Download dos textos de ANTIPOESIA ou a insustentável arte da falsa erudição em –
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I
feri a idade dos mortos
desperto sempre tarde
junto ao mar a casa está sempre mais fria
- a idade faz o frio mais frio –
II
a chuva teima em não vir
provavelmente tem as suas preocupações próprias que não as nossas
as nuvens altas prenunciam a continuação de tempo seco
III
estou possuído pelo ócio de rimbaud
os novos que trabalhem
- verlaine devia ter-lho dito –
IV
tosse e um suspiro nas escadas
raramente vejo a vizinha do lado
ouço-a tossir quanto baste
e isso basta-me porque sei que está viva
- os mortos não tossem ou tossem –
V
preciso do ar da montanha
adio a hora da partida
na aldeia há um enorme canteiro de mortos que visito regularmente
onde as estrelas brilham sobre o pó a carne os ossos e vermes
mesmo assim é um lugar aprazível com alguns ciprestes e ervas daninhas junto aos muros
VI
antes de anoitecer dois ou três de nós
- já somos tão poucos –
brindamos a tudo como se cada coisa contenha em si todo o prodígio da vida
juntos declaramos a alegria perene do momento
amanhã ou depois voltaremos a encontrar-nos para mais um funeral
- no outono a morte visita as aldeias da freguesia semanalmente –
***
as giestas inundaram os campos de tristeza
deitado na erva húmida
a visão dos campos outrora cultivados
***
a alegria é irmã da dor –
os homens não são todos iguais
a dor dói em cada um de modo tão desigual
que o que nuns é dor noutros amor
***
um anjo no vazio
o espelho do salão não reflecte os objectos supérfluos
falo-lhe desta infecta solidão
continuarei a errar pelos corredores e pelos quartos vazios
pensando a vida e a morte
as duras faces da velhice e o medo de morrer só
sem ninguém a quem confiar a minha mão deformada
só o sonho poderá salvar a minha alma
onde tu anjo amigo serás o condutor da carruagem desbravando o nevoeiro na direcção do nada
***
os velhos morreram a trabalhar de sol a sol
com pesadas sacholas
surribaram vinhas
cavaram lameiros
desbravaram terras áridas no coração da serra
a fome nunca os abandonou
os senhores da terra libertaram-nos com a morte
***
precisamos de tumular a história
derruir as estátuas dos parques por florir
para que as crianças sejam crianças
e a ingenuidade volte a florescer
***
poucos são os que sabem viver a agonia dos dias
adormecidos na terra que os moldou
clamam angustiados pelo prazer
e intentam pagar qualquer preço pela verdade
mas a verdade é uma casa deserta sem portas nem janelas
é o abismo gelado que nenhum explorador conseguirá alcançar
ébrios agonizam na incerteza do caminho e
sentados na praia mística
cegam à visão do mar que traz na espuma das ondas a certeza de que tudo há-de findar
***
não quero olhar para trás
apenas
seguir o meu caminho
com os passos novos
da inocência
***
um longo adeus ao rumo sem margens
às cores das lágrimas do martírio
o desterrado sobe ao cadafalso
a madeira vibra num movimento rítmico de dor
a vida continua na praça do mercado
chovem risos e sarcasmos
sobre o pobre coitado
que do mundo teve ordem de despejo
***
sonhei com uma outra vida
só agora me apercebo
da minha total inutilidade –
um puro nada
***
a mesa de pão e vinho
regressa hoje o presságio da formosura e do milagre do amor
por uns instantes
sem fronteiras sem grilhões
cada homem ocupa o seu lugar
estão velhos para sonhar
mas na noite vasta entras pela porta dos fundos
bela como o voo do milhafre nas ravinas da serra
como hálito de deus a aquecer as carnes frias
olham-te demoradamente
como quem deseja o fogo no alto do inverno
e a neve dos corações transformou-se em lume eterno
***
a cada dia que passa
apodreço sentado nos meus versos
enquanto a aguardo
***
uma noite inteira
a meditar na morte
para onde irei no fim
para ti ou para o nada
se tu és nada e o nada tu
se eu nada era sou ou serei
em mim ou em ti
nunca o saberei em vida
***
este outono trouxe-me uma gripe incomodativa –
quando estamos sós a doença é mais incomodativa do que quando alguém cuida de nós
***
as luzes da aldeia
apagam-se –
sigo as pegadas da lua
sem destino
***
deixa que escureça o quarto
não há sol que me aqueça
o ofício de amar tem-se tornado insuportável
o desejo surge agora no seu lado sombrio
pouco me importa a liberdade do mundo
só a morte me poderá salvar
***
escolhi ficar sozinho
animal oculto nas suas chagas
mesmo que os olhos ceguem e os ouvidos nada oiçam para além de zunidos
adormeço e acordo sem ódio ou amor
***
voltar ao passado remoto
onde vibram as ideias dos filósofos mortos
da metafísica e da sua vanidade
***
o riso estridente
de um louco
acordou toda a aldeia
sabedoria de um pobre homem
que nada quer
nada sabe
nada tem
***
percorrem-me o corpo crucificado
os mortos que amei
triste circulação de sangue coalhado
***
pensamentos brancos dos crepúsculos
escondem-se nos contrafortes virais das profundidades
pela mão da noite percorro a estrada deserta
à espera do sono
e do sonho
***
rio das palavras
sorrio ao papel que cego continua a aguardar
os símbolos decrépitos
que poucos irão ler
***
I
cansaço
os animais seguem o trilho obstinado das esquinas dos subúrbios
a voz murmura nos lábios dos deuses mortos
II
o sol
flor que queima
enfeitiçou os que da morte são cúmplices
III
o mistério das primaveras mantém-se impávido
vulnerável
impávido
assombrado
lágrimas dia após dia
sal e sangue
IV
na torre do castelo em ruínas a bandeira branca
rasgada
fantasmagórica
a brisa perfeita
estamos perto do fim
jornada a completar na quietude das águas
V
não és imortal
eterno ou infinito
os mortos dormem de pé como os velhos marinheiros de outrora nas longas travessias acometidas pela peste
VI
o mar rebenta no costado de bombordo
cai neve no convés
o paraíso à distância de cem mil milhas náuticas
na ressurreição do meu corpo
é o que está escrito
o que foi dito
VII
o terceiro turno aproxima-se num carro celular
purifico-me
como na infância
os longos passeios das noites de verão
o fluxo dos beijos adocicados alinham-se na estante de carvalho lado a lado com os livros de páginas amarelecidas
corroídos pelo bicho-dos-tempos
como eu
como nós
***
o coração pulsa desordenadamente
além um homem um número
apenas um número
caminha lentamente na direcção do bloco de notas
por entre pinheiros e carvalhos que murmuram algo entre si
a erva fresca inflama-se à sua passagem
queimou todos os seus desejos
enterrou na terra virgem todos os projectos e ambições
para poder sobreviver
***
são estes os primeiros versos que te escrevo
tenho tanto para te dizer –
o verso mais puro é o silêncio
***
anoitece
não há nada que aqueça a mão com que escrevo
nem a poesia dos eleitos
- mas quem são os eleitos –
precipito-me na insensatez da carne e no alvoroço do espírito
com uma rosa apertada entre os dedos aguardo que a carruagem raivosa do passado te conduza à minha presença
tenho frio
continuo a escrever
as palavras mordem o papel quadriculado
e por minutos regresso à vida
***
a humanidade naufraga
é visível o movimento alienado dos corpos que se debatem nas ondas
a nau destruída arrasta-os para os abismos
o mar há-de comer-lhes as vísceras e os ossos
afogando os pensamentos atrozes petrificados de sal e sangue negro
***
a memória em cinzas
olho o mundo com a naturalidade de uma criança
esmago as lembranças dos corpos que amei
aquilo que apelidava de belo desvanece-se
tranquilo abandono-me ao infinito azul
***
do céu cai uma mensagem
em asas indignadas –
já não há quem ame o amor
***
I
peço respostas
suspenso no vento que acaricia as nuvens
que se oferecem imóveis
vejo o futuro
irá brotar das pétalas brancas
e dos espinhos do roseiral
II
hoje não há nenhuma forma suprema de consciência
nem qualquer harmonia no abraço dado pelo céu à terra
não há resposta para a agonia
III
moribundo tiram-lhe as medidas
dois metros
a construção do corpo de madeira modelo exclusivo da pequena carpintaria revelada pela colina ensolarada
os gemidos inundam o casario próximo
continua a ser o mesmo homem
mas as chagas transformaram-no num monstro
que a família repudia
esquecendo o tempo da apanha e do suor arremessado às terras doentias
um agonizante imprestável
IV
deus nosso senhor o leve dizem
até já o cheiro é mau penso
ainda o vejo com a burra carregada de lenha
e de mantimento
para toda aquela gente ingrata
V
isso já lá vai
que interessa o que ele sofre ou sofreu
para alimentar aquelas bocas
sórdidas e peçonhentas
a dor não é a que ele sofre
mas a que aos outros faz sofrer
quanto mais depressa melhor
não lhes serve para nada
putas de merda
***
nos templos sozinhos
corpos pesados sem alma
sorvem a música
tocada por um organista cego
e entoam cânticos estridentes
vigilante o padre espera
o fim da lengalenga
***
invento o meu infinito e
o eterno profundo por entre as folhagens salpicadas de luz
***
há flores nos prados há raparigas nas flores
os meus pensamentos suicidam-se
morrem do parto as dores
o pó do caminho mil vezes andarilhado
faz gritar o vento
e ergue a esperança dos astros empedernidos
***
os deuses estão irados
todos os seus passos foram dados em falso
os rios passam
e os pobres sofridos escrevem poemas de amor
nos quartos erectos sem luz
o ar está contaminado por sentimentos envenenados
anjos e arcanjos batem violentamente com a porta
sem que para trás olhem
o destino do homem é a ausência divina
***
a varanda ferruginosa com o verde da hera
lembra os passos temíveis do velho desembargador
morreu como ilitch morreu
gemendo gritando
pedindo uma vara para matar a morte
***
terão as coisas algum mistério secretismo
e eu não serei um mistério
uma espécie de sacramento salvador que a si mesmo se não salva
talvez os mistérios sejam apenas impossíveis ilusão das palavras que se exaltam para que possamos fechar definitivamente o ciclo animal das teologias e filosofias
sejam lá o que forem
continuaremos a trata-los como mistérios
e a abrir e a fechar livros inúteis
***
sento-me junto à estátua do afonso costa –
da cidade restam as luzes
e este sentimento de revolta
que só os verdadeiros revolucionários têm
***
andrajosos percorremos a noite tenebrosa do medo
dizemos que somos irmãos
amigos de eterna amizade
mas a cada passo
a cada medo
sem redentor
a cada obstáculo
descobrimos insepultos
que somos inimigos
***
o empedrado da ruela enche-se de pétalas rosadas como
a tua face fresca estampada num sorriso de marfim
saio para te ver oiço o teu riso vejo o teu corpo imperfeito
és a virgem que está para além da minha tristeza
o espírito que me apazigua a alma
e que não me incendeia qualquer desejo
***
a casa deserta sente-se só
a luz penetra pelas frestas das portadas
e não encontra alma onde repouse
***
I
quando voltar para a terra dos infiéis
poderemos encontrar-nos
nas palavras que são os nossos corpos e que
parecerão mais ásperas
tornando-se suspeitas
II
no quarto escurecido pelos reposteiros opacos
veremos o pátio onde a madressilva cresce nos corações das pedras
enquanto os outros dormem nós contaremos histórias inventadas e num imenso suspiro
iremos despojar-nos de tudo
até do pequeno diamante que guardas entre os seios erectos
respiraremos a uma só voz e caminharemos nos mesmos passos na direcção do horizonte
III
haverá granizo e neve nos campos
os nossos braços agitar-se-ão como num labirinto
não renuncio à tua carne
não não posso renunciar ao que não me é permitido
falta-me o calor do vinho a percorrer montes sombreados por ilusórios laranjais
IV
lembras-te da nossa infância
vida que vivia a vida
não havia morte na vida nem haveria
agora o mundo flui para a decadência terrífica dos infernos incriados
para o nada dos dez mil demónios
para a casa dos horrores concebida em pecado mortal
pobres adão e eva como deveis ter sofrido
***
orai para que a chuva venha
disse o patriarca dos sacerdotes
atoleimado nunca há-de conhecer deus
***
uma gota de água contém todos os oceanos do mundo
uma baioneta banhada de sangue inocente alberga a natureza humana os sentimentos e emoções dos demónios terrestres
raça de víboras numa pátria de famigerados cangaceiros
escuto os gritos horrendos das crianças outrora cruéis
o mundo é propriedade de carniceiros que
com as suas garras
despedaçam o riso dos inocentes
e projectam um novo holocausto
***
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