Download dos textos de ANTIPOESIA ou a insustentável arte da falsa erudição em –
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donde vens
viajante
do céu
do inferno
não
desconheço tais cidades
aéreas
submersas
não conheço suas leis
se nem tu as conheces
que poderei eu saber
para além do que já sei
a noite cai
há um silêncio devastador –
eu não penso
o vento sussurra nas folhas
as trevas iluminam-se
o vazio enche-se de deuses
a ansiedade amaina
da inquietude nasce a paz
no suave ronronar
das águas do rio
uma ave pia
tudo pára
ao encanto da sua voz
adormeço
numa fogueira de velhos galhos adormecidos queimou todos os livros sagrados
cremou todas as religiões todas as ideologias
das cinzas
nasceu o
salvador
que em novo lume
lhe queimou o ego
derrubou todas as muralhas
e daí
nasceu o amor
não tinha ninguém
mas parecia ter toda a gente
suportava heróico a solidão encurralado no átrio do palácio das mil e uma vozes
o luar brilhava nas paredes do silêncio com testa de marfim
a ramagem da árvore do acaso penetrava sorrateira nas duas janelas opacas de arte contemporânea
e as aves descuidadas faziam as necessidades nas telhas do vigamento e do ripado sem telhado
era um lugar secreto
para um homem só na multidão
há um sudário no céu
há um sudário na terra
e um homem que nunca repousou
morrer
talvez
antes morrer do que viver
eternamente
a sofrer a cruz
a pronunciar orações populares nas horas de angústia e tédio
virgem maria
minha guia
vosso manto visto
vós sois meu escudo
vós sois minha espada
se alguém mal me quer
se tiver pernas não ande
se tiver braços
não desande
se tiver boca
mudo fique
se ouvidos tiver
surdo seja
se dos olhos vir
cego me não veja
porque vós virgem santa
luz da luz
minha madrinha sois
para sempre amém
jesus
rio-me de ti crédulo penitente
no instante do crepúsculo
à tarde tudo muda
na terra odiosa martírio de loucos
pobres do dia a apodrecer
desgraçados sem fé
pó levantado os cega
no deserto
das luzes moribundas
oliveiras de sangue
ataúde em carreiro
humilhado nas colinas desertas
flagelado desde tempos ancestrais nos flancos do seu reinado demorara-se nas estrelas
pingos orvalhados de luz a marcar compasso na composição celeste
as árvores olhavam-no com os olhos semicerrados e
enquanto a lua deambulava quente as rochas ardiam na confissão que às pacíficas nuvens faziam
jovem rei de verso imperfeito a dividir afectos aos ventos do serão das noites frias de verão
o ar fresco corria-lhe nas artérias
implacável era a chuva a tingir a terra de vermelho
depôs a espada do ódio vencido pelos nevões amenos do poema
viajou nu
bateu às portas de todas as cidades com as lágrimas escondidas
nenhuma se lhe abriu
as pedras eram a sua leitura os trovões a lamparina e os seus ossos molhados a certeza da viagem no coração dos pássaros a rastejar no chão do espaço
houvesse um deus e deixar-se-ia levar
um promontório onde ficar
asas para voar
incerto no rumo triste do caminhar dos lábios a sangrar beijos
não me culpo a mim não te culpo a ti
não vos culpo a vós
dos pecados que cometi
a minha
a vossa
qualquer
voz
que na minha
alma ouvi
no fim
haverá
castigo
ou perdão
inferno
compaixão
talvez haja
talvez não
e se a houver
- a ela a compaixão -
se ele a tem
na concórdia
do erro
com a
divina justiça
a misericórdia
hei-de alcançar
daquele
que o mal
não distingue
do bem
amor pisado
pelos mortos antigos
de mil flechas
aguçadas
quero partir morto de tal sorte
como sol encoberto
no planalto
a terra treme
o rio galga as margens
assim me afundo
assim parto
no senhor deus
que a liberdade
me deu
uma dor aguda expansiva
penetrava a essência da beleza
rasgava o corpo em dois o amor em três
sacrificado nas colinas a sul
livre da ambição
ardia sem fumo
e todo o meu ser tremia
a chama brilhava incandescente no topo do bloco de pedra inerte agitada pela brisa do entardecer
recitava em silêncio uma oração sentado nas ervas da orla do campo cultivado lado a lado com flores silvestres
sonolento preparava-se para dormir ao vento
garrafão de vinho novo ao lado por abrir
era cedo para beber dos deuses a bebida deles preferida e de si única amiga
a aldeia dormia ofegante entre postes de madeira
o galo ainda não cantara
numa janela espalha-se uma luz
alguém se prepara
para mais um dia
de miséria
chegara não se sabe donde com seu sorriso luminoso e olhar cintilante
as flores desabrochavam nos seus passos
os cães uivavam na profundeza das suas entranhas
e os seus gestos afáveis de criança eram embarcações lançadas ao mar bonançoso
nunca iria dizer-nos nada absolutamente nada do que sabia
para sempre omitiria a verdade
sentado na carruagem do esquecimento de si e das recompensas
na paisagem corrida apenas a humanidade mergulhada em doutrina impura de ídolos sacralizados
o véu do tempo beijou o sono primaveril inundado pelo cantar orgíaco das cotovias
afinal somos todos fantoches
na capela lateral a santa olha em todas as direcções atenta aos pecados soletrados por velhinhas e antigos escravos de negros porões
à tardinha ouve-se o perdão de uma ave-maria
espero em vão as penas do purgatório enquanto tu segues o rasto da lua nova
os bosques densos e verdes com árvores em flor esbracejam
em terra alheia me perdi
em noite longa me encontrei
já vivi numa estrela
azul
fazia a travessia do mundo com lenços brancos a acenar
no cais de pedra negra confessor de todos os segredos que podemos ter que se podem dizer
agora vivo
numa mansarda
verde a amadurecer
enquanto no infinito
num dos seus pontos
estás tu
esplêndida
fonte de luz
na noite eterna
viajante sem norte movendo-se como esmeralda
imóvel nesse e em qualquer outro lugar
centro do infinito
eterno retorno
chegaram os primeiros anjos
cedo
tão cedo que mais ninguém ocupava o adro naquele dia de calor infernal
a procissão iria começar lenta
com o senhor ajoelhado no andor
a suar sangue divino
o corpo inclinou-se junto ao altar dos sacrifícios
a luz do ensinamento penetrava na pele porosa e crespa alheia à palavra e aos ditames da razão
nunca mais seria o mesmo
o coração transfigurou-se
os sentidos penetravam a essência das coisas mortas naquele movimento incessante da lua que rasgava lentamente o véu do templo iluminando o fio de poeira suspensa
ele ali estava como também no odor húmido do vale e para lá de todas as montanhas purpurinas
nascera humano
nascera homem
na casta mais elevada
em lençóis de linho ornados por rubis esmeraldas e folhas de oiro escondidas no mais profundo dos porões das naus
seguiu a religião de seus avós compreendendo sem entender as escrituras sagradas e em tenra idade acedeu ao eu e ao não-eu
de si para si atingiu o seu próprio si identificando-se com o sempre-eterno
libertara-se tornara-se independente
onde estavam os dois
não havia dois mas um
quantas folhas derramaram o seu sangue no solo ferido pela ave do tempo até que o atingisse
ninguém o sabe ou saberá nem mesmo o um sem tempo e medida
muitos foram os dolorosos nascimentos muitas as agonias da morte muitos os espinhos da vida gravados na trave mestra da casa das histórias
agora restava a luz do meio-dia sem sombras
em vão citavam as escrituras que diziam sagradas
tão sagradas julgo como os projectos góticos e modernistas das pedras aguçadas por ponteiro retorcido ao vento do sul
ofereceram como sacrifício um cordeiro inocente
do seu sofrimento escorria vagarosamente sangue negro
cumpriam escrupulosamente os ritos das basílicas como quem quer contar todos os pombos da cidade suja
adoraram deuses esculpidos pela imaginação delirante dos profetas em noite de embriaguez inundada pela luz ténue dos archotes das janelas adormecidas
nenhum atingiu a libertação
nem a iria atingir mesmo que vivesse
cem vidas de brama
fim de tarde
encheu um saco de moedas de oiro ganhas nas travessias do deserto de sal que lhe corria nas veias aquáticas e lacrimejantes
espalhou-as como pétalas aos pés do sumo sacerdote
falsa promessa escrita com perfídia na poeira do céu luminoso
a bula encomendada nunca o salvaria
a libertação não tem preço
nem qualquer acto astuciosamente construído sobre alicerces de efémera compensação
continuaria a nascer de mulher
a sofrer interminavelmente
até que a ausência do desejo
dulcificasse os seus sentidos
na rosa dos dias
anseio de infinito
sede de eternidade
numa tarde de outono com folhas a cair vermelhas violáceas doridas
deixando as pobres árvores despidas
na casa caiada branca e ainda amarelada pela linhaça
há uma luz que se acende
e aquela gente
- não os conheço nem sei sequer quem são -
talvez estejam a rezar nos últimos tições de braseiro de cobre
- penso -
da pequena saleta de inverno protegendo-se do inferno que na missa do galo devem ter ouvido pregar
esquecendo-se que o céu está moldado a estrelas e o mar um brasido a crepitar
a noite dura na impensável longevidade do cosmos
corre sangue na ladeira iluminada por velha estrela de prata
uma das poucas que a cidade desordeira não ofuscou
à porta da catedral de três bicos um homem de tenra idade jorra lágrimas efervescentes de sentimentos contraditórios
matara-o a morte do amor do ciúme do ódio e do rancor
aguardaria com as mãos crispadas no coração contrito o perdão dos séculos aguardaria sempre mesmo depois de morrer com o coração exposto no ventre aberto
o pastor mirava atónito o cintilar da estrela da manhã
os chocalhos irrompiam pelo renque de pinheiros montanheses vergados à violência das neves invernais no esplendor do desassossego íntimo da natureza inóspita
o céu atraía o movimento violeta dos olhos de prata e das brisas de caminhos sem retorno
anos de transumância de noites dormidas ao luar que nunca foi mais do que luar porque se fosse mais do que luar já não seria luar e seria certamente diferente
história simples da simplicidade agasalhada num capote de palha entrançada sem cama sem avidez com sonhos de calor mutilados por mãos descobertas orvalhadas gélidas mãos doridas rasgadas por cicatrizes de amor olvidado
à frente um dos cães na vegetação solene e rasteira ordenava o rebanho na demanda da erva fresca do planalto do cabo do mundo
daí poderia cair-se no último dos abismos
a partir dali o desconhecido sem espectros abantesmas ou delírios
o olhar cessou nesse horizonte infernal e
fez-se luz
caminho com o destino de mãos dadas com a felicidade do dia
morte do sofrimento passado
sem que saiba ao certo
donde venho ou se sou eu que venho
ou um qualquer espectro sombreado a bronze
companheiro deste outono
ligeiramente matizado
de prazer e dor
desespero e esperança
ódio e amor
trombetas tocai cinco notas
cantam momentos de sol bastantes para iniciar a marcha
cuidado os morteiros os canhões a cobardia dos varões destinados às medalhas de oiro vermelhas
papais
as moscas de vinte patas pousadas na mesa morta anunciam a chegada de novos cadáveres juvenis lívidos
pombas de reino cinzento ceifadas
que tudo esteja feliz e contente
eles morreram jovens e belos
nós vamos morrer amanhã
se deus quiser
se deus quiser
sentado à porta da taberna num enorme copo de vinho amadurecido por longos dias de espera deixou cair a cabeça nos braços ressequidos
o vento sulcava-lhe as faces enquanto ouvia o rumor da folhagem da dócil tília
não havia nele qualquer impulso psíquico para além da vontade de beber a vida no escuro néctar avinagrado
nem querer
nem conhecer
nem ser
estou em casa pequena casa de pedra
a gruta
cada vez mais sozinho
não porque o não queira mas porque o quero
poderia dizer
aqui jaz
em vida
sentado
em banco
de nogueira
quem só
se diverte
e só
em paz está
deixem-no estar
não se atravessem
no seu caminho
que o último dia do mundo será um dia de outono com as folhas a cair como lágrimas na terra fértil por arar
a humanidade irá recolher silenciosamente aos túmulos abertos pelo coveiro do universo dividida em covais cinzentos onde botões de rosa murcham
aves elevar-se-ão nos céus e apenas elas habitarão uma nova existência de sonho e bondade
a chuva copiosa ácida nivelará todos os contornos até que o fogo sagrado a extinga reduzindo-a às cinzas do presente e do passado
só aquele que mergulhou o espírito no lago do conhecimento e que percorre a vereda luminosa da realização
renunciando ao fruto de todas as acções
entende que só o pedaço de corda visível ao crepúsculo é real e irreal a serpente venenosa gerada por imaginação febril
nem as águas sagradas e envenenadas do ganges nem esmolas nem prânâyamas
nem as acções ainda que incontáveis como todos os grãos de areia de todos os desertos da terra o conduzirão à presença de brama
apenas a discriminação entre o real e o irreal
o desejo de libertação
a morte do passado e vivência do eterno-agora
permitem que a escravidão seja reduzida a cinzas
tanto tempo a procurar deus
busca sem fim na vereda vazia
afinal
teresa
em ávila
estava certa
deus
nas panelas da cozinha
sim àquilo que é seja feita a tua vontade
seja mal ou bem nem contra nem a favor
venha o que vier o que for
e o reino dos céus espaço infinito
nascerá em ti imenso oceano de amor
na saúde da alma
cada homem tem um tempo que está por detrás de tudo
exortação esquecida de pássaros a roçar ao de leve nas telhas do casebre do outeiro
as estrelas também têm o seu tempo
como o orvalho pousado nas folhas amedrontadas da berma do caminho calcado pelos pés acorrentados dos poetas líricos
na adega fresca e sombria estão os mortos de antigamente juntos com os de hoje
bebendo em taças com fezes de vinho mágoas cadentes
estalactites pendentes dos astros do firmamento
alguém chora escondido
- não posso nem devo dizer-vos quem -
agasalhado em velhos jornais e cartão
donde nasce acorde de viola
como corpo de mulher a gemer e a trinar
não chores digo
vamos juntos
mendigar o amor
a teus pés amor rezo esta oração
marca do poder de deus na muralha imberbe da existência donde brotam ramos de macieira florida de brancas flores
dobram os sinos senhor
chamam-nos zacarias ezequiel jeremias job e isaías
na agonia gemente
das crianças
sem baptismo
que são ser
e gente
nem crente
nem descrente
que à fome deixamos morrer
dobram os sinos penitentes
e com gélido sorriso em vendaval de sangue abrem-se as portas do paraíso às almas de luto vestidas
noite escura
os sentidos estremecem como canas ao vento sul
o pensamento aquieta-se na fúria do vendaval
no mais cavado de mim
um mundo errante por descobrir
espectro do porvir
ouvem-se os grilos em sinfonia fantástica
no fontanário deserto
cigarras em acompanhamento harmónico
o relógio da torre toca a ave-maria
passos
o pedro
- um dos pobres deficientes da aldeia -
mira-me com ar espantadiço
a capela do santo cristo de granito amarelo milenar ilumina-se
no silêncio o tique-taque do relógio marca compasso binário
as nossas respirações
a comunhão na paz sem orações
palavras ou emoções
serenidade de luz amarela
à porta da igreja matriz
sinfonia fantástica
na grande via não há que evitar escolher
há que trocar seja o que for pelo amor
onde não há nem mal nem bem
porque quem ama
não erra não peca
não engana ninguém
apego
aversão
dualidade e conflito
se o pensamento morrer há vida
se o pensamento viver há morte
quem é não tem
quem tem não é
esgotaram-se as palavras na bênção da essência das coisas profundas
milagre de humildade da suprema virtude cultivável nas silvas onde as rosas florescem de madrugada no silêncio do canteiro imóvel
um altar no templo escuro santificado pela adoração dos anseios e medos da turba supersticiosa mergulhada na idolatria do passado
as sementes germinaram nos passos caprichosos dos peregrinos
a vigília de amanhã arrastaria parte da multidão para a glória para o âmago do pélago
porque a magnificência do primeiro e do último dia é como cirro no céu bondoso ou sorriso de velha além-túmulo com uma garrafa de água bem-aventurada na mão
não
o pai de todas as vinhas demora nos cachos dos teus cabelos ondulados de salgueiro entregue à esperança
suaste neve de verão
sim
luz da manhã límpida no burel de morte que a vida enternece sugada ao teu amor
céu terra e mar num enleio divino de hora ditosa
seres sagrados
nenúfar do lago do meio
pássaro-paixão
guerreiros sentados
não tenho outros amigos senão vós
o eremita deitara-se em enxerga de espinhos
sem desejos sem dor
feliz rejubilou
nascera o vazio
que não era vácuo
era um instante amor
aquele que persegue o desejo de tocar o manto de deus nunca o tocará por ser desejo e o desejo muro fortificado
quando as dez mil coisas já não exercerem nenhum poder voaremos em liberdade
choro e não sei porque choro
- ou talvez saiba as razões -
choro e lamento
já fui forte
hoje o não sou
não me conformo
em terra de ladrões
choro porque
há quem em segredo
chore da alma
com o rosto erguido e a face calma
porque este mundo é bárbaro
bruta fera em covil grosseiro
vento agreste a arranhar pele de cordeiro
porque os governantes são feitos de pedra dura
que nenhuma compaixão perfura
imunes à dor na carantonha disfarçada
porque há crianças que morrem de fome
porque há mulheres que morrem de amor
e homens que morrem de dor
porque há mulheres maltratadas
escravas violadas
e crianças abusadas
porque há homens a sofrer
o pão que outros comem e
que eles haviam de comer
porque há guerras que matam
estropiam e decepam
os que com ela nada têm a ver
porque há tocas de oiro para os prestigiosos
fortes e poderosos
e para os oprimidos masmorras
porque há os que morrem de saudade
num quarto de solidão da cidade
e são encontrados a apodrecer
porque há crianças que morrem sem ter brincado
sem ter reinado
sem um único sorriso
porque há irmãos crucificados
na justiça cruel e sem siso
por crimes por outros cometidos
porque há tristeza e ansiedade
há melancolia depressão e agonia
em gente miserável no dia-a-dia
porque há quem noite e dia chore
e veja na cova funda
seu maior consolo e alegria
porque há poetas mortos
que me dizem a chorar –
ama e não queiras o mundo mudar
porque no meio de tanto pecador
de tanto culpado
de tanto criminoso
também eu o sou
por consentir no pecado
que me passa ao lado
e me provoca dor
então porquê
se a ele nada lhe falta
nada está fora dele
não tem metade nem centro
reino sempre inteiro
uno no múltiplo
múltiplo no uno
sem apegos sem aversões
esperei no mundo ver-te sulquei mares
cavalguei continentes terras estranhas
estranhas gentes
pensei ver-te
mas não
tu foste sonho foste miragem
névoa a esfumar-se na ilusão de brumoso horizonte
continuo a procurar-te
ora doce e esperançoso
ora amargoso e duro
sabendo que não irei achar
o que à luz do mundo me trouxe
deixara de procurar a verdade seus olhos cristalinos apontavam o horizonte
deslumbrados
buscava a falsidade e a não-verdade
a sua mente era um espelho
o seu espírito não-dependente
cada noite é uma tortura ou um êxtase
náusea ou alegria de viver
porque existo
existem flores nos prados quentes e muros que dividem desejos na areia ardente da tarde
o relógio não pára
envelhece repentino às portas da morte
dêem-me música e um corpo vermelho mudo de gestos e palavras
um jardim oriental e um caderno com riscas e pautas um caderno musical
uma valsa a fanfarra do destino intocável no rápido acesso à eternidade silenciosa
melodia tocada a medo por dedos gangrenosos que se quer magnífica e esplendorosa como as túlipas nos canteiros de vidro
existo só triste e corajosamente só como a polar
as conversas patológicas do café da esquina são suportáveis durante o tempo em que a ampulheta vazia se esvazia nas bocas imundas dos conversadores
depois há que retornar às pedras frias da cobertura ao silêncio dos telhados inundados de antenas exóticas aos pombos a desembarcar no terraço e ao deserto das folhas que se soltam dos braços inertes das árvores gigantes que ninguém vê
e porque as vejo sei que existo e existo para as ver
se tivesse fé não as veria como vejo veria cristo mas cristo não é uma árvore enredada em magnífica sombra cristo é só cristo e nada mais
o vento sopra no deserto das mil e uma grutas
varre com as mãos desarraigadas o ontem
monstro apócrifo com cabeça de leão corpo de cabra e cauda de dragão a rugir ignavo
carregai-o para os confins da terra onde o precipício se abre
depositai-o no espaço coacto do olvido onde a memória em descrédito já não penetra o espírito
o ontem morto sepultado o sem-vida
sem a inocência da criança subtil
leve
aérea
e miraculosa
ceifemos suas raízes inodoras e pastosas os tentáculos corrompidos pela culpa que deslustra a alma ferreamente acorrentada aos ódios às iras à violência e à brutalidade antipática do embuste
o profeta clama no deserto
que o passado morra hoje é um novo dia
dia santo no amor do instante
na graça de vosso deus seja ele qual for
o da eternidade do movimento brilhante e dócil
o que nunca cessa
as pedras espalhadas falam-nos do que já passou e que fica estratificado na mente repleta de fantasmas e vermes
o vento e a areia do que acontece e que ora aquece ora arrefece
sentimentos e afeições no pranto da asfixia no riso e na alegria dentro ou à flor da pele na delícia do agora-sem-tempo
o vento tem o seu tempo a areia revolta também
o vento cessa lentamente
mas o tempo do vento fica mesmo quando o vento já mais não existe e a areia repousa sem pensar no amanhã
oh a eterna inocência da natureza inumana a clarear as horas da essência sofrida dos vivos sem resgate
o mistério da vida
o mistério da religião transracional da trindade
há um mistério em todas as coisas mesmo nas estátuas que se movem de praça em praça evocando a morte do passado que se quer misteriosamente vivo e que teima em permanecer
aquela gente que se julga transparente ao balcão das lojas vazias nos estreitos labirintos do tédio é um mistério o seu próprio mistério na opacidade que guarda ciosamente um silêncio incompreensível e esotérico
na realidade possível e incognoscível
em surdina
a alma
quieta
nada espera
e no silêncio
se queda
o pote
de argila
quebra-se
no confronto
dos dias
já a vontade
estando lassa
e do desejo nem lembrança
paz que a alma
em sossego alcança
ah teresa de ávila se eu pudesse amar como tu amaste esse teu amado nesse coração doirado
que ventura que êxtases eu não teria
que homem-deus eu não seria
atendido por anjos em santos orgasmos nados a cada minuto num dossel abençoado
perenes como o céu
eternos como as orações
do filho crucificado e
pelo pai venerado
já não consigo dormir ou pouco durmo
nem os sonhos são inesperados
o papel branco cobre o teu rosto de texto
não tenho melhor imagem de ti do que este silêncio sulcado pela noite de coral
os meus olhos percorrem as conchas escondidas no véu das dunas
um relâmpago atravessa os versos abandonados na berma
o céu respira infindáveis anjos devorados pela vertigem das crenças geométricas
a dor faz-me frio sempre o faz
a saudade sabe-me à lenta morte dos oceanos
nesta nocturna sede de infinito
é tão breve a vida e se houver vida eterna como será a eternidade da alma
- mas eu nem sequer sei se tenho alma –
e quem é que se salva
o mundo engana-nos confunde-nos tudo acaba
penso agora com pensamentos fugazes que já vi partir os meus melhores amigos
onde estarão
onde estás tu meu pai
também tu nos disseste adeus e eu impotente paralisado pelo terror a ver o teu passamento voltarei a ver-te
não sei
ter-nos-á deus criado para vida tão dificultosa e para a perdição
- que sei eu de deus e da alma nada –
terei de morrer para saber digo-o não sei se bem se mal
que fiz eu da minha vida quando esquadrinhares jerusalém com candeias acesas irás encontrar-me como um degredado
a cabeça nas mãos os olhos cerrados encarcerado por uma legião de demónios no coração do pecado
que sei eu de mim nada
o dia finda as horas escasseiam preocupo-me com os meus bens e aparência
amores que tenho e tive
os meus miseráveis escritos que a ninguém aproveitam
os meus quadros borrões de cores
sem certezas sinto-te longe ou escondido
porque te escondes senhor dando-nos por testamento tão atrozes dores
permite que sem hipocrisia nesta noite assaz escura profira a tua oração e possa dormir em hora tardia contigo ao lado
porque quem ainda ama no
egoísmo como eu amo
quer sempre ser amado
a alma repousa no centro de todas as energias
plexo solar do eterno impenetrável casa guardada por deus porta sem trinco pelo vento aberta
venha o visitante que vier
insondável ser
paz que se transforma em ansiedade crepuscular do querer
negra andorinha de primavera a abrigar os dianteiros raios do astro-rei
que o meu vinho não seja o fel dos dragões e o veneno mortal das áspides
doce é o mel da quietude
como o sei
ninguém conhece o momento em que a luz dissipará o velamento da agnosia
ninguém sabe se apetece ou aborrece ao espírito do que tão escondidamente se esconde nos fetos do bosquete
não há quem distinga o cervo do amado
et verbum caro factum est
uma igreja
um altar
a palavra antiga
a verdade do sonho
colorida
por colunas e capitéis
pela fé
em folhas de oiro
entesourada
isaías
e o seu único senhor
louvai-o em lanciano
em santarém
na hóstia divina
a transparência
carne e sangue
que vejo
com quem amo
corpus christi
a imagem que não consigo esquecer
viva
ardente
igreja do santíssimo milagre
eu que duvido
que não creio
que ninguém sou para te ver
a imagem da tua carne
do teu sangue
ao meu igual
- a e também b -
não me deixa adormecer e se adormeço sonho nas chagas de teu coração
em teu fluido vital de vida a florescer na custódia sagrada
quando me darás um sinal transformando a tua carne na minha
um só espírito
num só corpo
livrando-me do mal
ave verum corpus
para chegar às paredes da alma basta-me cerrar os olhos
sem fazer qualquer esforço não me empenho na abertura do seu portal
sem que o veja nem que o saiba sinto que se esconde nas profundezas nutrindo-se de luminosa escuridão
solidamente solitário ilimitado limita-se voluntariamente
compassivo com raridade se oferece ao supremo banquete dos vivos de tão longínquos quanto iludidos
perdida no horizonte a união amorosa
o rebanho não se alimenta no campo acabado de lavrar
para o pescador é inútil o rio seco e a ave ferida não pode voar
quando a ave se cura faz-se voo e não pensando que voa vagueia indómita nos longos cabelos azuis matizados de branco-cinza
oração de silêncio
um carro azul na tarde misteriosa fresco como a madrugada na estrada entre a terra e a lua
culminação de parábola comovente na plenitude de canção tardia no vasto silêncio do pó que seca aos pés da madressilva
seja feita a tua vontade
quer de noite quer de dia
o deus dos terramotos e dos vulcões alcança a alegria nos costados do velho ofício
dói-lhe o corpo o espírito as palavras
está cercado pelo seu próprio fado por folhas secas
troncos sulcados por negras ovelhas
e no cimo das montanhas
fecha os olhos cansado
continuo na aldeia a igreja irá encher-se de mouros ou sarracenos
ora pro nobis porque não sabem o que fazem nem por que ali estão
ser cristão é saber benzer-se e ajoelhar no rumo sempre certo do altar
essa coisa da ressurreição é para os outros os que sabem o que fazem e por que ali não estão
missa de domingo ao sábado conveniência da insuficiente vocação de corvos coisa de judeus e idólatras
- mas o catolicismo é uma idolatria -
deus verdadeiro tende piedade de nós
perdoa-nos agora e no passado perdoa-nos o futuro dos nossos pecados
as nossas línguas têm a saburra da iniquidade e as nossas almas estão armadas com a impiedade viciosa dos nossos ancestrais
vivemos sobre os ossos e pecados dos nossos antepassados
o pinheiro do meu jardim impiedosamente serrado
onde está a sua sombra
onde estão suas pinhas
o seu odor
e tu meu amigo em que lugar foste abandonado ao sofrimento
à dor
da morte eminente
aquela casa
a minha
o meu jardim
é um cemitério
onde vossas almas
vigiam
será aí o meu eremitério final
procuro a minha alma nas voltas da insónia
o balde não alcança a água do poço sedento onde o sol não penetra
há pequenas flores amarelas e ervas nas suas paredes
gotas de orvalho teimam em percorrer a corda agora tensa
o perfume da erva molhada invade o meu cérebro
dando notícias da alegria primaveril de prados e jardins
da minha alma
nada
adormeço na superfície espelhada a escuridão
pela estrada um mendigo roto e esfarrapado a arrastar-se no cajado
a cada porta pede pão um tostão por amor a nosso senhor
as portas calam-se as janelas fecham-se e ao desgraçado chamam ladrão
sem que saibam
que é cristo menino
com fome
e frio
o escorraçado
erro atrás de erro no caminho da estreita via
retorcida a senda torta e entontecida
não paro
os passos cambaleantes transportam-me para um outro mundo de multidões exaustas pelos pecados que me atormentam nos nós dos dedos e tu senhor que devias vigiar a macieira dos frutos carnudos e as arestas limar navegas na barca da terra árida
mudo de compaixão estás perto de tanto e longe de tudo
junto a mim bebes das minhas águas comes do meu ázimo e conheces-me desde o princípio dos tempos decepcionantes
vês o meu pranto submerso em remorsos
os insistentes delitos
diabo porque não arremetes contra a lança do desespero e me soltas os parcos cabelos que não alumiam a noite nem ao dia concedem alegria
mostra-me a tua face ao escurecer para que durma à sombra das estátuas vivas da avenida florescente
não é em vão que te peço e me despeço ao adormecer nas ondas do mar sem fim e do céu cruel
perco-me sem ti
de que latitude parti eu que me desconheço
em que longitude sofro eu que me despeço
tudo é deserto areias sem fim
um coração que sofre arrancado brutalmente ao peito ferido
já nada sei
a noite aproxima-se eu sofro
e tu meu amigo como me és encoberto
és a criança pura com fome
a criança linda suja e rota
a quem a morte espreita
e a vida sem pudor repele
criança pele e osso
criança de olhos tristes
que ao mundo sem
querer ou pedir veio
criança do mundo
criança minha
não tenhas medo
só tu não morres sozinha
é também jesus menino
que morre em tua alma
branca límpida pequenina
as palavras são palha e exprimem um nada são mortalha nada que preste ou valha
perguntam a buda o que é o nirvana
ergue uma flor e nada diz
houve um que entendeu ananda não
mostra-lhe uma flor ananda olhou
compreendeu
não eu nem sei porque são tomás emudeceu ao êxtase de uma missa celebrada
a palavra é pensamento
e o pensamento nada
as escadarias sem fim
o céu longe da terra
o amor longe de mim
não haverá chegada
os derradeiros raios de sol secam taciturnos nas pedras milenares fundeando no plano onde a fereza das flores se aquieta
a transgressão dos nossos primeiros pais fervilha no sangue da aldeia que fora tão cândida como a antemanhã da reminiscência dos inculpados
ah a louquice dos que entram pela noite cingidos por cobertas abrasadas
nunca alquebram sem se rogarem ao anjo que os abriga na inspirada desolação do mal cravado no mundo
firmes são as garras
do bufo-real siberiano
recapitulam
a altanaria
das fotografias
patentes
aos tapumes
caducos
dos que se quiseram iguais ao altíssimo
transparentes e eternos como crianças-anjo
soberanos das melhores abundâncias
carne exsudada nas virilhas
os membros tais heliantos em comoção constante num lugar onde o mal extravasa das fontanas inexauríveis
a insubordinação da razão a neve da árvore da vida o ceptro do tempo em anéis de ardósias vermelhas
enclaustrámos os olhos e deixámos nas nossas costas a paixão
flor de todas as subsistências espermáticas
esbracejámos no mármore
nas estátuas de sal
nos espinhos acravados nos pulsos
no génio rural do rebanho
que se entorna na encosta nua e assimétrica
primeiro imortais
depois ressuscitados remidos do pecado original
o sol narcotizou-se no horizonte descontínuo
lua que a cada instante encarna em gente as quimeras irão trazer-nos na pua da lança o ritmo do inferno e o enigma da anopsia da mente
um livro com solenidade estirado na prateleira de pinho cor de mel
de seu nome onde não há médico
fechado e ocioso tanto quanto eu envolto pela aura pacificadora da casa pequena da aldeia
casa de inverno ou loja da burra como lhe chamo
a casa das bonecas como lhe chamava meu falecido pai
moscas desconcertadas poisam no meu corpo vivo quase putrefacto incomodam tanto como gente e como a morte dos dias lenta e devastadora
na janela um braço amarelo estende-se até à casa vizinha de meus avós há muito falecidos
as outras ruíram ao peso dos tempos intragáveis deixando por testemunho fragmentos graníticos
todos os amontoados da minha infância agora diluída nos lameiros do vale tristemente sulcado por um ribeiro sequioso
a igreja mesmo ali de mão dada com a capela do santo cristo no dia da sua festa estupidamente profana e burlesca
onde estão as minhas crenças de criança e os sonhos lívidos da adolescência
o credo inocente agitado em latim pelos lábios rosados a fé do século
tão puro na alva branca confirmado na missa incompreensível de todos os dias anjos e arcanjos que vi e ouvi o cristo que me sorria benevolente e compassivo da sua cruz de mogno
a quem pedia desce tu da cruz para que eu possa subir
minha madrinha que na testa me fez o sinal da cruz
maria a virgem azul celeste minha madrinha a mãe de deus e josé o patriarca meu protector
josé e maria o sagrado coração nas mãos bentas e calejadas do carpinteiro de almas
josé maria
livro de horas saltério vésperas terço
fé esperança caridade e amor tanto a beijar terra e céu unidos a queimar o rosto do sol abrasador do inferno do verão
penso nisto tudo
onde não há médico
onde não há deus
o deus que matámos
que se suicidou no mosto da alegria
deus que amámos e não amou
fonte que se esgota na fé que fenece dia-a-dia a cada jorna em cada eucaristia
fé razoável patetice teologal
as mãos minerais do velho poeta ressoavam na noite
havia esgotado as palavras
as afeições os livros
restava-lhe o degrau da escada mística onde repetia
com devotas carícias os versos mais antigos
que diferença pode haver entre o céu e a terra
para além das nuvens das estrelas e das galáxias sentar-se-ão os deuses em tronos adornados às cores magníficas da luz
reis deste mundo
e reis do céu
mundo de contradições
ilusões
farsas
delitos hediondos
medos
frustrações
ódio e
desejos sem fim
mundo de incertezas
céus de paz beatitude amor e certezas
guerra fratricida do impermanente com o que permanece
se nem a favor
nem contra nada
céu e terra não terão fronteiras
devo entender que não havendo preferências a realidade será sempre a realidade quer na sua aparência quer na essência e vê-la tal qual é nasce do mais profundo do meu ser atormentado por espectros malignos
a neblina do espaço e o musgo avermelhado do tempo
a angústia da causalidade e o temível porquê
infantilidade crispada na mente aos primeiros passos ziguezagueantes
o reino dos céus está dentro de nós
aqui nesta terra no nosso corpo
que é o universo inteiro
convertido
queimaste a madeira
do ídolo
fazia frio
os mesmos monges de sempre
a mesma palavra
camponeses silenciosos
com os bois vestidos
transbordam de madrugada
o sabor da terra alterou-se
eiras vestidas de carmim
e as raparigas
os cabelos apanhados em espigas
as pulseiras de cetim
convertido queimaste as ruínas
morreste para a vida
nasceste das cinzas
escolher porquê e para
aprazem-me as folhosas seculares os campos ardidos as montanhas despidas o mar revolto nas suas afeições incompreensíveis
repugna-me o madeirame do lucro fácil
causam-me asco as casas que deformam a paisagem
galinheiros coelheiras roupa velha nos estendais e à mesa
pátios do nojo cobertos de ferro e desperdícios imprestáveis
a paisagem é um todo mal-encarado caninos corroídos nas bocas ulceradas as mãos da raça infectaram-na com o seu habitual mau gosto
pouco escapa à sua estupidez
curtas vistas e
cupidez natural
a criação vertida nas línguas asquerosas e maldizentes de povos que inventaram deuses anacrónicos e rasteiros
para quê escolher ante a destruição massiva da beleza original
nada de contradições
abaixo o mental
antes o sacrifício da soledade afectuosa
que morra o livre arbítrio
inconsciente ao crematório
e as damas ao bufete
que interessam ou podem interessar
as minhas
as vossas
opiniões
ideias
fracassos
preconceitos
projecções
o bem edificado nas raízes do mal e o mal vertido em mescla de betão nas fundações do bem
a realidade é o que é
a árvore verde e copada a casa branca da colina é rectangular e o porqueiro está imundo e fedente porque não é domingo
a ética infecta contamina o que é
diz-nos
fugi do mal e guardai o que é bom na arca doirada das benesses furtivas das divindades inventadas em papel de seda enrolado em patriarcas emprestados como se a vida fosse uma partilha de duas courelas demarcadas por cruzes ou por um qualquer rego de água conspurcada
nem
raiva
ira
ódio
afecto
ou amor
esse amor falso e repelente que é
negócio
contrato
obrigação
amor de ilusões e contrapartidas
amor nenhum
que morra o dual
vida seja dada ao um
há momentos em que adormeço embalado pelo movimento do aço nas juntas dos carris
nem o tempo cinzento na sua natural e doentia melancolia me furta ao acordar aquela sensação estranha e verdadeira tão verdadeira e real de que o céu é um lugar onde se dorme e não sonha onde se vive sempre como nesse fugaz momento em que se acorda em que nada se sabe e tudo se sente
antes dos seres havia o ser antes do ser o não-ser
e antes do não-ser os seres nascidos do ser nascido do não-ser
único e igual a si mesmo desde sempre
mãe da cíclica diversidade da unidade filha
não-realidade real a quem busco nesta noite escura da alma inquieta
tu pobre criatura que sabes tu
que o céu é azul e o mar salgado
os átomos tão pequenos que os não podes ver
a terra ora castanha ora verde é quem te alimenta e quem te há-de comer
que há guerra e paz ódio e amor fartura e fome alegria melancolia dor e tédio a cada amanhecer
que sabes tu dos mistérios por conhecer
sabes agora o que saberás ao morrer
a lua viaja no céu vazio há pirilampos suspensos nas sombras
uma lareira com paus de pinho crepita no abrigo da montanha
há mantas desfeitas enroladas nos corpos sofridos de dois mendigos esfarrapados pela neve e pelo temporal
uma côdea de pão verde de mão em mão
o lume arrefece um dos pobres velhos adormece
não sonha
o outro mais novo de longas barbas proféticas espreita pelo janelo a morte da luz a arrojar-se pelas pedras fúnebres do cemitério
se morresse não teria frio
a morte é sempre quente
só a liberdade e o amor me prendem à vida
poesia
pintura
música
naturais extensões a enlaçar os meus braços ensanguentados pelo torpor inumano dos miseráveis de espírito
abro um livro pouco lido do poeta
e leio
quem não quiser sofrer que se isole
feche as portas quanto possível à luz do convívio
o convívio pardo filamentoso do arco de poeira negra de comerciantes industriais políticos e de tantos outros anormais deste mundo
amantes do dinheiro
prostitutos da riqueza e do poder
volúveis
falsos
fungíveis
espíritos imundos de consciência leve
que o diabo os carregue
todos nós temos um demónio tal pedra de fogo na algibeira do casaco roto a esquadrinhar o fundo do lago
gravura bizarra impressa no sonho de fim de tarde onde penetra um amigo acocorado no canto da sala vazia sem que tenha sido convidado para o fuzilamento
uma águia na parede negra de lumes remotos poupada ao inferno das almas humanamente imbecis pressagia a chegada de moscas ferozes tristemente despeitadas no reino animal
na fome do amor infinito iludiu-se o espírito no espaço ocupado pelo bosque da ravina de satanás
o meu corpo é o universo
sou corpo-universo
amo os outros como sendo eu mesmo
agindo sempre como para mim procedo
há almas brancas macias imaculadas
irmandade dos impolutos
há almas negras escuras negrume
da sujidade
há almas cinzentas com lágrimas dentro
de luto
há almas boas sensíveis amáveis
compassivas à dor
há almas pérfidas pouco amigáveis negociáveis
do desamor
a minha
- julgo eu -
é assim-assim
listrada a verde e a carmim
tinha consciência que a manhã chegaria ao abismo do coração ensanguentado
terras alheias num peito gracioso a arder com a firmeza de uma única vez a colorir o campo junto ao mar de silêncio
a paixão
um novo tormento
a vida desfolhada
as palavras
que ficam por dizer
em fogo vivo vivia abrasado
e tinha consciência
que a noite viria para atormentar a sua alma
demando destruir a dupla doblez do dualismo a externa que nasce do dia e da noite do frio e do calor e a interna do gosto e do desgosto
ah a unificação da embarcação com timoneiro de luz e trevas onde nenhum negro temporal abalroará os costados protegidos com a lona de todos os óleos do mundo
poder sobre mim concórdia do uno e do múltiplo do tempo e da eternidade
ventura indizível onde o fantasma da nau mastreada é a minha alma sem limites
governo de meus apetites
diz-me onde te escondes para que possa esconder-me contigo
em que recanto da floresta interior encontraremos a tua presença
qual é a tua essência
não há compreensão que te atinja olhos que te vejam
os bens materiais bradam aos nossos cuidados e tu pareces estar longe
os deuses do prazer desfilam na mente oprimida pelo desejo
e tu és verdadeiramente um deus escondido vedado ao entendimento
aceito a minha ignorância e a ilusão de te ter atingido nalguma noite escura como aceito este resfriado incómodo
não olvides que o tempo escasseia
que à beira-mar envelheço e
até os peixes me olham de soslaio
mas o pecado começa na igreja
tal como ratzinger resta-me renunciar
esconder a minha preferência pela reclusão
egoísmo calculista da desilusão
abnegação da terra circuncisão do mar
questionaram-me quanto à causalidade do espaço
dizem
o espaço é deus
não
o espaço é pensamento e o pensamento limitado
deus não pode ser limitado ou não seria deus
ao reino nada lhe falta nada sobeja
a alma da iluminação
tudo abarca sem que o guarde
espelho mudável da transfiguração
não sou eu que vivo é a alma que em mim vive
imortalidade que a cada passada crio
***
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