ti pois estarás a desperdiçar o teu tempo
que a roda da fortuna gire gire e volte a girar que rode sem parar sem esperar pelo juízo dos sábios
abdica de contar os astros que pelo céu sem fim se amplificam
medita nesta certeza enquanto vives hás-de morrer não voltarás a sonhar
os cães vadios devorarão o teu corpo ou então a cada hora serão os muitos vermes da sepultura
o sono profundo é uma morte transitória estava com sono e a sabedoria disse-me as rosas da felicidade nunca perfumaram nem nunca irão perfumar o sono de ninguém
em vez de te abandonares a este irmão da morte bebe vinho e ama tens para dormir a eternidade porque o sono é uma morte temporária e a morte um sono para sempre prolongado
os novos cientistas querem demonstrar a existência de um criador de uma alma imortal conhecer os pensamentos de deus quânticos brutificados maníacos das teorias de tudo
o criador do céu e da terra ultrapassou-se displicente quando criou a dor e a insuflou em toda esta gente por isso não existe ou estava doente
lábios como rubis cabelos perfumados rostos perfeitos de outrora quantos sois vós na terra onde estais ides envelhecer e a vossa face ao espelho será a de um mostrengo de rugas arruinado
não consigo contemplar o céu tenho os olhos minados de lágrimas
aprazíveis centelhas são os fogos do inferno confrontados com as chamas que me corroem
o paraíso para mim não é mais do que um instante um agora de prazer e paz
sonho e sono sobre a terra sono debaixo da terra
sobre a terra e por baixo da terra corpos que jazem
para onde quer que vá onde quer que fique
o nada um deserto de nada
homens que chegam homens que se vão que partem para a terra do nada antigo mundo atravessado a galope pelo cavalo branco do dia pelo cavalo negro da noite és o palácio triste onde cem reis e imperadores sonharam com a glória e cem príncipes o amor almejaram e todos amanheceram no seio da mais intensa dor e no meio do maior pranto
o vento que veio do sul secou a esplêndida rosa para quem o rouxinol cantava
devemos orar pela sua morte ou por nós
quando a morte secar os nossos corpos outras flores estarão para vir irão nascer e alegremente hão-de sorrir
não te deixes comprar por comissões celestes abdica da recompensa que ontem merecias e que te não foi concedida sê feliz ama
não deplores seja o que for e que o teu coração a nada se prenda
tudo o que te há-de acontecer está escrito no livro escrito no alfabeto da verdade folheado pelo vento e soprado pela eternidade
chega deixa de vender ou comprar felicidade ao peso
quando vos ouço falar da felicidade que é pertença dos eleitos limito-me a dizer-vos eu só confio no vinho e nos lábios da minha amante
quero metal sonante e não quero vãs promessas
- o ribombar do tambor só apraz à distância –
e liberto dos grilhões do medo e da dor do além bebe o teu vinho beija a tua amante
único caminho
só há um caminho para a vida eterna
o vinho e o amor vão doar-te a juventude perdida
divina a estação que perdura das rosas do vinho do amor da amizade pura
goza o momento que te escapa e que é a tua vida nas férias que a morte te dá
bebe vinho e ama estima os amigos sinceros
muito tempo terás para dormir sepultado sem vinho sem mulher sem amigo sem amar
ouve este segredo que do coração te confio as túlipas fanadas nunca irão ressuscitar
ah a argila cochicha ao oleiro lembra-te homem que és hoje como eu fui não tornes a violar o que já violaste cuida de mim não me maltrates
e tu oleiro se és assisado não magoes a argila com que adão foi modelado olha que tens sobre a roda a mão de rei ou o coração de príncipes
que fazes homem é certo que a papoila colhe a sua cor púrpura do sangue de um rei morto a violeta nasce da excelsa beleza da face de um adolescente
séculos e séculos perdem-se nos tempos enquanto se sucedem auroras e crepúsculos e os astros caminham pelos céus
cuida da terra que pisas que cavas para semear pode ser pode acontecer que o torrão que vais sangrar para deitar a semente tenha sido outrora o olho lânguido de um adolescente
também um narciso na margem do ribeiro oscila ao sabor da brisa não brotarão as suas raízes dos lábios de uma mulher
que os nossos passos sejam leves acariciando a erva tenra e frágil que cresce viçosa no lameiro nascente de flores variadas
talvez tenha nascido das cinzas de belos rostos onde já vingou a claridade das túlipas encarnadas
ontem um oleiro laborava na sua roda modelava um cântaro e o que modelava eram crânios de nobres e mãos de mendigos sem distinção bem e mal combatem pela primazia neste planeta de lobos e predadores ladrões e mentirosos criminosos políticos nojentos e manhosos
o céu não é responsável pela celebridade desgraça ou felicidade que o destino nos reserva
não lhe agradeças nem o condenes vás por onde fores já que nada ou ninguém se preocupa com as tuas míseras alegrias ou com as mais terríveis das tuas dores
se lavrado o teu coração o semeaste diligente com a semente do amor então não viveste inutilmente se procuraste ouvir atento a voz dos deuses e a guardaste no teu pensamento não foi inútil o teu viver como o não foi se sorrindo e amando ergueste a tua taça de vinho em homenagem ao prazer
age com prudência caminhante arriscado é teu caminho e afiada a espada do destino espada que mata e espada que dá a vida mas evita as amêndoas doces da orla das estradas têm veneno as danadas
um jardim uma jovem esbelta uma bilha de vinho meu anseio meu azedume meu paraíso e meu inferno
mas alguém terá havido a quem foi dado conhecer o céu ou o inferno
tu cuja face obscurece as rosas do campo tu cujo rosto parece um ídolo chinês sabes por mero acaso que o teu olhar malhado a veludo bordado na flor de uma vinha transformou o rei do mundo no bispo vicioso que no jogo de xadrez foge da rainha
a vida vai-se esgotando que resta das antigas cidades
o mais pequeno dos toques é letal para a rosa que pela manhã vai desabrochando
bebe vinho ama abraça paixões contempla a lua que tantas civilizações viu nascer e morrer e há-de ver
caminhamos para a extinção quer queiramos quer não
oh a voz da sabedoria diz-me dia após dia minuto a minuto por que a vida é tão breve
não me assemelho às plantas que podadas voltam a reverdecer quando morrer nem raízes nem sementes me farão reviver
retóricos filósofos sábios silentes morreram e não se entenderam sobre a essência do ser e do não-ser
incomoda-te assim tanto que te chamem ignorante paciência continua a saborear os melhores vinhos os lábios mais belos esquece se pecas os pecadores esses sabedores que se confortem com as suas mãos e com uvas secas
o meu nascimento nada trouxe de diferente nenhum bem ou mal ao mundo a mim indiferente
a minha morte não abreviará o seu tempo não diminuirá o seu brilho nem o seu tamanho
não há ninguém em toda esta multidão que me elucide por que vim para que vim porque terei de partir sem que de alguém o peça ou requeira
tombaremos pela vereda do amor o destino irá esmagar-nos
oh bela oh virgem oh cálice encantado oh agrado dos meus sentidos
levantai-vos
dá-me a chama dos teu lábios dá-me o teu líquido inviolado antes que o fim de tudo venha sem ser esperado e me transforme em nada
à felicidade só lhe conhecemos o nome um rótulo numa jarra opaca
o meu amigo mais velho é o vinho novo
acarinha com os olhos e com os dedos das mãos aquilo que falta nos faz e que nunca nos burla a jarra transbordante do sangue do vinhal
a cidade é agora refúgio de gazelas leões deambulam pelos jardins onde antes músicos tocavam árias melodiosas tudo dorme num outeiro onde pastam burros domésticos
não busques cego a felicidade a vida é breve como um suspiro
as cinzas de reis e príncipes condes e marquesas voam no redemoinho vermelho que contemplas
os governantes apodrecem nas catacumbas da mentira do roubo e do vício e os ricos e poderosos apodrecem nos jazigos dos ossos cariados libertam-se faixas de carne putrefeita
o universo é um sonho a vida é um sonho
senta-te e bebe goza a felicidade que ao rico não foi concedida
bebe ele amealha
ama ele trabalha
escuta os alaúdes dos amantes que na sua harmonia e melodia são os exactos salmos de david
não te entranhes no passado não fiques ansioso com o futuro
que os teus pensamentos o teu lucro esteja sempre presente no eterno agora na eternidade enquanto a ambição para ti jaz na tumba dos dementes
este é o segredo da paz
medíocres acanhados e orgulhosos estabelecem entre o corpo e a alma diferenças que não entendo
eu só vos posso dizer que o vinho faz findar o medo e nos dá a tranquilidade perfeita e que amar nos dá felicidade como consequência da ausência do pensamento o que é meditação e contentamento
que mistério é esse o do movimento dos astros que giram e giram no espaço sem fim que mistério
agarra-te com força à corda da sabedoria e vive o teu dia beija os lábios da moça que com seu perfume te inebria bebe do vinho da alegria e podes estar certo de que aí não há mistério
não tenho medo da morte mais quero este acontecimento inquestionável e inelutável que me impuseram no dia do meu nascimento
afinal o que é a vida
um benefício que não escolhi e que devolverei com indiferença
a vida passa veloz como uma caravana pára de cavalgar e procura ser feliz
moça virgem donde te vem essa tristeza bebe um pouco deste vinho e dá-me de beber
já se declaram os primeiros sinais da noite vem
ouço dizer às vezes oiço que os amantes do vinho serão condenados ao luminoso inferno os bebedores juntos com os fornicadores
chamas enxofre dores
verdades não as há mas há mentiras que são tão claras que ninguém as pode negar
pecado original fogo infernal limbo lateral
se todos os que se embriagam se todos os que amam vão para o inferno o paraíso estará quase vazio
já sou velho sim velho mas tenho amor para dar a minha paixão por ti mata-me de amor e desejo não deixo por isso de alagar o meu cálice de vinho tal é o meu sentimento a intensidade de amar que sem piedade o tempo anulou o discernimento da minha razão florescendo o leito e fazendo murchar sem caridade a rosa que brilhava no meu peito
tu que me atormentas ó imagem de uma nova alegria vozes de amor encantadoras que me atentais vejo a minha amante e só a sua doce voz oiço
os deuses hão-de perdoar-te diz ela suave
não aceito esse perdão não pedi qualquer absolvição sou um guerreiro da vida espartano como convém
um pedaço de pão negro duro de semanas um pouco de água fresca a sombra de uma árvore e teus olhos escuros rasgados em perfeito corpo implantados
não há quem eleja imperador mais feliz que eu nem esfarrapado mendigo que mais triste seja
o amor começa carnal obsessivo possessivo
porquê tanta doçura tanta ternura tantos beijos e promessas no início e continua caminhante receoso da perda carinhos afagos e mimos tanto deleite e enlevo
e depois acaba odioso cansado entediado
porquê
se hoje e amanhã no prazer e gozo que dilacera o coração
porquê
haverá um dia em que os nossos espíritos irão deixar nossos corpos para trás sobre as nossas pobres e inertes cabeças alguém colocará um ladrilho uma lápide inscrita que dirá aqui jaz em eviterna paz quem na taberna muito bebeu amou e sofreu
depois
as tuas cinzas misturadas com as minhas serão modeladas pelas mãos de um oleiro ou de um pedreiro a construir um amor perfeito
vinho único conforto alívio
bálsamo para um coração que sofre enfermo
vinho perfumado a almíscar vinho cor de rosas a florescer num ermo
serve-me vinho vinho destruidor a aplanar o inferno ardente da minha amargura vinho e o teu alaúde de cordas de seda
tanto se fala de um criador que criou os seres todos os entes céus terras e mares suas gentes
para que os criou ele o supremo senhor um primeiro e logo após dois para os destruir depois
há os feios e os belos os com defeitos e os escorreitos os que nascem ricos e os pobres os que morrem à fome à nascença e as crianças saudáveis e doentes
porquê porquê
não sei nada não compreendo nada
não compreendo
nada nada
os homens divertem-se a errar pelo carreiro do que pensam ser o verdadeiro conhecimento uns buscam-no outros afirmam que o encontraram
não
um dia a voz virá e bem alto clamará
não há caminho não há caminho
e se houver não terá margens
oferece como sacrifício à alvorada o vinho do teu cálice os beijos dos teus lábios túlipas de primavera oferece ao sorriso rasgado de uma jovem em flor o vinho com que brindas ao amor
bebe e olvida bebe e ama beber e amar que o punho da dor em breve te irá derrubar
vinho vinho que percorra sem cessar as minhas veias
vinho e amor vinho que me suba à cabeça
cálices silêncio
nada é verdade
vinho cálices depressa urgente
que envelheço
e morro
quando for sepultado do meu túmulo exalará um inebriante aroma a vinho forte tão forte tão poderoso que embriagará quem por ali passar
a tranquilidade brotará do meu sepulcro perfumado impedindo os amantes de dali se apartarem não conseguirão partir nem tão pouco afastar
no delírio da vida só serão felizes os que sábios pensam ser e os que não cuidam da sua instrução
tolos
curvei-me sobre todos os segredos sobre todos os mistérios do universo e desanimado refugiei-me na solidão cegos surdos e mudos invejando
e bebendo
e dizem-me os outros
deixa de beber não bebas
respondo quando bebo oiço as rosas as túlipas os jasmins e também o que a minha amante em segredo e para si em mim me diz
meditas em que meditas
nos teus antepassados eles que são pó sobre pó nas suas virtudes e celebridade nos que vierem depois de ti esses terão adquirido os nossos erros esquecido as nossas virtudes e serão tão especializados na arte de viver que nunca conseguirão ver um pôr-do-sol numa visão que se limita ao alcance de uma mão nunca irão amar uma noite que seja atá ao raiar da manhã deixa que sorria
toma este jarro vamos beber vamos amar e escutar o momento e o silêncio das galáxias em movimento
a aurora alagou de rosas a abóbada celeste
no ar diáfano e puro perde-se a canção do último rouxinol
o aroma do vinho é mais leve e generoso e pensar que neste momento em cada parcela do mundo há aluados ensimesmados que sonham com glória honras e reputação
oh amante como são macios os teus cabelos doirada a tua aura e perfumado teu hálito
amigo não faças projectos não pesques em lagos secos tens a certeza de poder colher os frutos do que agora plantaste de terminar a frase que começaste
amanhã talvez possamos estar tão longe desta choupana tão distantes desta caravana que se afasta e afasta sem cessar como os que já abalaram há milhares de anos e que ninguém recorda ou comemora
senta-te comigo na margem deste ribeiro esbelta adolescente de rosto trigueiro olho-te com os olhos do futuro que o estar sozinho me concede e penso com melancolia o vaso e o cálice pleno de vinho que serás um dia
há muito há anos que a minha juventude é no reino da morte jacente
primavera da minha vida perdida onde se perderam primaveras idas
oh adolescência que passaste sem que eu me apercebesse da brevidade desta vida na terra tal como dia após dia se amolece a suavidade da primavera
embriaga-te irmão com todos os perfumes de vinhos novos e velhos de todas as mulheres de músicas das cores das flores não faltes em afagos agasalho e blandícias às tuas amantes olha que a vida é breve feita de pontes sem margens e que não tardarás a afundar-te na terra como a água dos poços e das fontes
a paz neste mundo é loucura vaidade
eterno descanso demência também
depois de morto um sonho breve
ressurgirás na erva frágil e indefesa que todos calcam ou na flor que no estio o sol irá queimar
pergunto-me afinal o que é meu o que tenho por certo ou possuo incontroverso
pergunto-me o que restará de mim depois da passagem para o reino dos mortos
a vida é um incêndio que devasta a floresta imensa em escassos minutos chamas vermelhas cinzas que o vento espalha e com paciência dispersa
tal é a existência humana e a minha essência
cinzas cinzas
evidência e dúvida erro e verdade palavras vazias como bolha de ar a boiar no tanque dos nenúfares com as cores do arco-íris a cintilar ou turva como nuvem a pairar em dia de escuridão incontida bolha que é alegoria da vida
ao poder dos monarcas às riquezas das áfricas prefiro um púcaro de vinho e mulheres para beijar e no silêncio dos bosques amar perdidamente um corpo ao luar numa esteira de linho
admiro o amante que geme de felicidade de dor e pelo amor que a vida tece e desprezo o cínico que boqueja uma prece
ouve este segredo duradouro quando o primeiro alvor alumiou o mundo em trevas adão era uma criatura sofrida sentado em venenosas ervas que almejava pela noite e clamava pela morte
a lua já brilha luzeiros amanhã o sol iluminará uma cidade silenciosa e hirta
vinhos a dormir nas bilhas nas garrafas nas taças e jovens ingénuas nas sombras das florestas
ao quadragésimo sétimo dia a morte entrará pelas frestas
a ninguém pedi a vida ou pedi
não pedi para viver ou insisti
esforço-me por aceitar sem gozo nem cólera tudo o que a vida tem para me ofertar
partirei sem questionar sobre tão estranha condenação que com outros me faz partilhar este mundo cão
não esqueças colhe todos os frutos que as tuas mãos alcancem vai a todas as festas banquetes e romarias escolhe as taças maiores e as mais belas mulheres
os deuses não se ofendem com os teus vícios e virtudes como atinges o prazer e com o que fazes do teu corpo
os deuses têm mais que fazer
noite escura espectros fulgentes silêncio
a folhagem estática num ramo incandescente como o meu pensamento
de uma rosa exemplo que julgas ser do teu esplendor cai uma pétala
onde estarás neste momento tu que me brindaste com o cálice de cristal e lábios purpurinos pelos quais suspiro
nenhuma rosa se desfolha junto de quem acaricias com teu vinho e sei que ninguém te pode entregar a felicidade amarga com que eu te embriagava no bosquete de granito e pinho
se soubesses como pouco me afectam os quatro elementos e as cinco faculdades ah se o soubesses
diz-se que alguns filósofos gregos conseguiam colocar cem problemas aos seus auditores que me interessa que importância tem é-me indiferente o problema dessa gente
serve vinho sim vinho toca o alaúde e que as suas notas evoquem a brisa que como a vida foge
ah serve o vinho beija-me dá-me o teu carinho
quando a sombra da morte aluir sobre mim e os meus dias pelos dedos de uma mão contados chamar-vos-ei amigos meus levar-me-eis deitado
quando o corpo que vivo foi se transformar em pó do deserto ireis moldar um jarro que enchereis de vinho
talvez então oh mistério
me vejais ressuscitar
e seja eu o herdeiro dono de um novo e mais justo império
pouco sei ou me importa saber
mentira teologia
verdade filosofia
bondade religião
maldade autoridade
mas procuro sempre um vinho de qualidade
- nasci e vivi com ele –
uma cama em desalinho
- não a sei fazer nem quero aprender -
os meus cabelos embranquecem os meus ossos enrijecem mais de sessenta anos
ser feliz hoje ou nunca amanhã talvez já não tenha forças talvez seja tarde com a alma vendida ao diabo
onde estás tu meu amigo das noites errantes das boémias cantantes onde estão os nossos amigos tê-los-á abatido a morte na sua vida sem sorte
onde estão agora pareço ainda ouvir as suas alegres canções
estarão mortos ou ébrios de connosco tanto ter vivido
quando eu finar comigo hão-de morrer as rosas os ciprestes os lábios vermelhos e o vinho perfumado
nem mais uma aurora nem crepúsculo dores alegrias sofrimento o mundo deixará de existir o mundo só é real e só pode ser vivido como efeito do pensamento de limitado cérebro nascido
esta é a única verdade somos peões de partida de xadrez por deuses jogada
movem-nos em frente para trás para os lados detêm-nos fazem-nos avançar recuar e depois quando o querem vão-nos atirando um a um peças sem préstimo para fora do tabuleiro para o jogo do nada
a abóbada celeste lembra um perfeito cálice invertido agitam-se os sábios agitam-se debalde que o teu amor pela tua amante seja igual ou parecido ao que o jarro sente pela taça
lábio com lábio boca com boca trocam o seu sangue em puro enlevo
os sábios nunca te irão ensinar seja o que for mas as carícias dos amaviosos cílios de mulher irão transportar-te para o reino da felicidade
quem não ama vive num inferno permanente os suplícios do inferno estão condensados nas nossas vidas se não amas nem bebes nem te entregas ao prazer estarás a arder no mais profundo dos abismos
os teus dias estão severamente contados e em pouco tempo o teu corpo será dado à terra
bebe vinho ama e afastado procura nele e na mulher o afago que pelo conhecimento te não é doado
o calor do vinho é libertação o calor do amor arroubo interior
libertação do passado e do futuro
encantado pela luz quebra os grilhões caminha com ou sem verdade ama e bebe a liberdade
quando era criança na igreja sentado não rezava qualquer oração mas voltava com o coração cheio de esperança
agora e até ver velho e cansado quando me sento numa delas procuro a sombra o silêncio e a frescura e deixo-me adormecer
na terra matizada caminha alguém que não é judeu nem muçulmano católico ou cristão budista hindu nem rico nem pobre não invoca os deuses não quer saber das suas leis não crê na verdade nem nunca afirma nada
na terra matizada quem é este homem triste e corajoso
procurai-o
antes de saber como acariciar um rosto amoroso como rosas quantos espinhos não terás de arrancar da tua própria carne perfurada
olha esse pente era um pedaço de madeira e quando a talharam grande foi a sua dor mas hoje o pente afaga cabelos brilhantes e perfumados de uma adolescente
há um momento em que a brisa da manhã abre as rosas e lhes sussurra que as violetas já despiram as suas roupas
só é conveniente que viva aquele que se compraz na visão do sono de esbelta mulher alcança a sua taça esvazia-a e lança-a fora
tens medo do amanhã sabes porventura o que é te pode acontecer sê audaz para que o azar não justifique os teus temores e essa tua agonia que aumenta a cada dia liberta-te de tudo não te comprometas com nada não indagues nos livros nem questiones outros que como tu nadam nas águas da ignorância
o âmago do destino é insondável e indecifrável
senhor senhor diz-me
deste-me olhos para que a beleza dos seres e das mulheres me deslumbre
concedeste-me o dom da felicidade e queres que eu abdique sem mais do prazer das maravilhas do mundo
impossível senhor tão impossível como virar uma taça sem derramar o seu vinho ou tocar uma virgem sem colher o seu amor
na taberna da minha aldeia pedi a velhos sábios notícias dos que já partiram
tio zé gabriel respondeu só nos levam a dianteira é tudo o que sei
tio antónio velhaco ouviu e disse eu sei um pouco mais morreram foderam-se e não mais voltarão
bebe o teu vinho vá bebe e esquece
olha e ouve uma rosa tremula no sopro da brisa enquanto o rouxinol lhe canta uma breve canção
uma nuvem adormeceu no céu azul sobre o mar
vamos beber vamos amar vamos navegar nas ondas do prazer sem lembrar que não tardará uma rajada a desfolhar a rosa e a levar o tépido canto do rouxinol e a nuvem e sua sombra a despertar o sol
enquanto uma rosa dizia do mundo sou a maravilha será possível que um perfumista me faça sofrer
e um rouxinol cantava um dia de felicidade anuncia um ano de lágrimas
esta noite ou talvez amanhã poderei já não existir
tempo terminado nesta terra como navio a afundar em águas polares
chegou o momento de pedir vinho e uma mulher para amar
com quem te comparas com um tesoiro com um jarro de oiro
julgas tu moribundo que os ladrões irão violentar a tua cova para furtar um defunto
o amor esse forte sentimento doce e inebriante como o mais puro dos licores amor apetite voraz tão natural como a vida a saciar nos braços de uma mulher emoção pacífica ou violenta que quando não arrasa e devasta o coração do amante não é amor
as brasas da lareira darão o calor de uma fogueira
noite e dia em sonho ou vigília em toda a sua vida o amante contorce-se de prazer e dor
podes mergulhar na noite nas profundezas do oceano subir aos montes escalar as muralhas dos fortes caminhar no horizonte em vão
ah adão e eva como deve ter sido tão amargo vosso primeiro beijo para que nos tenham gerado tão desesperados
bebo vinho como a raiz do salgueiro bebe a água do idílico ribeiro da minha pobre aldeia
bebo o vinho pura das nossas vinhas antigas
só os deuses são deuses e eles tudo vêm
ou só há um deus e ele tudo sabe tudo prevê - não é o que está escrito –
quando me criou não sabia que eu beberia vinho e pelos caminhos da estúrdia com outros boémios vaguearia se não bebesse nem amasse a ciência de deus seria um fracasso
poderá ele castigar o que assim criou poderá castigar-me a mim que a ele devo o que sou
o vinho é alforria de dúvidas e cuidados de medos e fados indecisão e embaraços é o mágico mãos de rubi que te irá transportar momento a momento à terra do esquecimento
fecha o teu livro de orações bíblia corão guitá pensa com atrevimento e defronta sem temor o céu e a terra e faz do pobre e do oprimido a tua dor
ama mais que os deuses dos homens amaram
como é débil o homem fatal e implacável o seu destino como é dissimulado e insincero
juramentos juramentos falsos juramentos que não cumprimos indiferentes à vergonha e à desonra frieza da mentira na terra da hipocrisia
até eu por vezes vivo na insensatez destempero e desacerto mas tenho por escusa estar embriagado ou apaixonado
ouve-me se este mundo mais não é do que ilusão por que desesperas por que motivo te afliges e desiludes por que pensas noite e dia na tua infelicidade e na tua dor
abandona a tua alma à fantasia das horas o teu destino já está escrito na abundância ou na fome não há para ele apagador e ninguém para o apagar porque os deuses sonham e se não sonham dormem
a auréola que rodeia esta frágil rosa é um sinal do seu aroma ou a débil defesa que na bruma desfeita os deuses lhe deram
os cabelos sobre o teu rosto amante serão a noite que teu olhar há-de dissipar
pinto o teu corpo nu importante não é a pintura que faço na tela mas o olhar que segura o pincel e o próprio acto de jorrar tinta
acorda desse sono amante terminei a tua forma esguia o sol abrilhanta as nossas taças bebamos amemos
que um corpo luminoso é mais belo que a escuridão
decide-te não contemples mais o céu rodeia-te de belas e aprazíveis mulheres acaricia-as com suavidade e amor
de que suspeitas ainda desejas rogar aos deuses
muito antes de ti outros homens lhes dirigiram fervorosas orações mantras ave-marias credos petições homens que já se retiraram para o reino da morte e ninguém sabe se os deuses de longe ou perto na sua contrição os viram ou ouviram
como me compadeço de vós ricos gananciosos da vossa avareza e avara abstinência
a aurora a felicidade a pureza sim um enorme rubi brilha em cada taça
toma estes dois ramos de sândalo transforma um em alaúde e queima o outro com os teus lábios para que nos perfume enquanto amamos
estou cansado exausto de interrogar homens e livros
quis consultar a jarra da vida poisei nos seus lábios os meus e murmurei
para onde irei quando morrer
ela cheio de vinho forte respondeu-me
bebe na minha boca sacia-te à vontade nunca voltarás da morte nunca
se estou perdido de bêbado nem sonhas como sou feliz
se admiro o rosto rosado da minha amante sou feliz
se sonho que não existo como sou afortunado porque a morte é um nada antigo e moderno calcinado e no nada não há sofrimento nem o tormento do inferno
ó estulto que sábio te julgas desassossegado entre o infinito do passado e o infinito do futuro
queres criar um limite entre estes dois infinitos sendeiro
elege uma árvore senta-te à sua sombra com a paciência redobrada de uma jarra de vinho e bebe com a tua amante até que te esqueças da tua fraqueza e impotência
mais uma madrugada dia após dia invento um novo brilho no mundo e como lamento como me angustio por não poder agradecer ao seu criador
mas tantas são as rosas que me contentam e tantos os lábios que me consolam quando aos meus se unem
deixa o teu alaúde amante os pássaros já cantam vamos amar
pouco mais precisas de entender ou saber que tudo é mistério
a criação do universo e a tua o destino do universo e o teu
sorri aos mistérios como quem sorri a um perigo que desconheces
nada irás saber quando franqueares os portais da morte
paz aos homens de boa e má vontade ao mal e ao bem no escuro silêncio do obscuro além
que farei hoje irei à taberna ao prostíbulo sentar-me no jardim lerei algum livro beijarei doce mulher
um pássaro voando cruza os céus donde vem quem é para onde vai
tão pequeno e grácil já o não vejo
oh embriaguez de ave no azul subtil oh arrependimento do homem na sombra fresca de um templo
o mundo é um roseiral as suas visitas borboletas e os rouxinóis
elas oferecem-nos cor dúctil movimento eles canções
se não tiver rosas violetas ramos folhas éden e farol que me guie terei por flores as estrelas e por jardim teus cabelos soltos ao vento norte
servos não nos alumiem os convidados adormeceram e estão pálidos de morte
hirtos estão e de frio gélidos reflexo da imagem do sepulcro
deixai as velas não há luz nem amanhecer para os mortos
quando te vergares ao peso da dor quando os teus olhos secarem pensa nas verdes plantas que a chuva asperge quando te sentires desesperado no esplendor do dia e quando desejares que uma noite sempiterna caia sobre o mundo pensa como uma criança pensa nela ao despertar
ah como é bom amar gratuitamente
escondo a minha melancolia de toda a gente com a vergonha da tristeza
as aves feridas também se escondem para morrer
serve-te de vinho bebe ouve as minhas graças e as desgraças ocultas
quero vinho quero rosas canções de alaúde quero amar e a ti amante quero-te indiferente ao meu pesar
muito aprendi outro tanto esqueci outrora na minha memória cada coisa saber especulação tinha o seu lugar se algo estava à direita não podia ser desviado para a esquerda e se à esquerda estava não poderia ser desviado para a direita
só atingi a paz quando com desprezo tudo repudiei e acabei por aprender que não nos é possível afirmar ou negar nada e que em tudo há uma praga oculta
neste mundo é nosso destino sofrer para depois em agonia morrer
com algum prazer não quereis dar à terra quanto antes o vosso corpo miserável ele que é a fonte de todo o padecimento
e a alma perguntais pela qual os deuses aguardam para o juízo final
ficai descansados que logo vos responderei quando for avisado por alguém que regresse da terra dos mortos se e quando regressar do que duvido
santo homem despe essa roupagem de que tanto te envaideces e que não tinhas quando nasceste veste antes o manto da pobreza
os santos que se lixem embriagado ou sedente apenas me apetece dormir dormir profundamente
não quero saber o que é o bem e o que é o mal porque o bem está para o mal como o mal está para o bem
afinal o que é o bem o que é o mal
para mim dor e prazer são semelhantes
quando me sinto feliz concedo à felicidade modesto lugar já que bem sei que a dor não tardará para a afastar
nunca conseguiremos incendiar o mar nunca iremos convencer o homem dos perigos e manhas da felicidade no entanto todos sabemos que o mais pequeno embate é letal para o jarro cheio e deixa ileso o vazio
olha à tua volta aflições desgraças desespero angústia choro e ranger de dentes
os nossos melhores amigos morreram e a tristeza é a nossa companheira inseparável mas continua homem abre as mãos alcança o que anseias faz das tripas coração e enterra nas profundezas o cadáver do teu passado
és infeliz tu que choras que gemes que escondes o rosto no leito e em segredo padeces
não penses se não pensares na tua dor não sofrerás jamais
se a tua atribulação é forte se te faz pensar na morte lembra os justos que injustamente sofreram desde o princípio dos tempos
goza os teus momentos
pobre homem pobre infeliz nunca saberás nada nunca serás capaz de desvendar um que seja dos mistérios que nos cercam
já que as religiões em uníssono te prometem um paraíso faz tu por um nesta terra criar
o delas ou é invenção ou ilusão e puro engano
todos os reinos e riquezas por uma taça de vinho generoso todos os impérios e suas fortalezas por um cálice de vinho novo todas as bibliotecas e livros toda a sabedoria pelo doce aroma do vinho por um beijo à sombra de uma tília todos os hinos de amor pela canção do copo que se esvazia e por um corpo que se anuncia
senhor desbarataste a minha alegria ergueste uma muralha de pedra armada entre o meu coração e o da minha amante
os cachos da minha vindima foram degolados
vou morrer senhor morro com dor mas tu cambaleias como os embriagados
silêncio oh minha dor deixa que busque mezinha
é preciso viver é urgente
porque os mortos não rememoram e eu apenas desejo nem que seja por instantes voltar a ver a face das minhas amantes
alaúdes taças jarros perfumes risos olhos amendoados e profundos
brinquedos que o tempo faz corromper
austeridade trabalho meditação solidão oração e renúncia
cinzas que o tempo espalha cinzas
cinzas cinzas
e nada mais
***
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