Download dos textos de ANTIPOESIA ou a insustentável arte da falsa erudição em –
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sonhei em vão
não lembro
a romã aberta
à taça alada
das palavras
retesadas
todo sangue
tem um preço
no cadafalso negro
o cabelo recusado
ociosos carrascos
névoa que baixa
nos ombros anões
deformados
romeiros
que se desfiam
e tecem nos aguaceiros
grilhões
escuros madeiros
pés descalços no manto
teia acesa da morte
o vento parou
que fazes dormindo
rio amado e rimado
quando teu amante
do norte já chegou
um doce aroma
percorreu
meu peito
aberto às nuvens
o pomar em linha
exibia
os vagões
obsoletos
da cristandade
telhados e antenas
telhas enegrecidas
paredes com rosto
de tijolos arcaicos
tudo tão macabro
como os habitantes
daquele descampado
sujo e pérfido
vacariça
um cedro decapitado
vegeta no centro do pinheiral
cerzido por fetais e silvados
o trem urra
destino
celorico da beira
guarda
sempre o destino larvar da inconstância
estações incontinentes da inconsequência
o coração em desatino na preparação da viagem solitária
é urgente reequipar o navio
impor ao rumo um espírito novo
dotá-lo de uma alma renovada
imune ao vendaval do sem-sentido-perpétuo
a paz só floresce no novel
os minutos não estacam no jardim azul
verdes as ervas a escurecer
o banco de mármore arranhado pelas garras do desespero
o lago dos desejos a brilhar
uma alma aberta aguarda o viandante que não vem
palavras de arsénico dissolvidas cautelosamente num café frio
o poema um vaso cheio
que se oferece
ao poeta somente
quem entende
quem o compreende
e porque é que se escreve
divertimento de semente a criar raízes de mortal augúrio num tanque de água quente
lodo e poeira
a esvaziar lentamente
um antigo recipiente
a terra fecunda está receptiva
de seu nome maria
sabe a bainha estelar o melífluo lubrificante dos lábios
coruchéu a receber o alimento minável vindo do firmamento
ah o céu das aves a quinta jornada do criador
campanha do conquistador do mundo
na serrania a fixidez mística das urgueiras inibe a semeadura do pão
assim estou eu desabrigado e sem querença patético
sublimemente emparvecido
raiz de torgal sem usança
ignaro ao sol-nascente
desperto ao crepúsculo
enclaustrado na noite
em mim a gentileza
docilidade
humildade
de um sarrafo avelhentado
ser humilde ser humilhado
cuspido por cima
que tocante
dá-lhes a outra face asno
já agora cristo por um dia
mártir por um mês
esconjurado por uma vida
tenho limites
aquela casa continuará em ruínas incandescentes
o poema não terá título e o desastre das noites negras terá a idade de todos os momentos difíceis e das algas do tempo
não escolho disse o homem
esfarrapado
a ponte tem um só sentido
alicerces suspensos na
vontade própria
no ferro armado em
espiral
pelo porvir vencido
silêncio
solidão
espectros virtuosos tomam assento na luminosidade nocturna do grande salão
um piano
notas agudas
em quente melodia
as graves
frias
moldam-se aos intervalos
dos pavios
que se acendem e apagam
lá fora um cão doente morre ao frio
curva-se o céu no dia ensombrado
um beijo prolongado na terra virgem
alto e baixo apaziguam-se
tão serenos
tranquilos
ah a margem das águas onde arrancámos
dentes cerrados os juncos
aí amámos os desafortunados
amámo-nos a nós na fortificação
imaculada de muros graníticos
na terra queimada soltam-se lamentos
nascidos das lágrimas da memória
noite de todas as ambições coragem da perdição a iniciação há quarenta anos
ilusão
bem pode ter sido verdade ou pura imaginação
uma cave clandestina no anonimato da ditadura
mulheres seminuas
esgueiravam-se por detrás das mesas de veludo vermelho
havia cartas ao centro
uma rainha de copas
e um rei de espadas numa delas
negócios sinistros encapuçados
o fumo do cigarro mais reles misturava-se com o dos charutos cubanos
frenética a erva adocicada sorvida pausada e vagarosamente
as luzes sorriam piscando para o ringue improvisado
nos fundos encomendava-se um serviço
a morte
entrega-se sempre nos cantos da libertinagem
ninguém o dissera e para quê dizer
conhecia aqueles olhos brilhantes do mecânico de quem sem rosto vai matar o que rosto para ele não tem
no tapete vermelho do ódio rasgado pela vendetta um colt 38 ou 40 visível crespo e ameaçante
quem seria desta vez alguém
uma alma que o diabo ou deus hoje já tem
ou que não é de ninguém
algumas estrangeiras do norte rodearam-me estátuas gregas vivas
audazes
havia ainda uma venezuelana
quase nua
pele escura a brilhar
e portuguesas acanhadas mal-acabadas
lânguidas fêmeas pedradas
curiosas és tu que vais lutar
palavras em charco de tensão muscular de quem aguarda disputa sem voz
a cidade nunca mais seria a mesma iria arruinar-me com ela luta após luta puta atrás de puta
o patriarca da família senta-se obedeces primeiro não demandas e um dia mandas
só sabe comandar quem souber obedecer
cegamente
diz com a solenidade dum pinheiro nórdico a resistir aos ventos do árctico
trazemos nos corações a frieza dos rios gelados das montanhas nevadas e da negrura dos fossos ensanguentados
- uma faca acerada tributa gotas de sangue no vodka puro -
bebe
o teu sangue
é nosso
com ele
tropeçaremos
nos cadáveres dos adversários
não há homem nem deus que não tenha inimigos e traidores
que não haja
lei
nem ordem
nem pecado
nem piedade
esquece quem morre
corpo separado da cabeça rolada
é um nada
a hora interrompe o discurso pesos pluma o ringue improvisado tira o roupão dizem
o polaco era baixo de vermelho e encorpado eu alto de negro e magro
vozerio gritos estridentes das gaiatas
dois rounds a parar golpes terceiro round
dois golpes baixos do estrangeiro raiva e ódio
um jab a medir a distância um hook frustrado um novo frontal a abrir luvas velhas cross furioso
jab jab directo jab-directo e uppercut
a lembrar a dança de shozo saijo
o polaco no tapete
cambaleante
arrasta-se e sai
esforço inglório
technical knockhout
e vai
a música martelava as paredes dos ouvidos inebriados
sangue vivo no sobrolho
dor no baixo-ventre
as nórdicas despem-se
na mesa de poker centenas de notas
um beijo do patriarca k... a selar o compromisso a comemorar a vitória do terno de oiros inscrito em luvas de napa
bem vindo ao inferno
dos vencedores
bebe
usa as mulheres
disse
- está velho mas ainda vive -
há quem diga que na face macia
de um papel se conheceu
habituação ao cárcere voluntário do medo
em linhas vazias de caderno
aberto aos pés de enxerga
no repouso do quarto sem cortinas virado para a canção estelar do rio a correr pelas cinzas do deserto abrigava a imaginação dos espaços suspensos e das chagas incuráveis
abandonado à morte da realidade mergulhava no sonho
seu irmão bravio
vítreo
a força da idade na decrepitude do corpo fez com que se aconchegasse ao calor da lareira
em brasa húmida
salgada
manta retalhada do desespero petrificado
pouco era o tempo que lhe restava
nas pálpebras incandescentes
dos punhos amansados
a adormecer lânguido no espírito da noite
ceia dos afogados
o cigarro
esta companhia a que falta o orgasmo
noite e solidão aquosa
três bancos em linha
deserto da sala expectante
o escuro passeia-se voluptuoso na negritude da escuridão plena
uma mão na caneta
um dedo na letra
a outra no sexo azedo
má circulação nas ameias da mente
tão doente
ossos de extrema fineza
um cigarro morre
por não ter sido fumado
lava de vulcão
um cigarro morre sempre insatisfeito e ausente
como um cão
que se guarda
e não é usado
para guardar a gente
aquela árvore centenária ramos a espreitar o terraço evitado
dormita
eu durmo com ela
no prédio em frente discute-se o rasgão dos calções amarelos
que será o dia de amanhã despido de amarelo vivo
ou de azul nado-morto
provavelmente uma lagosta cozida viva em caixa circular
dentes de gula cravados no enxugadouro de celerado paladar
lacaios
laços torcidos
fatiotas pretas
camisas brancas
enxovalhadas na surdina do amanhecer lacrimoso
palavras rentes das malfeitorias desaparecidas pela prescrição
e das acusações de favor
delitos em pelota que já ninguém nota
uma criança chora
um órfão vê fotografias
a árvore acorda
com o zurzir da sirene
da fábrica que na colina
se obriga por decreto
a embutir colares-cristais-de-gelo
nas colunas sociais
já não se viam os convidados da ceia
a casa deserta acolhia
os rumores dos antepassados
pelas janelas cruas entravam livres e despertos os sentimentos das trepadeiras
um cisne mergulhava no lago de cristal
a estátua nua escorria gotículas de arco-íris
no vazio
doenças da alma
que penetrais a carne
aliviai os pobres
órfãos
de pai e mãe
que a dor do espírito dói no corpo
um doer um tamanho sofrer
que remédio não tem
e se não morrem da dor que padecem
e que no corpo sofrem morrem da vida
que não têm
na noite longa ouço vivaldi ouço sempre quase sempre mesmo dormindo ouço-o
ouço-o até que os ouvidos me doam de tanto o ouvir
que encanto de dor –
dor de amor
aí lembro-me dela
pequena
frágil
magra
negra de luto
à imagem do mundo
caminhando sem pisar
o pó dos caminhos
lembro-me dela
de olhar vivo e profundo
no escarpado e longo pesar
na face
a beleza do granito
por deuses esculpido
no corpo
o aroma do pinho
na voz
a melodia do estorninho
a inebriar o vento
atento
da fraga do barroco
num amar lento e seco a perder de ver
de quem espera a morte em segredo
para me não fazer doer
um trovão pela calada da noite
um relâmpago
um tiro de canhão
artilharia pesada na neve sangrenta
botas velhas em pés de estilhaços
a traição da tocaia
da pátria
da madrasta nação
pai que é pai pai verdadeiro
e mãe que ama
não fazem de seu filho guerreiro
a cada dia cerram-se cortinas de fumo
acendem-se punhais pontiagudos de mar revolto
o palácio das torturas repousa na longa cabeleira do bosque desencantado
nada havia para além do horizonte sujo e pérfido
apenas
um despenhadeiro dorido
que se alongava
nos herméticos braços do sol
e que se espreguiçou na luz quente da fé
a porta do terraço aberta às flores selvagens
orquídeas que não florescem
e fenecem na noite sonolenta
no limite do nosso espaço contíguo à morte
na noite longa a paz imensa sossega a alma conturbada
as frases imersas na luz sucedem-se no papel opaco da consciência nascente
calam-se as vozes no terraço da casa ao lado e faz-se ouvir o doce canto dos grilos sem pontuação
a pontuação é importante
tão importante
como as abafadas núpcias florestais de tempos idos
desisto dizem
neste emaranhado descomposto
inútil
e eu digo tudo o que é fácil
cai-nos nas mãos como o vento circulante
que sopra nas nossas costas vergadas à mentira dos feitos históricos
e a folhagem que morre
nas árvores a bolsar restos de outono bravio
para mais
cruzar as palavras
é como cruzar as pernas ao frio do inverno
façam então o favor de não ler
o que me diverte
concordo com a vossa preguiça
e com a nossa idiotice
sagrada salobra sopa
da solidariedade assim
nunca ireis saber de mim o que eu não sei
benéfica vantagem de passar por esta vida
sem deixar rastro
de melancolia deserta
dois mil anos
atravessados pela cruz de bronze
odor de morte
a ressuscitar
lábios a acometerem
na taça de luz
a solidão trágica
dos olhos ainda por fechar
a tua história é a história triste de uma galinha voadora de asas curtas como os seixos da praia sem bandeira
rolado nas escarpas
um castelo de areia
galinha que voa nos subterrâneos
da fuga anil imperial
morcego churro
a voejar num copo de cristal
a cacarejar
anormal
o galo pia ao pintassilgo verde
e a galinha silencia
o galo pia pia pia
o morcego no voo não se fia
mortal
a quem o ar falta
na mesa vazia
nos painéis laterais brilha a luz do círio
por toda a parte a sombra da vida
mais real que todo o viver
um lírio solitário agita-se na jarra límpida
movimento de leito vazio
um coração aguarda em pé
olhar afogado no desejode todos os segundos
frescos e intermináveis
angústia suada de dia quente de verão
um espírito confuso na soleira da porta passa pelas fendas da trepadeira dos sentidos
o caracol conhece o universo na folha que o esconde e o cão de guarda na corrente que o estrangula
a forca aguarda
a cerca da consciência emudece o choupal
já é tarde
o sol pôs-se no baú de cânhamo em filamentos luminosos
e as andorinhas diligentes
adormecem num doce embalo os filhotes
alvorada
a cavalaria nas encostas move-as a trote
os montes em forma de mulher deslizam para o vale dos mortos
cavalo branco no planalto deserto
rufam tambores nas nuvens
o sol agita as bandeiras
espadas de sal cortam o odor do vento
ao sabor das trombetas
estandartes
a artilharia assente em cardos e musgo ressequido
aponta aos céus as peças em leque
uma dama borda em casa
uma criança chora no berço
os campos verdes desvirginados por postes de alta tensão –
que tristeza a deles
nas extremas campos secos algumas vacas
na forte solidão da campina
campos e animais molhados
adormecem o silêncio do dia
oh gelada dor –
dois cavalos esquálidos
aguardam a morte
a poeira cegara-o
um livro manchado
com borra de café
do orgulho ferido
atravessou a manhã submersa
em quimeras
e ajustes de contas
as casas dispersaram-se ao sol radiante de telhas alheias
recebeu cartas de fumo tormento e lume
perdeu de vista o mundo
alheara-se
do rumo traçado num aeroplano feito de folha de caderno de escuma
o destino cumpre-se na sonda celeste do interior perfumado de cada flor de cada lâmina verde-opaco verde-borro
execrável secreção terminal do quotidiano
era o seu gemido de lágrimas silenciosas dor a aderir
à pele vermelha por dentro a brotar angústia pelos poros geados por fora
seu nome simplesmente tristeza
o muro alçava-se sobre
aqueles dois corpos deitados
num morro de luz azulada nas asas
debaixo do salgueiro choroso
dormitava uma melodia rebelde
longe um trabalhador segurava uma enxada cariada pela terra enxuta
com os olhos verdes de ódio escavava a terra cilíndrica que fora de seus avós
da árvore curvada
nascera o sangue inocente das crianças
e o silencioso sorriso das moças virgens
a roçar o leito cremoso da água limosa da ribeira
arpejo de suave perfume
arrebatado ao vento solitário
na serenidade crepuscular da alma temperada
pela fresta da porta rústica vejo o amanhã que é o mesmo que não ver coisa alguma
ninguém deixa o seu nome inscrito na pedra violenta do tempo
tudo mais não é que jogo da ilusão
dança de destino a brotar pedaços de carne viva
no nascimento sofrimento e morte
prazer e dor
apenas
há pouco estava desassossegado e triste
porquê
que interessa ou ofende
sempre o porquê das coisas
o porquê do porquê
a essência da tristeza é a tristeza
estava triste já não estou
morta e enterrada a melancolia é passado
lembro-me perfeitamente de a ter esquecido
no passado cintila a forma das raças mudas
lua cheia que brilha na avenida inteira
que alumia lagos patos e uma triste rameira
o murmúrio cruel da minha natureza
ergo o elmo
o veneno bebido na beleza de uma taça de cristal
sala do império oval
derramo água viva
um estampido
alarido na ruela
em montes de pó as medusas
negam-nos o tempo e o espaço
tiros lá fora
se quiserem falar de amor
aos lagos calmos descerá a sombra da vida
numa única bala ao fim de tarde
breve vida em olhos pretos rasgados
amendoados
de verdade
mortos
de saudade
o céu acinzenta-se
nuvens altas matizam o tecto do mundo
em terra uma amálgama de árvores e mato
alguns pinheiros curvam-se à moléstia
uma povoação
casas amontoadas
cores garridas
algumas por rebocar
apenas a igreja se destaca haverá alguém a rezar
choupos solitários
num ribeiro sujo
campos lavrados e por lavrar
na casa velha da colina deve estar um lavrador
alfarelos pouco gente quem sabe
o lavrador
que empobrece alegremente
raios de sol reflectidos na mansidão das águas virulentas
um homem de enormes sobrancelhas coça o nariz
três jovens sorriem à voz esganiçada de uma varina
algés
no outono esfria o tempo
uma mulher mostra os seios provocatório decote
as pedras dos molhes parecem gemer em uníssono enquanto a brisa de sueste me roça a face
sozinho na multidão espúria corpos sem espírito
vida que é morte poeiras da incúria vida só a é a eterna na perpetuidade do momento
olho para dentro de mim explosão movimento
santo amaro de oeiras
um crisântemo aceso no candeeiro do quarto
música nasce da alvenaria branco-marfim
por fim
mais uma noite sem moscas
vagarosamente solitária
uma valsa de laranja
aos gomos
harmonia
dissidente
da vontade
crepitante
mais logo
será dia
a lareira
já repousa
o inverno corre rijo pelas encostas da serra açoitando o que a ferros esteve
peregrino das purpúreas rosas de gelo
nascendo incólume dos anos de deploração
cânticos melancólicos soltam as faces frescas e sombreadas da vida
cobrem nuvens e rochedos de velado luar
a singrar vagas de bruma em barca encantada
no céu agora límpido
a luz do perdão passeia-se com
uma mão-cheia de vento
brande armas escuras
lágrimas do sino a rebate
volto a casa
uma pequena flor roça suavemente o relvado
curvo-me à sua beleza azul celeste solitária vibração de primavera estéril
beijo-a solenemente
já não existem bandos arroxeados
de flores a inspirar
sorrisos aos insectos
guardava as conchas azuis cor de mar na última gaveta da escrivaninha
por vezes
estendia a mão
trémula da decrepitude
ao tempo
mágico da grandeza do horizonte
a ferida não sarara
um pássaro do paraíso na campina alegre
embutida na vidraça
de tudo dava conta
a tarde chega carregada de ilusões
no declinar do sol a tristeza do dia que finda
peito ferido de corvo branco em corcel de marfim
as muralhas da cidade com o lenço bordado de camélias acende-se ao tanque das trutas moribundas
soldados mortos nascidos no sorriso das praias de nordeste
tranças verdes na floresta ocultam o carro da vitória
dedos ventosos erguem-se das tendas
um odre de vinho derrama-se no limite da miséria
mães que os filhos criaram para morte inglória
na praça apinhada de asnos desse judas o olhar cerrado os teus em súplica abertos geme o coração destroçado à infame e vil tortura a que vais ser sujeito tu nobre e fera criatura com a mágoa no peito
boca com boca no falso amor
beijo no próprio beijo contrafeito
a olvidar o que em ti é pura dor
vil estirpe em que tudo é imperfeito
vos esconjuro miseráveis humanos
nesta noite de perpétua escuridão
raça que ao mundo só causa danos
a ignorar a essência da compaixão
a miséria suspira no olhar que na fonte se afunda
vacas magras pastam junto ao caminho
onde um guia nos transporta pelas lajes do tempo ao meio-dia
árvores que enlouquecem nos cílios os restos mortais sobejantes de amores gémeos
feridas iluminam-se nos casebres da aldeia
cai neve
o vento ronda para nordeste
a ponta dos dedos frios
toca silenciosamente
o mundo que agoniza
o trem das sevícias
para trás ficam todos os sonhos
os tons de azul dos espasmos dos lábios secos
os mais magníficos dos instantes
para além do horizonte dos carris prateados
a terra dos mortos-vivos
homem errante porque erras
como quem foge de seu próprio túmulo
em imperioso grito de negação
do sertão acerca-se a morte
óculos redondos a tocaia ensanguentada de sono a morte jogada no relógio colorido do pulso decepado
sorte de espírito boémio
no mato estão os teus leitos
os teus amores
o perfume de teus crimes
a canção de teus feitos
no odor das tuas vísceras
uma amante de água feita
raio em lascas que ilumina o ventre das trevas
a argamassa antiga cozida a cordel
a meus pés um papel desfolhado na insónia
hoje varre-se o céu a lâmina invencível da espada aprisionada na teia do frio aéreo
etéreos são os gritos dos répteis que germinam nos bosques da fuga
tempo de míscaros
a cerimónia –
paus afiados nas artérias azuis das manhãs de domingo
o veneno sangue espargido pelos corpos adolescentes cantares da madrugada
as bandeiras agitam-se no precipício mãos ao peito cruzadas
tossem que nem tísicos os cômoros na liberdade que se evapora das esquinas
as ruas enchem-se de feridas que não saram
apinhadas estão as chagas por cães lambidas
úlcera que se esvazia
o que é de uma importância vital para a poesia
os fantoches
os dedos
um melro canta
procissão da senhora da saúde
virtude da rosa maria
o sino solta um grito primaveril nas flores tombadas do andor
a esperança entregou o corpo à saudade a alma à infelicidade
um homem perdido na viela do quotidiano
terra alheia à clareza da floresta submersa
um murmúrio de sapiência brilha nas nuvens negras
em baixo do salgueiro que se afoga paulatinamente
nas folhas mortas ocas pegadas
dos mortos que muito vagarosamente
saem de suas nocturnas campas
as inúteis bibliotecas de espelhos lacrimejantes
pérfidos discursos um mal presente o elogio do ausente
a mentira
as inconsequentes
promessas do amante
é dezembro
persigo dois caminhos
um não lembro
outro decorado a azevinho
como se tudo fossem flores bem acabadas
coloridas a perscrutar de mansinho a eternidade
felicidade delas
saudades minhas
santa comba dão mais além nelas
as vinhas estão mortas e oliveiras entristecidas pregam o olhar no chão
um pinheiro manso repousa no telhado do pavilhão
giestais florescem onde antes ao som das cantigas as enxadas rasgavam a terra
vozes antigas das raparigas
um pequeno laranjal alberga todos os planetas do mundo
na praça
as marionetes grunhiam
o povo repartia as túnicas feitas pedaços de entranhas
das negras andorinhas
do ocaso nascera a sorte de pobre cavaleiro
cavalo morto pela pestilência do tempo
um grupo de homens descalços com a identificação nos rostos salgados encaminhava-se pesarosamente para a aldeia
caminhavam de costas com o arco-íris poisado nos ombros salientes
trevo e violetas cresciam nos cabelos escritos de mágoas homens presentes perdidos com seixos do rio enrolados nas mãos encarquilhadas
uma velha conduzia um jumento à vara
pássaros mudos vinho azedo madressilva a roçar requebrada o salgueiro
o sol caía nas ruínas da miséria
transformei as palavras mortas em seres mágicos ora castelos de folha de oiro ora pontes submersas
pouco importa se as compreendo são mágicas
plasmam-se por si na folha branca enquanto a viagem crepita nos carris
falam de si umas às outras encadeando a paisagem entrecortada por soluços
compasso de folhas de outono e frase dos fetos verde-vivo a rebentar na terra negra
são palavras-vivas inapreensíveis
palavras em mutação
num sentido veloz e fosforescente
a literatura está cheia de palavras-mortas que teimamos exumar na corrupção das ideias circulares
estereótipos do minimalismo pictórico das fachadas cartesianas
sei
sabemos
que nada há de novo debaixo do sol
mas sei que tudo o que é mágico
e o que é novo
não pode ser compreendido
o que é mágico é-o
como a bolha de ar na corrente do ribeiro
ou a pausa binária no pensamento
amanhã estas palavras já não mais serão mágicas
nenhum coelho sairá da cartola donde irão sair as novas ou mesmas aglomerações de letras que serão de novo
mágicas e penetrantes
as antigas foram sepultadas ao vento
que passou e que não voltará a passar
ficam as novas a aguardar a brisa
do pão nosso de cada dia
há dias que não têm ninguém para olhar com seus olhos condenados à solidão do corpo
o último comboio de quem não quer viajar em pássaros combustíveis percorre sonolento as estações dormentes
os carris untados de saliva diurna enchem a noite de cansaço
no som luminoso das juntas de dilatação
já pouco nos resta
para além dos corpos carbonizados
a jazer na berma dos acidentes da vida
no céu indignado as nuvens fistuladas por acessos de raiva espermática
deslizam na superfície da parede que se incendeia ao contacto do corpo efervescente
com a dor
dorida
do destino humano
e seja como for
as mesmas palavras
os mesmos gestos
os mesmos sonhos transparentes
a mesma chuva nas velhas vidraças
o mesmo inverno bolorento
a morte estava diante dele oferecendo-se como ode das coisas antigas das insónias imemoriais
batera-lhe à porta desta vez encontrara-o
sem fé nas recompensas de um outro mundo
com o trevo florido na lua escura
e os dias a não contarem horas de sol
um canto suave atravessou a superfície do mar amarelo
violetas sangraram na neve
os restos frígidos das paredes caiadas de estopa
afundaram-se nas palavras de loucura
um remo saudou as águas contra a corrente de frio mármore
as colunas dos palácios mortuários cederam ao peso dos arcos
os portões reais abriram-se
à voz da guilhotina
a morte batera-lhe à porta
enquanto o sol se punha atrás dele
lembrando seu próprio corpo
a repousar sob uma cruz verde
sem nome
dum mundo encerrado na concha vazia e inerte
da vaidade e do orgulho
já não estás na esplanada
varanda para a avenida
da vida alheia
cansaste-te deste mundo
partiste
deixando o vazio do humor
na cadeira reservada
nas garrafas quase vazias do balcão
nas tardes lentas dos trocadilhos
não quiseste ficar neste mundo
e a morte deu-te as férias
da vida
férias transformadas no tédio
de quem não tem um poema para escrever
nem um quadro para pintar
nem ninguém para amar
no dia de todos os santos
mecânico o pensamento com sua grotesca aparência
parecia superar as barreiras do aniquilamento
vendo sem coisa alguma ver na parcelar abundância
a profundidade estridente
encerrava mortalmente a visão da estrada íngreme
sinuosa e em fúria
uma única nuvem no céu
os ossos da memória vergavam o cérebro no vazio da avidez e da inveja dos edifícios calcinados na mudança frívola da autoridade calcada da avenida aniquilada pela dissolução do patético rol das lembranças
ao anoitecer a chama da atenção alimentava o fogo da criação nos escombros das necrópoles de portais escancarados aos vivos
havia uma sensação de amor
recordações de corolas murchas no solo arenoso da alma e na atmosfera húmida envolta em insuportável imensidão de mecanismo gasto e ressequido
entes pálidos flutuavam moribundos do pensamento
pela brisa escura soprados
dos mais profundos enigmas
a memória movimentava-se agora com lentidão
na essência da morte e no cárcere do tempo
cinzas do passado
extinguia-se
noite da alma em solidão
no auge das marcas gravadas no asfalto corroído por rodados de aço
a palavra transcendia-se
na contradição do que é belo
em forma de mulher
despertara envolto em neblina
imberbe s. sebastião sem qualquer capacidade explosível
uma centopeia no vidro sujo da janela inclinada para o mundo interior e a erudição de três versos num papel amarrotado ali junto aos pés da cama espalhada entre flores
nas montanhas uma dor intensa penetrante
regatos fragmento de fantasia
a ilusão
no céu
aquela tremenda confusão de nuvens
a obscurecer o sol
raia a alba na porta
da velha igreja coberta
de brinquedos de neve
por entre as flores dos canteiros laterais vislumbravam-se ilhas de terra fecunda
o ar do bosque longínquo
fresco e odorizado como pássaro vagueante
trazia o auge da primavera fria
o velho álamo despertava
gritando de alegria
ao vento sul
uma folha amarela desceu vagarosa da árvore doente e a velha beata de braços enlaçados à cinta aguardava a glória do altar
do sacrifício
um fragmento luminoso atravessava a escuridão do caminho com as árvores negras fantasmagóricas a inclinarem seus braços ondulantes
para o eterno caminhante
o dia aproximava-se ensolarado e límpido
alma de vestal
emoldurada na chama viva
consumida na beleza momentânea do regato
o rio cintilante de natureza inquieta e o rochedo imenso do coração multicolorido na rosa vermelha do porão da bela feiticeira
inelutável a morte
a chuva miúda caía
com um corvo a esvoaçar
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