Download dos textos de ANTIPOESIA ou a insustentável arte da falsa erudição em –
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vento norte do destino escrito na costa escarpada e sulcada pelo medo da espuma em destroços
um sinal
recomeço de vida nos olhares rasgados do musgo pendente do velho muro
urro de temporal
nas escotilhas adormecidas estão os fantasmas das margens pantanosas da mente
castelos erguidos por miragens nos campos ceifados tapetes sangrentos das vítimas em oração
na lonjura as nuvens caladas na distância as cidades explodem na fuligem dos primeiros transportes da madrugada
há insectos nas viagens sem repelentes
bétulas escurecidas pelo hálito ferruginoso dos operários
desvario das noites por dormir
a escuridão da idade o riso
poemas sem nexo
num passado sem siso
olho-a de alto a baixo a boca ilumina-se-lhe na viração dos vocábulos e das trovas que amaduram nas linhas bravias da medula inflamada
braçados de luz acoitam todos os inconvenientes do passado e do vindouro
ainda palpitantes os gerânios no coração sobem-lhe ao rosto inundando-lhe as gengivas secas
era ela
dulcíssima superabundante nomeada pela avessa urdidura do cosmos
eleita pelo espírito das florações em êxtase e pelas rudes paisagens coloridas em janela de raiva ciúme e inveja
deambulava pelo embarcadouro no meio dos relâmpagos das tempestades que eclodiam nas noites de outono
embarcava no sonho de um novo mundo mostrando carnívora os dentes alinhados com a vida das estacas do quebra-mar a norte
via paraísos nos pontões locuções penetrantes e assoladoras nas amarras dos navios enfeitiçados pelo rio
garroteados pelo sossego das casas dormentes
o corpo como um rastilho espectral arrefecia no odor pontuado pela maresia
um novo poema uma nova poesia
murmurava com a fé de quem espoliou as suas veias de todo o sangue e esmagou os seus ossos por detrás das paredes em ruínas pendentes de uma beleza traída por mãos quebradas
nos seus olhos crescia o destino macabro de todas as afogadas
o frio cintilava na imensidão da água
que se convertia subitamente no gelo da alma
os sinos dobram
a defuntos
há rosas pelos caminhos
mistérios nas bermas
dogmas no coração
estamos os dois juntos
sem ciência nenhuma
sem religião sem deuses
só nós a irromper na escuridade do vento norte
no sobressalto dos frutos por amadurecer
na beleza paciente da proa aberta
ao silêncio das escotas feito morte
se entender o mundo esta terra violenta aguerrida grotesca e impermanente
se ele nada mais for para mim do que simples coisa
que nasce e morre como gente
sofrido ou em plena calma
dar-se-á a visitação da alma
aí estarei contente um contentamento que permanecerá constante
forte como o amor puro como quem deveras ama e constante como quem conhece e sente
orion a mais bela das constelações
le solitaire
o veleiro de todos os mares e tormentas
quilha corrida em rumo certo mais espírito do que o humano
as coisas também têm vida mas não têm opções porque são coisas e vivem na alma de quem as compreende na sua essência mais profunda
pouco falta para a partida
um só
no grande mar oceano
tenho de ir
partir de novo
ver correr o mar no meu peito
a aldeia não é a mesma naufragou na inveja no ódio e ira
submergiu na mentira
o invicta 26 le solitaire
aguarda pacientemente
pela sua alma
de barro fora feito modelado ao crepúsculo quando as grandes neuroses sofrem melhorias e os poemas são escritos em raios violentos de sol
cantava-o despreocupado como a rã do charco seco a nadar na superfície do tempo
nele estava o fim do dia a iniciar a longa contrição da porta inútil para a bem-aventurança
sombras nasciam das proas inanimadas na lembrança do gosto do alto
só é do alto quem respeita e não teme as paredes de água sólidas e os acometimentos dos deuses revoltados
a cobardia é costeira ou palustre
e por desencanto navega em águas mansas
protegidas e abrigadas
fim de dia
o sol brilha menos nas coisas mortas à beira-mar que brilham mais incandescentes e se debruçam nas margens do rio azul
um pássaro descansa no paredão
um veleiro volteia insignificante
há comunicações no canal portuário
silêncio no jardim de azáleas
as flores comunicam pelo aroma nascido nas subtis cristas brancas das ondas que se desfazem em lamentação nos limos das amarrações enquanto os homens comunicam pelo canal da mentira
uma mulher vestida de lilás com pétalas nas pálpebras aguarda no som líquido da lira agonizante
virá pergunta-se nos lábios cerrados
no horizonte uma vela acesa de vento bonançoso
será ele não não o é
a traição nunca vem do mar
uma pedra sem nome na árvore que se despe
bebe-se sofregamente vinho adocicado
é antigo o meu anseio
contigo
na cidade portuária
onde os turistas fazem amor às escondidas
ao calar da noite
há ossos esmagados
medos encerrados em pulmões comprimidos
sexos vandalizados
seios apertados contra os cabelos do vento
o preço da paz pago com trinta moedas
e eu para aqui
engolfado no coração
do demónio
aquele era um lugar de repouso com pinheiros silvestres blocos de granito e algumas lascas de xisto
por vezes o céu era mais azul e o poente mais rosado
a brisa vinha de oeste e percorria as artérias da alma fazendo-nos ficar
simplesmente ficar como crianças pasmadas que brincam com as alaúdes ou com as ondas mansas da praia esquecida
o desejo repartia-se alígero na pele seca
a noite escurecia mergulhando nas vidraças viradas ao mar
uma estrela movia-se lentamente entre o leito desfeito e revolvido por corpo em agonia e a linha quebrada do horizonte nublado por riscas de sangue opaco
ninguém vinha
acomodou o coxim acomodou-se a si
na camisa de cetim em desassossego ardente citou o sono distante
não haveria quem pudesse condenar os sonhos nascidos do sexo latejante
um rumor longínquo
brilha nas jóias espalhadas das sedas do oriente
um fantasma arcaico mergulha no mar da janela da ponta leste
pousando em cada uma das árvores de cristal plantadas nas asas das borboletas de jade
no leito arrastado pelo soalho o coração alegra-se em duradouro êxtase
e a noite oceano de luz não findará jamais
nem um veleiro no tejo da minha puerícia ainda surda ao chamamento das ninfas submersas em coifas
um edifício debruça-se nas águas sonolentas da baixa-mar
o fedor da vazante
a imundície que vem de montante
um cargueiro apresta-se para sair a foz
onde aportará
que estiva no coração do porão
choram águas
na proa insensitiva maresia da dor
próxima paragem
algés
um circo à beira-rio
os animais de outrora
saudade a arrastar pela crista das pequenas vagas do areal
os carneirinhos prenunciam aguaceiro
rodados de todas medidas alguns soldados na berma à sombra de uma obra estupidamente moderna
as ruínas da velha casa
longínquo o cristo-rei ausente com a cidade por abraçar
em puro gemido se eleva
sacramento
falsidade
santidade pecaminosa
gente que mente que não sente
a crise ensandeceu estes homenzinhos sem futuro
última paragem
desço o rio em árvore seca
a corrente de maré é o berço desta velhice medonha
a proa resplandece de bronze
dos céus jorram lágrimas azuis
o convés molhado
o mastro emproado
cabos inertes ferozmente mordidos pelo piano dos mareantes
mar e estepe
os benefícios da solidão na mesa oval
cabeça
entre
as mãos
crispadas
hora de oração
sorrio
nas nuvens aves migratórias
como eu
fogo que se não extingue
santelmo
os mastros surdos
encapelam-se as vagas
navio de aventureiros do outro lado do mar
pátria de negreiros
um coração pulsa no convés os calcanhares doloridos ferem o madeirame húmido
irrompem selváticas sereias de espuma
lírios oceânicos de frio sorrir
brilho de um luar que se extingue
na pele molhada pela maresia as histórias contadas pela força obscura das nuvens que rodopiam no topo do mastro real
dia de bruxas no cadáver dos meus sentidos que se ausenta em deriva à vista do areal
observo-te na praia deserta
foste a amante no que o amor tem de místico
com os lábios enxutos percorri o teu corpo a acender o fogo da partida
nada fiz para resgatar os despojos dos guerreiros mortos na clareira de ervas secas
amanhã quando a fúria do mar for sombra e silêncio rumará para as índias a última das naus do oriente
envio-te nela o baú do meu coração exangue moldado a neve pelas crianças eternas
no espelho do luar
feitiço do firmamento
lerás a única palavra que dispersou todo o seu sangue nas nuvens doiradas que vagueiam ao sabor das ondas
amo-te
curta mensagem para carga tão penosa e difícil de estivar
será o lastro do navio na tormenta o leme do rumo incerto o aparelho da mareação a certeza oscilante
de que o porto será seguro
e o mar
lerá nas tábuas do costado escrito a estopa o recado omisso
que ao deixar-te partir
o mundo para mim tinha acabado
nesta terra
em que fui criado
em mar grosso fui moldado
de pequeno com brandura e amor me dediquei ao sagrado
tudo é passado
os dias amanhecem e eu acordado
na noite alegra-se-me o coração
longas as horas de vigília deitado
os dias escurecem na fronte sangrante
sonhos desprezados navio que se lamenta ao ranger dos costados
esquadras de vinho velho mercados de escravos
uma virgem que se pranteia
coração estropiado de moribundo
alijado à tormenta
era o fogo vivo
das longas vigílias
da sorte cruel
num pedaço de papel
as ardentes fibras
cantavam seu canto
de profundos segredos
a esteira de um
desses barcos velozes
com o pano todo içado
brilhava ao luar
era mais de meia-noite
e na praia um rapaz
acendia uma fogueira
de vidas desfolhadas
enquanto jardins
cresciam em lábios delicados
de duas loucas desnudas
corpos nus no areal com mãos invisíveis a roçarem os ombros circulares
ritmo infernal de voz estridente a clamar por amor
vã é a vida dos fugidios instantes do apetecer
agora sim
poderei dizer-te
como é bom ter-te
as águas do rio subiram naturalmente
nas suas gelhas cintilam estrelas
passa um veleiro em bolina cerrada
para onde irá
sul onde o quente é mais quente
norte setentrião onde a terra é gelada
marear a cavalo na nortada
gente nas margens
uma marina cheia de nada
onde estão os navegantes
os sólidos pescadores
oh dores de portugal
que morre e deixa morrer
nos catres de farrapos transfigurados
a imagem lúcida da afoiteza
dóris gelados
nos mares cruzados
dos bancos da terra nova
ornados a gelo e névoa
uma viúva perdeu o marido
pelo seu filho agora reza
erva orvalhada
por destino o solo desprezado
quando eu morrer
não chorem esse é o meu desejo
não quero sinos a tocar disparates
não quero velórios de bonifrates
cantem
façam amor
embriaguem-se
bailem
tragam do ancoradouro o meu veleiro
lancem as minhas cinzas ao tejo
meia-noite na baixa-mar
rio dos meus amores dos meus pecados
rio das perdições
dos corações despedaçados
rio em que nas noites prateadas de luar
como ninguém amei
e foram tantas as que beijei
sexo penetrado
à vista do mar
ao abismo o que é do oceano
terra é para homem pequeno
mar para quem temerário
o soube defrontar e amar
as mil mulheres que tive os quartilhos de vinho que bebi as mil e uma noites que vivi rindo e sorrindo à madrugada
viço e lascívia estúrdias e luxúria
casas que frequentei boa e má fama
perdulário na penúria
avaro na abastança
leitos de solteiras
divorciadas
casadas
alternadeiras e
rameiras
famas e camas nunca me faltaram
façam peregrinações a casas de orgia
levem rufias carteiristas proxenetas
pelotiqueiros calaceiros aldrabões
femeeiros arruaceiros
gastem a soldada o vencimento
a pitança
não ouçam as vozes adormentadas do povo
encham as mesas de mulheres e vinho novo
soltem risadas à minha lembrança
que o tempo passa e só vos levo a dianteira
lembrem que em cada hora morta
pensei mistérios desvendados e por desvendar
chegando até onde o entendimento humano pode chegar
pensando tudo o que há para pensar
não não quero mágoas
pesadelos
saudades
tive tudo
o que tinha de ter
fiz tudo o
que tinha para fazer
e
nos rochedos do cabo escrevam a vento e sombras
aqui jaz o que não lamuriamos
com setenta vezes sete vidas vividas
de alegrias felicidade êxtases e dores
nos parcos anos que deus lhe deu
e acanhadas férias que a morte lhe concedeu
navegante de corpos almas e mares
amante de vinho mulheres e tempestades
seios de navegantes
corpos firmes
na crista das ondas
o luar
desce sobre o mar
a proa corta o silêncio
e além fica terra
grilhões da liberdade
acorrentados à verdade
à mentira e à saudade
e o desejo
lá está
que já o vejo
do topo do mastro
sombras chovem descontinuidades enquanto me movimento no precinto sem tecto
há um santuário doirado efervescente no fundo do coração em chama viva que erijo
um poema em cada verso por rimar
hora de orçar o alento
tempo rijo
marear em águas temperadas na robustez do costado
fenda na alma tapada com estopa alcatroada
agonia que corrói as entranhas momento azul
a tarde não deslembra o crepúsculo matinal
as velhas
vacas amamentadas pelo suor dos ardinas
basculham a sudação sobrenatural das marafonas atlânticas
surdina da fome de mar no tentáculo ofendido em seus tendões
as nuvens chovem
no meu movimento
quando paro
ressaca nebulosa de vaga paradoxal
anelo de temporal
veleiro expirante na rota impossível discordante aos alíseos dementes
dedos de mareantes colados à cordoalha disforme
a partida e a chegada dos cavaleiros
bandeirantes da decrepitude
descobridores do entejo
do tejo parto imagem de nossa senhora dos navegantes à proa
sem saber se retornarei ou não
pela torna-viagem uma loa
trovões nascem das nuvens
não entendo o correio
não é de quem deveria ser
anos de anseio
inconformado debruço-me no molhe do cais
prateada a rebentação nos penhascos ameaçadores
pobres são os pescadores de amor lunar
pelas encostas do céu rolam lágrimas
são de sangue as mal-afortunadas
mais salgadas que as dores marítimas a desovar suicidas
partiria contigo para qualquer povoado
indemne à fala
tudo seriam idas sem volta
é tarde fiz com que o fosse como se o tempo não passasse em arrebatada corredura por meus cabelos expostos ao vento da maré-viva setembrina
purpurina boca lábios de cristal dedos de sândalo
que não mais verei
brilha a paisagem ao remontar do mensageiro o pescador de búzios a rede enreda-se nele
pára
demora-se como navio de temerários a costurar destinos elípticos semicírculos de águas frias nas montanhas circunspectas portas entreabertas aos leitos desfeitos por magalhães conduzidos ao chapinhar nocturno das raízes do medo vão mais de cem e voltam pouco mais de dez sem paixão e com esperança
assim respeita a vida de velhos mareantes o senhor dos mares
os paus ardem na lareira do ventre
a desordem instala-se no navio embriagado a sorver cardumes de peixe miúdo na cave da catedral em ruínas
obsoleta como o velho diácono purulento
ossos de náufragos buscam na página de um atlas os seus complementares
há um odor
a razão
na maré a vazar
e o capitão encontra o astrolábio na ponte derretida pelas correntes
dos antigos arneses
acorrentados ao destino
novamente esta vigília esboçada em sombras áureas no porão da galé onde os penitentes espectros da noite vogando em escuros trirremes
rondam a lua circular comovidos pelas lágrimas dos indigentes prateados
ah as ilusões em fúria sorvida em pequenos goles de estanho
os estúpidos apegos nadando à superfície das cabeças transparentes
os corpos trespassados por vagas palpitantes de árvores dobadas pela cegueira
há um sossego voraz um silêncio mordente uma luz ardente de música que no coração em chamas ecoa
momento de amotinação a espalhar quietação na planície alvar
movimento de asas incapazes de voar
não fora a fraqueza da ralé devorada pelo atrevimento da auto compaixão
reles e verminosa na medula corroída da ousadia
o firmamento desabaria nos crânios esmagados por albatrozes
o fogo do amor
consome a forragem
do passado
o fogo extinto da misericórdia
enterra os seus mortos
o relógio da torre há muito que não bate as suas lânguidas horas e as palavras fluem flamejantes na inutilidade do vácuo
afinal
onde está a oração salvadora do náufrago moribundo que se veste na sede púrpura da ilusão
no cais de pedra enegrecido pelo lodo milenar a viúva do tempo carrega longos gemidos e solta ao vento de sueste esguios ais
a vida foi-lhe madrasta arrancou-lhe dos braços parasitados por veias salientes filhos marido e a vontade de viver
nada a convencerá a permanecer entre os vivos
uso as minhas próprias mãos
para golpear o medo
as unhas embebidas em veneno
rasgam a angústia
dilacerando o sexo
modelando
o manso coração da alba
pouco falta para que o dia nasça com toda a sua turbulência mesquinha
lá na lonjura o apito funéreo do navio que entra a barra singrando o nevoeiro denso da pele crespa dos últimos amantes
velas desfraldadas de lábios carnudos em tempo de geada
e há um prazer imenso em tudo isto
enigma do próprio mistério
construído por estilhaços indecifráveis
saber que ninguém me irá ler
revolta-se o mar quando o vento nasce no fim do outono
na casa amarela do lago ela penteia os seus longos cabelos
cedo cantam as cotovias no cipreste solitário
no quarto a mão escassa não se abre à cintilação das pétalas rosadas
quando a neve começa a cair à beira-mar
amor morto derramado no regato da montanha
estio voluptuoso das tardes quentes da carne
porquê aguardar por um tempo que nos foge
os anjos da clareira dormitam taciturnos sem que os sonhos os caustiquem
os anjos não sonham com édenes nem abominações e aos seus quartos não têm os amantes acesso
em nossos corpos não há tédio quando a nudez reflecte o anseio
nem no sangue vivo que rebrilha de inocência pecaminosa se acendem as luzes da cidade alagada por sémen putrefacto
lâmpadas que se incendeiam nas ruelas desvirginadas pela concupiscência da aurora
desfloradas pelos ébrios passageiros da noite
o último metropolitano apaga-se
o nevoeiro pousa delicado
nas verdes varandas estéreis
corpos em velas vacilantes
fanfarras dos portais da escuridão
pés feridos na respiração cortante
imersa em azul azedume
num leito
de mar
te penetro
no ermo árido o vento desentoca os ossos furibundos
contentes as folhas de árvore em turbilhão embrionário
nas pedras negras uma flor sonolenta desperta do fingimento da escravidão sôfrega de mágoa
o navio tumbeiro prossegue no grande mar oceano
um grito ecoa
troco metade da minha existência pela pele de um ofídio
pus dos recantos inóspitos da humanidade
e a outra metade pelo olhar meigo de uma pomba
pela luz da mais pequena estrela de cristal
olhos lacrimantes
onde se inflamam
alvoradas selváticas
hora da palavra transmudada em gládio
serei sempre capaz de adivinhar as tuas dores enquanto teu tal pedra fulva lançada às estrelas e que no interior das corolas feitas a cores aguarda que a lapidem até à vinda da morte
vieram de toda a parte sem saber ao que vinham
os seus túmulos terão coroas de flores garridas a murchar aos olhos das longínquas galáxias
eles o povo que ninguém ouve e todos desprezam
mulheres crianças velhos registados em vórtices de portos e abrigos bárbaros do atlântico norte donde voltam na amotinação da crista das vagas quando o mar suspira de grandeza nos molhes do cais
e eu no teu interior
flor
ergo-me nas cinzas do vento
o vento murmura ao céu rosado
repara o castigo que te dou
sorte corcunda
em breve serás pisado
até à exaustão
como ave migratória colorida em ramalhete que se detém no muro das estações
fiz tantas viagens
tinha tantas viagens para fazer
bosques selvas ilhas germinam no meu cérebro
solidão e cansaço
lanço uma âncora bifurcada nas profundezas da alma
uma peónia nasce em terra estranha
insectos de cena tardia repetem-se nas mãos de homens-fósseis
sem dó nem piedade
amanhã o mar será uma inutilidade
do tamanho do meu medo
o galo canta
tenho asas posso voar dentro de mim até à sombra das sensações
há palmeiras rodeadas de rochedos
há uma geada eterna no sopé da montanha e
um rio que corre para nascente
nos cabos gaivotas cruzam com as asas os raios de sol
jardins ornados a vagas e sargaços vesiculosos
tudo em mim floresce
é penosa a largada e apetecida a chegada quando não é mais dolorosa que a partida aflitivo contra-senso mas natural tão natural como o frio num dia de inverno e o calor numa tarde de verão
o mundo parece ruir no coração firmado à angústia
constrição sem regeneração
quando se abala nunca se deve olhar para trás
tal albatroz-errante a perfumar nimbos oceânicos
tudo é jogo do mental
cara ou coroa
da existência
permutar regalos mundanos pela reclusão silente
quietude liquefeita na chama de círio que alumia as trevas de noites duráveis
o azul de klein evoca o mar do entardecer quando o sol já cabeceia no horizonte e o veleiro vai trovejando nas águas
o ocre dos velhos paisagistas românticos no cume da serra que fala às estrelas
e aqui há que eleger
sonhos da noite passada dúvidas e irresoluções que fenecem no desabrochamento da flor da cerejeira
expiram na lentidão do remanso sedentário todos os desígnios
a alucinação de um novo bem-querer do espírito a abjurar temporariamente a carne
o clamor da serrania nos magníficos ossos da terra e nas veias de águas sacrossantas
o luar que o mar
irradia cor de prata
congregação do azul no trilho do infinito
não posso ter tudo pouco me afecta ou preocupa
há que escolher
talvez o mar talvez a serra
que seja o que tiver de ser
noite de clausura
amanhã verei veleiros armados para o derradeiro acometimento cruzadores do grande mar oceano onde mostrengos e seres estupendos se erguem
essência da solidão de probo mareante
irresolução angustiante
o mar clama por mim
ouço strauss há muito que o não ouvia
trivial é a sonoridade dos grandes santuários apinhados de estultos
a iluminação é o entusiasmo do amante que nunca tocará a amada
mas que divisa como ninguém
o vazio dos empreendimentos
a vulgaridade do êxito
o nada do empenho humano
o sem-sentido da existência
pobre humanidade que se arroja aos chispes de ídolos de barro que se peita por pataco infeccionado de duplicidade que vegeta nas pedras abrasadas da ilusão
áridos terreais viscosos
nojo
derrotismo e desesperança
não espúrios atlantes
ratificação do enlevo temerário de quem perfilha a realidade no cerne demoníaco da civilização dissonante
enjeitando as raízes fulgura a débil planta
as candeias afoguearam a bezerra sacrossanta
avistámos hoje a filha dos céus
deusa da aurora dos penitentes
atiçou o fogo dos mais deleitáveis manjares
e saiu na tipóia dos entes
radiosa a jazer no seu leito embriagado pelas faces brancas da brisa primaveril revelou-nos a perda da sua virgindade
embrião enorme a varrer o pórtico do arco e flechas de terno amor
que frescura tinha o seu sorriso
esbelto seu sono
longos os doirados cabelos
nascimento de nova vénus
com as horas o galo cantou
sem tino sem destino
canção de aventura no mar
voz límpida de água clara
fonte de harpa a tanger
a palavra amar
não há terra
as montanhas foram engolidas pelo último dos homens ingovernáveis
mar sem fim voz doce de encantar
que albergas as sereias das noites de insónia
o deus do lar está ausente
saúdo o sol que nasce na curva do horizonte
tristeza que se confunde
com a estrela da manhã
lá longe tanta é a gente
num laranjal três virgens
testemunhos da volta de mar
ventos erécteis abraçam-se ao luar
purpúreas rosas em veloz esteira
luto da chuva de primavera
nau que dormita em melodia do eterno-minuto
enquanto na costa arriba
com monotonia
velame que o diabo carrega
suplícios da loucura riem-se de ti os insolentes
tempo da simbiose
alma enternecida
tu que nasceste e viveste na cidade cinzenta que nunca viste o verde-vivo da floresta não tens o riso infantil do outro hemisfério
a velha casa sofrida
tantas rosas morenas
a esmorecer
nau
que navega
o luar de prata
recorte da costa no momento em que os seus contornos mais brilham
ah navegante errante
a voar com as nuvens
nos cornos do vento
arrefeço as chamas do coração
ergo-me do abismo
arbusto em flor
clamo pelo teu nome
o vento cola-se-me às mãos
o sol brilha na escuridão
o gelo aquece-me as carnes
pelos degraus corroídos do cais desço à plataforma de embarque
destino improvável –
o sem nome
que importa se a vida é breve
a noite é durável aguardo pela opacidade
o vento desliza na folhagem das árvores
a lua cresce na abóboda ofuscando as estrelas
calçadas na estrada das almas
santiago
deixem-nas passar não as perturbem
não afrontem quem escolhe a via dos roseirais e das andorinhas primaveris
negras
negras
anunciadoras de dor e vida
o negro é pesar alegria e amor
amor
deus conturba-me a alma confunde-me
desperto com o espírito obstruído pela obsessão
deus
alma
alma
deus
vai persistir todo o santo dia
um impulso irresistível à oração
silente como a profundeza do universo e a fundura do espírito
palavra inacessível ao avaro e ao ganancioso
a razão é um rio que corre para nascente
um carrossel tresloucado de uma só rédea orbicular
a minha vida veloz em movimento de extinção
que a razão morra
nos braços da intuição
da sensibilidade
da paixão sem oposto
que a leve o diabo
a noite é estável demando minha alma cerrando os olhos
já só consigo contemplar as ondas do mar
afinal sou o mareante de outrora
navegante das brisas insondáveis
piloto de vento da quietação
criança marítima
hoje e
para sempre
aguardo pelo meu veleiro assim lavrarei nos mares o silêncio das águas e ao timão fundearei no que é dentro de mim
angra dos adoradores
hei-de beijar o alento que meu ventre acolhe
o meu barco é a extensão da minha alma
sou o meu barco o meu barco sou eu
âmago da unidade
e o espírito de deus a pairar sobre as águas
à beira-mar estás
corda de lira retesada
corpo prateado de luar
em vela enfunada
longínqua e surda
uma onda desperta
e o forte adormece
nas rochas azuladas
que escurecem
caminho para ti
nas dolorosas pegadas
que não desaparecem
pedras de fogo em explosão narcísica sustentam a brisa que vosso corpo colhe
o céu brame encarcerado na abóbada de musical claridade
o mar desfaz-se em escuma
sémen que a areia feérica recolhe
e eu da falésia sofro e calo
por não vos poder amar
movimento diurno da provação fora a nortada fustiga o mar encapela-o de cinzento com a verdasca ressequida dos últimos guerreiros
um veleiro no meu espírito
uma quimera em meu estreito
arbítrio imponderado
corpo que em sonho me tenta
em pobre verso lírico
depressão sanguinolenta
escolha adiada
logo haverá luzes no terreiro e sonhos com mulheres de diamante
bainhas talhadas por deuses em cópula ungida a mirra
o som de mozart inunda o aposento
mozart não é gente é sinfonia ou quarteto
mozart não existe a sua música sim
o mesmo me irá acontecer a mim
permanecerá toda esta palha humedecida sem préstimo aguardando a queimação
uma escala de fá sustenido alaga os corpos irrepreensíveis da aparência de meretrizes e das filhas dos deuses que penetro no sono rudimentar de ancestrais desejos
a alma ferreamente apertada por cadeias de aço detona
escuto-lhe o impulso
que mais hei-de eu fazer
que mais poderei querer
a carne o sestro que encandeia borra de negrura a mantilha nívea da probidade adormecida em suave leito azul-celeste enquanto o vento ronda para leste
o dia está pintado de castanho as estrelas caíram desamparadas no lago onde ardem os lenços erguidos da mocidade tão inglória quanto inútil
delícias da carne a roçar os penhascos intransponíveis a cada noite capitula a tua virgindade como ramo rubro de papoilas silvestres
o prepúcio rende-te homenagem na leveza do voo onde abundam as vozes da infância
as casas são recentes e tingem a paisagem civilizada de infeções oftálmicas
é este o soberbo mundo das inestéticas mãos frias cinzeladas com ressentimentos aguçados
o céu negro tomba retumbante nas águas apodrecidas das comportas
charco do coração com o pecado ao lado junto ao fundo acre que sorri à criação desastrada
que cada um siga seu caminho
estrada da vida
rumada no meio do mar
perto te sinto se te afastas
nuvem que peregrina em melífluos aguaceiros
barro e cinza barco vaiado pelas vagas de espuma
cidade desaparecida no lodo com todas as suas flores e pomares
frondosas árvores cessam o pranto dos caleiros do céu
tempo da rosa sorriso de noite morta
chegaste para logo partir brisa do levante
sol do meio-dia onde os nevões vão perecer
interpretar os sinais dados em pesadelos nublosos
tantas as vezes que o disse tantas foram as que o sonhei
a noite é minha como é o rumor da brisa nas árvores gigantescas que circundam o terraço
adio constantemente a partida
uma hora de sono
apenas uma
aguardo o meu veleiro
levá-lo-ei nas noites estreladas pelos mares prateados
dormindo ao leme por instantes
e para sempre no derradeiro momento
ele ouviu a minha prece mas não compreendo a sua palavra
que venha dando-me a angústia ancestral ou um doce estar em absoluto remanso
ouvir uma cantata enquanto a manhã não germina
que venha
seu esplendor
meu cansaço
nua na areia
praia deserta
da nossa paixão
a espuma
envolve teus seios
redondos hirtos
uma gaivota
espreita
o movimento
gritos
de êxtase
agitam o mar
mares que gritam na tapeçaria que não desvia o sorriso das velhas histórias de ninar
no poço da minha alma a cerejeira está em flor
insuportável dor do grão maduro em embaciado olhar
se outra vida não há porque é tão ingénua a alma assim vestida e tão cruel o suplício que o corpo arrosta no coração quebrado
os pés sobre a terra na água a graça do cisne no ar as cinzas das trevas nunca pares avezinha voa na minha consciência suspensa nas altas varandas de capitéis doirados esvoaça sozinha
errando de olhos fechados pelos túmulos secretos cavados no seio da procela fogem-me os sonhos pela porta aferrolhada
da janela crepuscular voam andorinhas negras
pobres que entram no meu inferno e apodrecem como fruta no mármore que se cala
o mundo em chamas
arde
o ódio
e a coragem
incendeia-se
a angústia
e o sofrimento
ateia-se
o pranto e o lamento
tudo se confirma
em flamas o firmamento
sinos cálidos de minha aldeia altas torres por onde a lua espreita
uma espiga de milho dorme nos pedernais
é ali
que o pastor
naquele luzeiro
do sete-estrelo
sonha
suplicante
e
que a doce boca
sufoca de ânsias
sonhos de ontem nascidos ao som do luar
vento oblíquo nas carnes invisíveis dos cedros ancestrais do ermitério abandonado
o bosque agita-se
longe o cismático mar
e o coração de todos os afogados
labirinto de barcos naufragados
tranquilamente afundados no sangue aberto
ramos de loureiro ferido de verdades
na curva do rio as pombas são sombras nos beirais
luzes esverdeadas dos pinhais
onde as cigarras esmolam eternidades
os corpos arrastavam-se na noite salteada de luzes mudas de prédios adormecidos habitados por carne pútrida
ali ninguém perguntava à vida a essência da morte
passavam simplesmente
ou
sonolentos cerravam os olhos ao som de uma televisão surda e insensível
algumas crianças ainda brincavam com jogos de imagens terríficas enquanto no quarto ao lado os pais consumiam em segundos a última erecção
o rio corria lento na direcção das américas com as mágoas à superfície e o pecado acantonado na escura profundidade
cintilavam almas nas cristas das pequenas ondas de marfim polido armadas ao capricho da brisa da memória
alguns pescadores deitaram botes às águas acorrentados à proa por frágeis cabos desfibrados
vagos pensamentos sem nexo das ruas desertas da cidade
as reflexões dum povo literatura-de-cordel reinando ao faz-de-conta da sensibilidade da última claridade lunar acomodavam agora a almofada de plumas dos sonhos
no meio do rio levantei âncora depois de ter bebido o sumo acre da última meditação do dia
icei a grande apoiado no mastro a penetrar o insondável céu negro
desenrolei a giba da amargura
o vento variável ajustou-se à medida do meu coração alado e com hálito perfumado de jasmim enfunou os panos
quantas milhas a percorrer
quantos nós sacramentais serão servidos na bandeja de prata pela brisa-do-amor
o rumo incerto em bordos consecutivos
o certo abatimento do bordejar
atira-me para um imenso mar de dúvida
na miragem da terra prometida
olho para as margens com seus bares-mulheres
risos palavras pesadas na balança dos sentidos
viro de bordo e a cada viragem os desejos abatem para terra com o velame a bater descompassado
e os cabos de amarração seminus a vogar ao sabor das delícias enfeitiçadas que nenhuma oração excomungará
aterrarei alguma vez na terra prometida
dúvida existencial
barcos doirados no horizonte
o trevo das ondas florido
a brisa de leste
a golpear o pescoço
a eira e o canto da mocidade
já não repousa no teu peito
a criação dos mundos respira ofegante
no reino das trevas enquanto o sinal
dos tempos é exibido nas garras sagradas
a água dos oceanos engoliu-se a si
o sábio da negra muralha
esquecido de tudo
até de si
limpo de mancha
olha o nenúfar
embriagado
que há cem mil anos vive
noite escura
a rua começa a encher-se de esquinas e o mar crucificado entre sorriso e pranto oferece a sua dor aos deuses
tanto eu amei
tanto eu vivi
fui amado
odiado
pelo rubi que carrego
sempre o mesmo tédio
sem asas não voltarei a amar
sem o sonho que sobe a colina ao adormecer
com as árvores a fitar o corpo não voltarei a sonhar
voámos no céu azul com a mente confinada à espada de aço maduro sem nenhum mistério entender sem ninguém que nos pudesse valer
o azul
é infinito
no céu e no mar
pouco mais há para conhecer
veio a tempestade com a sua purificação arrastando barcos para além do mar
corpos desmembrados do espírito
casas destelhadas dos jardins
e um bando de aves
sobrevoava graciosamente os céus em formação
chaminés incendiaram-se
ventos protegeram os corações empedernidos dos burgueses
carregando para os covais
o caixão das almas dos pobres
a cidade dormia à superfície
acordada nos subúrbios subterrâneos
onde se gera a violência das luzes anónimas
por baixo
as formas suavam incandescentes ao som de um quarteto envolto em nebuloso fumo de vozes estranhas
roucas
recalcadas da fama
numa busca miserável
de sossego e concórdia
que descansem em paz
***
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