Download dos textos de ANTIPOESIA ou a insustentável arte da falsa erudição em –
***
primeiro dia de primavera –
a neve toldou a visão
das primeiras flores
***
deixo a janela aberta
para que venhas
se tiveres de vir
e aberta a porta
para que saias
quando quiseres partir
***
o comboio parte envolto num calor intenso
olho para mim sem qualquer espelho
é o cérebro que penetra o cérebro
abrindo um túnel imenso para a mente vazia
onde vegeta uma paz infinda
***
vejo o passado com todas as suas calamidades
os pecados da adolescência
pesados
tão carregados
como fuzis encostados
à nuca indefesa
cada manhã é um pesadelo doente à chuva
***
falar de mim
como é difícil dizer
o que só o silêncio reflecte
ninguém poderá
conhecer a noite fatídica
dos mil
e um
guerreiros
***
deito-me vestido
amanhã tudo será diferente
quando os primeiros raios
de sol inundarem o rosto
daquele velho que deixará
para todo o sempre de espalhar
o seu sorriso pelas tardes
ociosas da primavera
***
à beira rio
na margem pantanosa
as ruínas de um batel choram
***
estou à demasiado tempo
no mesmo espaço
amplificando-me na angústia
dos beirados ao desagasalho
não posso retardar o tempo nem
as pacíficas pegadas das paixões
encher as ruas e vielas dos cantares
melodiosos das antigas raparigas
devo reaprender o sentido da palavra partida
com o coração livre de todos os cuidados
***
caminho arrastado pela
música tempestuosa da civilização
uma candeia e um cão esquelético
acompanham-me na jornada
uma multidão percorre-me
enquanto grito a minha solidão
***
há um caminho de pé
para as velhas quintas
da encosta profanada
no meio dos silvados
encontro-me a sós
com espinhos e lamentações
***
peregrino
- ou o que viaja incessantemente para não gerar no mesmo
lugar as raízes da morte –
não sei o que sou nem
o que quero ser até ao
último adeus
confundo-me com a multidão
nas cidades moribundas e
com o deserto das aldeias jazentes
retendo na alma o mesmo remanso de sempre
***
à terra o que é da terra
cimitarras plantadas no saibro –
o último grito dos guerreiros
***
a maior parte dos povoados
são lugares sujos
onde as larvas inúteis
se reproduzem e ocupam
as realidades devolutas
dos desesperados
enquanto pacientemente aguardam
pelo fim do mundo
***
nesta pedra antiga
ruge o sol de milénios
na memória das coisas
***
o corpo despedaçado
os braços decepados
na ténue luz da esperança
em queda
no abismo sombrio
ruínas remotas
dos murmúrios do tempo
***
sinto-me pequeno
como um dia de inverno
imenso
como grão de poeira
sou o que sou –
um tambor vazio
***
quantas paixões amores esvoaçantes nas almas que amadurecem
a porta aberta
as histórias de uma vida com as letras impressas no teu corpo
dentro de mim
***
olho o céu –
a beleza do azul celeste
ofusca-me todas as paixões
***
os dias envelhecem
com as mãos crispadas nas grades
do luto e da ignorância
enquanto a brisa sulca
com mansidão
as constelações de flores
do jardim há muito desprezado
corações distantes
solidão de
velhos amantes
***
pecados passados
lançam lágrimas de orvalho
nas campas floridas
***
o vazio inatingível
da morte que se ergue
clandestinamente feroz
no regresso
pelo caminho da vida
a espada de todos os excessos
permanece intacta
***
a nudez dos troncos
com os lábios retesados
invadiu as sombras do bosque
devassado por caçadores furtivos
e pela agonia das vítimas
inocentes
entretanto o sol desapareceu
por entre as nuvens em fuga
***
espaço
o homem enclavinhado pelo tempo
buscava o espaço insondável
entre ele e ele
conhecia a sua voracidade
ambição e inveja e
deslumbrado por mares de safiras
deixou-se abater no areal
***
a escola vazia
vai-se desmoronando
na laje da costa
as raparigas já não cantam
os rapazes envelheceram –
não sorriem
os meus cabelos brancos
são prenúncios do fim
***
a imagem da velha igreja
mil e uma vezes venerada
tinha agora no regaço
o musgo das promessas de outrora
e o jugo da ilusão
***
a noite cai sobre os túmulos
um silêncio perfeito ondula
sobre o egoísmo e inveja dos aldeões
que matam a escuridão
enquanto dormitam
assassinam a alba desbravando
os campos estrumados
que mentes mesquinhas e
imundas
***
beijo-te
sem que saiba quem és
que me importa a mim
saber quem tu és
humana como eu deprimida
por um nada apaixonada tu
monja errante da vida desfigurada
***
uma única gota
esconde as palavras que
se escoam pelas janelas cerradas
as sílabas fragmentadas
escoam nas feridas há milénios
cicatrizadas
os livros saqueados na terra do sol-posto
escravizam-me
dispo-me sento-me na beira da cama enquanto o corpo adormece
numa trajectória circular
***
deus deu-me o bem e o mal
a visão das flores
o mundo interior plantado de estrelas
e nas profundezas
a escuridão da matéria
***
vejo o grande rio dos céus
as estrelas as constelações
mas continuo o mesmo sem-abrigo
***
sepultaram pedras azuis
entre o passado e o futuro
assassinaram o que não principia nem acaba
corre-lhes nas veias o sacrifício humano
de séculos atrozes
deixaram que se instalasse o caos
nos seus corações atormentados
não se ouvem as suas vozes
indiferentes aos pérfidos gemidos
os cérebros mirraram
abandonados à sua própria traição
***
os meus sonhos
contêm um poderoso segredo
o segredo de serem sonhos
e de serem só meus
***
um mundo de desesperados
arrasta-se pelos arretos da colina
colhem os frutos e vendem as almas
à ganância e à arrogância
o carroceiro do senhor das terras alheio ao esforço da safra sorve o fumo de um cigarro barato
pela quinta hora os deuses caseiros erguem-se e contemplam a matilha de esfomeados
***
a primavera nas asas dos pássaros
habita os ninhos entrançados
por corações de amor
***
com que ternura me ergues
amparas-me beijas-me os pés
suor e lágrimas
a cidade conquistada pelas armas
os bárbaros precipitam-se nas ruelas desertas
basta
os soldados exaustos já não resistem
à beira do fim acariciam as mulheres estupradas pelos ventos do norte
na planície deserta nem deus está presente
só a morte
***
entardece
o corpo sonolento
veste-se a medo
há visões do passado
nas memórias corrompidas
pela violência do tempo
***
a monotonia da viagem
luzes amarelas correm pelas bermas
a janela reflecte o interior
e o casario iluminado do exterior
deixou de haver fora e dentro
o vento dispersa-se
na quietude
do movimento
***
estação de fátima
peregrinos e milagres
joelhos ensanguentados
cobrem o pavimento do recinto
nada que seja sagrado –
promessas e sofrimento
trinta moedas na bolsa do papado
***
a transparência das árvores azuis
o vento cristalizado nos ramos
a teia de folhas em movimento
ali estava a olhar
sem-tempo
o eterno-momento
***
desfalecem os escravos no campo de algodão
com os carcereiros à espreita ociosos
o dono da plantação sem motivo
ergue o chicote e rasga a face direita da pobre negra
que ajoelhada pede perdão pelo rosto ensanguentado
perdão por nada
***
na viagem todos os passageiros ocupados
asnos e estultos embevecidos –
merda para as novas tecnologias
***
tinha uma nova identidade
as sentinelas tinham-no abandonado
junto a um sepulcro cravejado de granito
as flores murchas contrastavam com
os lírios azuis do coração calmo
a crescer na erva invadida
pelo sangue deposto
nas pegadas dos animais sedentos
***
a manhã corre-me nas veias
sou o fragmento que se multiplica a
cada amanhecer
a areia de todas as praias desertas
o irmão da penumbra
que penetra a calçada
de todas as ruelas e becos
da cidade e de seus tristes queixumes
***
a tecnologia pavimenta gloriosa a estrada da vida
os transeuntes anónimos atropelam-se furiosos apoiados no armamento electrónico
grotescos estúpidos
circuitos desintegrados da
existência lamacenta
***
as trevas rondam a cidade esquartejada pelos obuses
corpos disformes sangram serenamente nos escombros
uma criança chora o último suspiro
enquanto excrementos armados sorriem ao hastear de uma nova bandeira
***
o tempo rodeia os
ramos libidinosos da ausência
a leste uma ave solitária sonha
com o além-nuvens
o sol apressa o nascimento
enquanto gira sobre si próprio
já não há passado nem futuro
das algibeiras rotas do mendigo esfarrapado
nasce o indelével instante
na morte inexplicável do quotidiano
***
primeiras chuvas de outono –
inundam-me a alma
afogando paixões
***
os ossos da memória
transformam-se em objectos
com o coração esculpido
pensamentos que andam comigo
nómadas como eu
ruminados crescem
mergulham nas entranhas
da ciência inútil
que cultivo nas noites de insónia
***
não deixes que a minha voz
se arraste pelos túneis
onde ninfa nenhuma canta
não deixes que as árvores tão transparentes e lúcidas
não alimentem as minhas palavras
amanhã serei húmus
um acidente sem importância
no carreiro da vida
efémero como o silêncio
***
os peregrinos de joelhos
desesperam por um milagre –
loucos tão próximos da morte
***
na minha mesa
humildes são os talheres
parca a refeição
se os convidados aparecerem
deixá-los-ei penetrar
no âmago da afinidade
***
aguardo a noite
pelos seus mistérios
as fagulhas do desconhecido
entranham-se na alma deserta
iluminando a alegria
das estrelas
***
não quero fazer perguntas
não quero ouvir as vossas vidas
um sopro corre pelas palavras soltas
desfalecemos com o peso suportado por regaços desconhecidos
estamos sós como um exército armado até aos dentes
derrotado pela sua própria sorte
***
já não recebemos cartas
mataram os pobres
mensageiros
agora enfermos passeamo-nos
pelos túmulos electrificados
cismando com desdém
na ausência dos ventos
passados
***
a frescura da noite
inunda o amanhecer que
oculta o luar e
o beijo dos amantes
insensatos dormem
enquanto o melro chora
***
a árvore florida olha-te
pela janela entreaberta
um corpo nu redondo
de jade luminoso
é longe a noite escura
a dor da separação
***
a neve tarda
irá florir quando eu
já tiver partido
sem destino como
os goivos sem objectivo
no último dos crepúsculos
à sombra do céu e
das nuvens que
escurecem no areal
***
em tudo está o começo
e o fim
de olhos fechados trespasso
o silêncio da escuridão
acorrentada à aldeia
um cão ladra sem convicção
o outono
já entrou pela porta
da sala iluminada
o povo dorme
só eu estou aqui
sem saber porquê
sem saber por quem
se por mim
se por ninguém
***
o poema iluminou-se
aos meus olhos –
ilusão apenas ilusão
***
um corpo respira
no pinheiral da curva da estrada
oiço-a respirar
indica-me o caminho
anoitece cedo neste
fim de tarde
perfumado pelo odor
da terra molhada
***
ninguém vem
a rua deserta janelas e portas fechadas
se as minhas mãos pudessem tocar-te na distância
levar-te-iam à pacífica brisa do meu coração
maçã madura a palpitar
na sombra do peito
aquecido pelo lume
de um beijo já esquecido
***
talvez ainda não seja suficientemente tarde
talvez quem sabe ou pode saber se as árvores da infância regressam viçosas
e os aromas dos frutos bravios
inundam os caminhos que invadem as paixões ancestrais
talvez a erva seja tão verde como dantes talvez
e a água das fontes o selo imperial do amor
talvez eu já não seja verdadeiramente eu talvez
***
a cidade
mãe de todas as alucinações
retorna ao bulício das mulheres
nocturnas
no ar a fragrância dos desejos
cai a prumo
na lascívia dos últimos visitantes
***
o poeta percorria o deserto
por um trilho sem margens
os olhos feridos pela areia
aproximavam-no
da eterna escuridão
na esquina dos oásis perdidos
as recordações eram
fugazes momentos de morte
***
o frio gelara-lhe as mãos e os pés
sem um único murmúrio
mantinha-se desperto na noite
naquela insónia devastadora
que os moribundos
acendem quando a morte
se abeira do último dos abismos
***
um fósforo aceso aquece-me as mãos –
na casa da aldeia sonho
com a lareira quente e fumegante
***
já estiveste dentro de mim
vibravas neste teu nicho
longe
o mar adormecia
na solidão das ilhas
perdidas e
o canto dos pássaros anunciava
o fim da ausência
***
à primeira luz do dia
parto
para ver as flores e as estrelas
esquecidas no meu coração
a cidade é um novelo
de casas velhas e sujas
com pombos nos telhados onde
nem uma cotovia canta
na montanha
o rio do céu
perfuma-me a alma
e as cerejeiras floridas
doam-me o seu amor
***
sentou-se na mesa os braços cruzados e o olhar atento ao programa televisivo da tarde
a vida no sofá da sala em ruínas
as emoções fundidas em metal incandescente
e o portão cravado no muro do quintal descuidado
limitavam o sentido visível da existência
***
o teu sorriso
de madrugada
anuncia o amor
***
os muros do pensamento contorcem-se
longe um velho confessa aos céus a sua paixão
duas trutas serpenteiam nas águas claras do rio nascente
no vale um pássaro negro canta liberdade
***
sentámo-nos no café tinha o ar triste de quem teve alta do hospital
a vida não tem sentido disse
viveu o vivido sôfrego como criança desamparada
recordou a orfandade o orfanato o destino a má-sorte
olho para ele e vejo no velho amigo quase surdo
as asas inquebrantáveis do anjo da morte
***
egoísmo –
corações escondem-se
na noite profunda
***
uma voz cristalina irrompe
pelo silêncio da memória
no espelho a madrugada
é saudade dos cânticos
das aves que segurámos
nas mãos protegidas
o ar está carregado de constelações
pela janela entreaberta
ingressa o odor das flores campestres
enquanto fazemos amor
***
o som do vento no meu corpo –
as mágoas vestem-se de espinhos
que se cravam na carne seca
***
folhas esvoaçam na floresta
tranquilo adormecido um pequeno esquilo
o dia declina nos escombros da solidão
uma mulher atravessa o ribeiro com o rosto transfigurado
na outra margem do oceano
o filho morre sem mão
de mãe que o console
***
o sol desaparece nas montanhas
no meio das ervas altas
abre-se um leque
ao longe avista-se uma raposa
o meu coração voa
subtil
nas asas de um ganso selvagem
***
as estrelas estão suspensas
no céu clareado pela lua –
quando é que as visitarei
***
a cama desfeita
lá fora a primavera respira
longe de casa ouço o sino do povoado
e acordado sonho com o passado distante
***
as sombras da lua cheia
fazem resplandecer o teu sorriso
o trevo do jardim
envolve os crisântemos
em cada flor
um rio de orvalho
***
primavera na esplanada –
das árvores agitadas pelo vento
caem farrapos de neve
***
a transparência da paisagem
colonizou a loucura
de sórdidos pensamentos
na montanha azul
a metamorfose das
vigílias e dos risos
das mulheres em floração
***
nas trevas
uiva frenético
o velho lobo do mar
***
sem-sentido ausente
fragmentado e silencioso
vivo no passado
morro no presente
***
há amargura no ar
as nuvens estáticas clamam
pelo sabor da vida
um cão sarnento aguarda a morte
o pastor embriagado
desce a encosta alheio ao rebanho
estática a montanha
sento-me junto a um velho pinheiro
e penso sem palavras
no meu crepúsculo
***
no mosteiro
descalços
procuravam desesperadamente
o caminho
nada mais para além da via
do sofrimento inútil
de quem busca perdido
o vazio na quietude
***
o país desmorona-se
estremecem os homens
esfaimados
enquanto montes inacessíveis
se erguem nos rostos sofridos
das crianças
da cidade suspensa
***
pássaros que sossegam
nas ramagens ah o melro
uma jovem canta no olival
voz que se converte na miragem
que convoca
as almas dos náufragos
de vida lavrada
em campos ermos
***
as palavras morrem
na febre que arde
o sangue do império alastra
nos cômoros da memória
o minério acende-se nos
dedos envelhecidos do destino
um povo seminu embriaga-se
de desespero e ilusões
tudo como se o mundo
findasse no dia de hoje
***
a verdade só tem uma palavra que a defina –
silêncio
***
aqui não tenho amigos
monstros de betão escondem o céu
e o horizonte
os jardins estão sujos e avelhentados
no declínio do dia emudecem as praças e as ruas
restando apenas vestígios de profundo amargor
***
os dias são folhas verdes
na quietude da montanha
o murmúrio da brisa agita o lago
e no recato de todas as maldições
cala-se na fundura das águas
longínquos pássaros voam
por entre tojos sagrados
deus ressuscita nas ervas rasteiras
e nas nuvens que caem dos céus
***
o rio continua o mesmo
meus olhos não
num relance afasto-me
nostálgico das terras altas
***
os deuses estão doentes
a morte cavalga nas planícies
da civilização comatosa
onde vingam as
vozes subterrâneas
daqueles que nos trucidam
corpo e mente
***
as árvores estão hoje mais altas
nuvens descem do céu
divertidas suspensas
deslumbrando as vozes doentias
nascidas das trevas dos mistérios
há cores imprecisas no horizonte
vultos passam com rapidez
no caminho poeirento
frenesim de parca vida
sem norte e sem destino
a assustar o medo da morte
***
as estrelas
caem-me na mão petrificada
amparo de uma paz
inalterada e penetrante
raio fulgurante a decifrar o enigma
de eterna madrugada
***
teu nome escrito
na areia do deserto
amadurece
viajas sem que no cais
alguém te aguarde
os fantasmas morrem
e nos dias sombrios onde
não há réstia de luz
os espelhos reflectem
um sorriso com o peso
das memórias de todos os
naufrágios
***
a boca rósea mergulha no silêncio
os corpos incendeiam-se no caniçal
cinturas apertam-se
ao silvo da locomotiva
contígua à nudez
***
não sei
os dias sucedem-se
enquanto eu vagueio
sem rumo
não sei
em que dia repousarei –
os anos não perdoam
***
nos meus sonhos ficam os teus ombros
os olhos acesos sequiosos
a língua exposta no meu ventre
lânguido movimento
descendente
***
o vestido
cobre as formas do teu corpo
sombra intocada
a rejuvenescer no soalho
escondem-se as coxas
à lança aguçada e
ao gume da espada
que te deseja
***
nuvens repousam no monte
de santiago gelo nas agulhas dos pinheiros anões
o céu anuncia neve ao entardecer
na casa branca do outeiro
a lareira já se acendeu
antes do anoitecer já estarão deitados
recolhidos dos ventos frios –
a pobreza adormece sempre cedo
***
uma árvore
com o coração esmagado –
tragédia silenciosa
***
não visito meus velhos amigos
a maior parte deles
vive no reino dos mortos
adormeceram definitiva e
profundamente
como nascituros
não há glória nem exaltação no pó
em que se comprimem
e das suas vidas nada sobejou
para além do esquecimento
que dia-a-dia se projecta no vazio
***
adormece o fogo na aldeia
os tições das almas são circulares
e transparentes
os corações
límpidos e solitários
vigiam entre a doença e o sonho
ninguém louva a sensatez da idade
os anciãos têm os olhos macerados
pela saudade
filhos vivos e filhos mortos
***
nas casas de velhos deuses
florescem rosas negras
numa teia ladeada por vocábulos obscenos
os suicidas apodrecem na vertigem cavada
pela sombra indefinida da angústia imemorial
com o ritmo do rumor obscuro
da transparência dos bosquetes
***
o povo partiu
errante
nas cicatrizes das naus esventradas
carvão em brasa nas mãos da esperança
medos e ameaças de temporais
monstros e seres inumanos
corriam-lhes nas veias salgadas
não voltariam jamais
***
vento de leste sopra na superfície do lago
pequenas são as ondas
lágrimas de luar inundam pequena barca
lá dentro o vulto de um homem
velho pescador de olhos-de-água
encharcado até aos ossos
na margem jovens namorados
pescam beijos azulados
as velhas montanhas a oeste estão solitárias
indiferentes à pobreza ao ódio e ao amor
***
na cidade a mesquinhez da vida a rotina nas ruas e nos empregos
os transeuntes atropelam-se uma bonita rapariga
nada mais na terra árida
desejo e morte baloiçam-se num jardim
longínquo o velho eremita
mal se consegue erguer do leito
mas está tranquilo
em paz
nenhuma viagem o irá aterrorizar
***
a água na ribeira brilha ao sol
pequenos peixes nadam contra a corrente –
a primavera tarda para quem viaja só
***
não sabia para onde ir
o vale estava deserto
povoado de memórias
sentia-se envelhecer
envolto pelo cheiro a fumo
da lareira imemorial
sentou-se ao lado da insónia
a amadurar na madrugada
***
é domingo
dizem que há sempre uma luz ao fundo do túnel de qualquer túnel
um pássaro voa em círculo
na encruzilhada do credo
o medo fixou-se no muro da ressurreição
alguém passa sem se deter no cruzeirinho
caminho de solidão
onde o sol vertiginoso
petrifica o rosto dos crentes
***
cruzo-me com gente
gélida na sua cegueira –
só a morte os pode salvar
***
caminham com os pés sangrentos
doloroso passo a passo em desertos pedregosos
o mar para além do horizonte
clama pelos seus corpos exaustos
alguns ficam para trás
sem brisa que os acolha ou luz que os ilumine
as mãos imóveis no murmúrio da esperança oblíqua
nunca irão repousar à sombra das oliveiras
***
um homem na gare deserta –
o anjo da morte persegue sempre
a sombra da fuga
***
davas-me a tua mão nas noites de lua nova
e eu sonhava com os esplendores do meio-dia
e sonhava que deus sonhava que connosco seguia
no arvoredo negro via anjos
no caminho outros peregrinos
mesmo assim doía-me a alma
ai
pobre de mim
***
deixa que te esmague os lábios
que te aperte nos meus braços
e que te diga
num murmúrio à varanda –
só o amor conta
***
anseio pela partida a vida sedentária é cruel
como sol do deserto mas tenho medo
leva-me contigo pela vereda vertical
do vazio sem raízes
e não me deixes nunca cair
***
agora que estamos vivos
podemos olhar o mundo
a realidade palpitante da liberdade
o fumo dos corações aveludados das
crianças de sangue ardente
os olhos reluzentes das mulheres
e no velório da tarde
aquela face pálida da morte
***
no meio do rebanho
uma mulher
chamam-lhe graça
no rosto a fadiga e o sofrimento
a doença
no corpo roto a pobreza
os pés descalços sulcam espinhos
os olhos pedem a morte por caridade
senhor
não vês tu
onde está a tua piedade
perante tamanha desgraça
***
o meu reino não é deste mundo
já morri tantas vezes e outras tantas nasci
as sombras iluminam-se no meu peito
levantam-se os mares
recolhem-se as redes
arria-se o velame latino do lugre
e o rio congela a traição
dos corpos encurralados
na espuma ancestral
***
uma lágrima cai no lago
o crepúsculo tolda o coração de pedra
tenho uma mensagem para te enviar
não te preocupes mais com os deuses
canta sem o som da tua voz
e mergulha nas águas tranquilas
da minha alma
***
o mondego subiu as escadas da porta traseira
uma pequena carpa volteia assustada
mais logo o sol irá afundar-se nos arrozais
e virá a lua para apaziguar os nossos sentimentos
***
sentámo-nos olhando-nos
duas borboletas voam arrastadas pelo vento –
acasalamento
***
vagabundos esfomeados
junto à linha férrea
as árvores de folhagem perene continuam majestosas
solenemente beijadas por gotas de chuva
num velho caderno uma criança velha faz garatujas
***
um poeta cego escreveu-me
é meia-noite
leio a mensagem atentamente
sepultaram a poesia diz
não há quem nos leia e entenda
e quem lê finge entender
e fingir fica bem
fingir que se sabe
que se sabe e entende melhor do que ninguém
***
os olhos fixaram-se
nos presságios agrestes
uma criança gritou
à porta da igreja
a luz
brilhou no azul
sem nuvens
enquanto
as flores secas
se diluíam
nos ladrilhos desenhados
no pátio
***
eu que não principio nem acabo
caminharei eternamente
no silêncio de deus
***
a maior das viagens
para além da vida
do tédio do esquecimento
da angústia da dormência
e do sofrimento
a ironia de uma volta ao planeta azul e frio ou à opressão dos trópicos
a voz terrífica da melancolia sempre presente na peregrinação continental
o ódio e a impiedade espalhada pela terra sombreada por pegadas ancestrais
a maior das viagens a interior
partida e chegada no mesmo cais
***
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