Download dos textos de ANTIPOESIA ou a insustentável arte da falsa erudição em –
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o h veio para o seminário encaminhado pela segurança social tem apenas quinze anos dez dos quais passados numa casa de correcção de menores
a prisão
como lhe chama ainda que sem revolta palpável
um brinco na orelha marca-o
é amável irreverentemente submisso
não é o que parece ou querem que pareça ou querem fazer ser
os seus olhos afectuosos imploram uma bem-querença que talvez nunca tenha tido
a confiança que lhe foi desde sempre negada
por isso olho-o como amigo de longa data e digo seguro de mim
confio em ti
pouco há para corrigir
é apenas um jovem que aspira ser desbastador de cavalos provavelmente relembrando os primeiros anos da infância em que percorria na carroça da avó as ruas empedradas e gélidas de gouveia sujeito aos olhares maldosos dos transeuntes
não há maus rapazes
há maus homens
isso sem pensar tenho-o achado
meu deus
dormes ou não queres simplesmente ser incomodado
lembro-me vagamente de quando aclamava o deus de jacob
o verde dos lameiros brilhava ao sol matinal as encostas da serra vestidas de ramarias eram menos agrestes e as velhas casas graníticas ruminadas pelos temporais mais acolhedoras
ressoavam trombetas pelos becos e vielas do lugarejo e os meus olhos estavam abertos às coisas renovadas pelo milagre dos dias
à cidade santa não se cerravam ouvidos e olhos
os ossos não mirravam na ruína das torres iluminadas pela sua face
miseráveis na carne abastados de alma
corriam-nos no sangue os milagres do egipto
vamos para a casa do senhor
gritávamos
saudades de sião
do alto dos céus pendiam anjos coloridos enquanto um único pastor com o seu rebanho espalhado pela colina colhia uma chuva de bênçãos
rei aclamado de moisés e aarão
clemente
compassivo
luz de verdade
o senhor dos exércitos
na minha conturbada mente
agora em debandada
a mente das mil e uma coisas
a noite dos mil e um desejos
contradições segregadas pela natureza do obsoleto
aquele que recolhe no seu regaço amarelo as escolhas pútridas de meia-vida vivida
no milagre das rosas
morre para noite
e para a morte
liberdade peço liberdade
acordes de manadas de alaúdes
liberdade somente
este pedaço de terra
uma pedra
o rio e a névoa
unicamente
a noite é um convite ao banquete contemplativo
busco a noite escura de joão da cruz sem que a invente
não consigo fugir de mim nem ir ao encontro dos outros
as ruas desertas arrefecem numa chuva de dedos de areia
os sonhos arrastam-se pelas casas sonolentas provocando a madrugada dos desejos
que entram sem convocação no requiem das estrelas silentes
na pequena moradia do beco o ar rarefaz-se em bocejos
cor pálida e sombria da peste
a infectar a solidão do poema
e o coração da vida
quem sou eu
perguntara ao sol afogueado do meio-dia de inverno
como resposta
raios tépidos
lâmpada ateada de ternura
indiferente ao abismo profundo
ele era o incerto
a besta de carga
o carrego a lucilar nos túneis da imensa manhã pintada de geada
o vácuo do terreiro fistulado pelas garras da memória
o deserto queimado pelo desejo
ele era o corpo em riste
a percepção do crepúsculo mirrado na almargem
o intelecto volátil da seiva apagada nas páginas de um livro de poemas exangue
era a vida
a caminhar para a morte de vidro
baça como o vento inquieto
era
recordo-me e recordam-me neste véu do tempo que apenas em petiz te adorei
com preces azuis ajoelhado aos pés hirtos das colunas de pedra
e como te adorava
e como sentia a alma plena a palpitar de vida a animar o templo das delícias e das esperanças
hoje soletro os meus vícios caudalosos e os mais obscenos apetites
sou o que sou e pelo que sou
sou sem mais ser nem um pouco mais nem um mais a menos
vivo a viver
assim devo ter nascido
assim espero morrer
por vezes humano tão humano que me arrepia outras animal sem tino em caldeira fria sem destino sem razão sem outra vontade que não a de incendiar corpos
e se te voltar a adorar
retomará o cálice diamantino a sua inocência primordial
sentara-se lúcido na esplanada com vistas para o muro de calcário com um copo de vidro velho a balançar nas mãos trémulas
um copo de rum vale mais do que todo o desassossego do mundo
por ali passavam passos
uns à frente outros atrás das difusas tristezas a consumir consciências
chamava-se pedro pedro só
sem mulher
filhos
amigos
parentes
- só ricos e poderosos têm parentes de sobra –
confessava-se amiúde a seus companheiros
os copos
ora vazios ora cheios de melancolia ou alegria
de nada lhe valera o templo
as longas horas de meditação e imploração
na ausência do corpo
não sabia se deus existe ou não
e hoje nesta tarde efémera mas presente como um raio de sol
pouco lhe importava saber
se iria ou não saber
o que nunca saberia
era ele e o rum
e o muro intransponível
e a verdade
de não haver verdade nenhuma
não o vislumbrava na noite erma
os cepos de oliveira esvaíam-se na lareira do quarto em ais de ligeiros estalidos
não o sentia
não o pressentia no ar quente do segredo guardado pela origem de tudo
nem sequer o intuía
a voz dela acalmou as inquietações e ficou por ali a pairar nos reposteiros carmim do seu corpo longínquo
não se lembrava
não o recordava
nas faces rosadas da memória
ah quem esquece um corpo não é digno de o amar
o lume extingue-se paulatinamente
enquanto as cinzas do sem-nome penetram o aposento perfumando-o
não encontro sentido ou aroma
não vislumbro horizonte ou rumo
não estou
não ligo
não peço
não digo
chegou a primavera terna colorida doce e envolvida
não vejo
não cheiro
não sinto
não encontro para esta alma atormentada um seguro abrigo
senhor
a urze estremece ao vento sul
a pedra brilha ao sol matutino
e eu
estou só
na teia que tece e é tecida e que por um momento me embriaga de vinho novo
que me seduz espanta reluz
e
faz recuar
no caminho
alma que se dissipa no deleite do amor da carne sulcada pelos sentidos vivos da dor
alma de todas as ilusões de arroubos e visões
partirás só como o vento forte pelo desfiladeiro da morte
sem ontem
sem amanhã
hoje
bens
prazeres
vã fantasia
e serás com simplicidade
a-sem-nada
a-sem-dia
onde estás tu morte em que recanto te escondes trespassa-me de mansinho com a tua vara para que possa dormir no sossego do teu regaço
o tempo passa
a tristeza fica
tu passas e o medo morre
deixa-me morrer contigo
para a vida e para a morte
para o bem e para o mal
para a dor e para a alegria
para o passado e para o futuro
para o presente do dia a dia
onde estás tu morte a quem concedes a sorte do infinito e da eternidade da beatitude sem fim
deixa-me morrer contigo
de amor generoso e gratuito
como quem ceifa o trigo e não colhe o grão
ou lavra a terra e não semeia pão
deixa-me morrer contigo
a mim que já morri
são horas
o saltério anuncia as armadilhas que se estendem pela estepe
não esperes por mim
regressemos ao coração do universo para que nos seja formalmente apresentado o mistério da criação
retorno sem princípio
chegada sem fim
será poesia que escrevo
- estúpida pergunta -
não é poema
nem canção
são palavras
soltas
quando escrevo
estremeço
lento
dócil
e piso
suave
a flor
que não vi
no chão
do caminho
para não magoar o deus
que não conheço
ser-se natural
ser natural como a árvore frondosa que no silêncio da tarde deixa que lhe furtem os frutos e abençoa com a sua sombra todos os que a procuram
como a luz da candeia que ilumina a igreja e o presídio o padre e a prostituta o santo e o ladrão
ou a chuva que alimenta e faz crescer o pão e as ervas daninhas
quem me dera que os meus dias fossem passados com a paz de uma flor
das paredes brancas da casa grande da colina a afagar o sol e a lua
sendo o que sou por sê-lo
tal como a flor exala o seu perfume sem saber qual o seu odor
e a parede a sua alvura sem saber a sua cor
matam-se e inventam-se deuses
filósofos endemoninhados de gargantilha doirada agitadores da trôpega dialéctica do sem-fim brandem punhais rombos sobre os cânticos lúgubres da metafísica na transcendência dos covis bravios do deserto a mirra ungido
fendem com tímido olhar a alma em acanhado festim
rompem todos os sudários no olvido dos raios de sol azul listrado a vermelho e diamante
sangram nos altares a raposa dos mil divertimentos em aparente calmaria de fé
mágoa pungente da desgraça ancestral
eloquente ciência dos novos abutres
razão coberta de penhascos além-túmulo
cem mil vezes nascido
por cada deus morto os dias de antojo de quem mata o que adora
um amor tão antigo como o espaço sidéreo gorjeia como rouxinol de folhas prateadas
eis que chegam traspassados a fogo os anjos do céu
um novo deus-arqueiro nasce do porvir
miríades de estrelas tombam ensanguentadas no planalto cinzento do trovão
as substâncias primeiras do segredo cósmico cantam novas aleluia
findou a trapaça
que venha
o tempo do renascimento
deus morto
deus nascido
continuo sem dormir no marulho das ondas contra a praia o mar soçobra
como um afogado asfixia-se
é urgente construir uma nova alma como quem obra sólida barca para atravessar o abismo
esta não me apraz nela nada pode morar para além das imprestáveis velharias acumuladas pela miserável angústia dos espaços nebulosos
xavecos dum ontem apagado à percussão do badalejo das cava-terras
velhas à soalheira
enegrecidas são suas paredes lamacenta na profundidade condicionante e inquinada à superfície
de madrugada ascende-se à serra
na noite escura o pedreiro tomando em si desmedida paciência com mãos sedentas irá armar pedra a pedra até que o multíplice seja uno
vazio de porta aberta ao porvir e à sua querença sem escolha sem desejo por onde tudo passa sem criar raízes como espelho vário de tudo e nada como espelho cintilante e astuto lúcido corajoso solitário
apenas uma alma desapossada das mil e uma formas pode adquirir o absoluto
por ora
dele não digo sim nem não nada assevero ou refuto não me atenho à aparência não
tenho apenas por companheiro o fiel silêncio e um dedo aventando o caminho sem realidade e existência
bem-aventurado o que não observa o dedo e se queda no mutismo
o vento acaricia com suavidade o cedro e as velhas árvores que agasalham a escuridão da rua deserta sussurrando ao sono frases caiadas de amor
há luminosidades no tejo que amimam as águas mansas
na ponte também luzes amarelas e fixas
aviso à navegação
nenhum outro som respira enquanto as casas dormitam depauperadas na penumbra exterior apenas elisir d´amore donizetti como convém ao tálamo ermo
o reino dos céus onde está ele
na alma recriada e não ocupada cujos olhos são como os da águia planante
vendo a realidade tal qual é sem dilecção
para que quero eu o ódio flamejante e o amor dualista
o desejo
o apego
as escolhas
ou preferências
e as tordesilhas da alma antiga
labrego
a beleza de uma alma vazia basta-me nela cabem todos os universos os versos e os poemas o bom e o mau o belo e o feio o agradável e o desagradável o prazer e o sofrimento
tudo lhe cabe momento a momento
e a cada instante o que passa sem deixar rastro conta-nos em surdina a verdade da não-verdade assim se atingindo o que se não busca
o vento já passou
as luzes aguardam na madrugada o decesso
talvez ainda esteja desperto certificarei o óbito da noite oculta
na cela 13
a serra tem o aroma da primavera tardia
bálsamo dos caminhos poeirentos de outrora
louva-se o mês de maria
prímulas
os jardins do seminário solenizam o júbilo do sol nascente
há um emudecimento sepulcral no edifício imenso
o papagaio dormita
partiu um contentor para murrupula
a vertiginosa azáfama
dos noviços moçambicanos
chegaram as irmãs da missão na índia com seus harmónicos sorrisos
esposas de cristo
os noviços estão preparados
vivem da e na fé
mas não são a fé
simplifico alguns textos de joão da cruz os filósofos pouco têm para os alumiar
abnegação e inocência superam toda a intelectualidade
deus vive nos seus modos afáveis não demandam o que neles vive
os seus rostos transfiguram-se ao som do nome daquele que amam
disponíveis para a agremiação dos pobres
passas incólume pela minha alma sem criar raízes
de ti resta a imagem exterior as plumas esmaecidas da ave aprisionada no azul
hoje a vontade não é minha
os desejos cessaram
as penitências as orações que fundeiam nos bolsos de deuses sobrecarregados de falsas prédicas
tua não sei de quem
nem minha nem tua talvez a da lua que contemplo enquanto aguardo por inglório sono ou beatífica inocência
o chamamento quando se julga internamente claro é apelo do próprio chamado no erro do desejo e da vontade reprimida
chama-se a si o que sofre
e pela força anseia a luz do dia
chama julgando-se chamado
e
como superficialmente ama
pensa-se profundamente amado
chamamento é dúvida
sofrimento
indecisão
de quem os primeiros passos ensaia na vereda sombria da iluminação
no atalho que distancia chamamento e missão há a interrogação envolta em escuridão de fé
de morte ferida a indecisão pesa-se a cidade das coisas e a metrópole do espírito
ninguém pode bem servir dois senhores
penhorar os seus instintos aos desígnios incompreensíveis
o recalcamento mata a substituição destrói e a compensação frustra
nas duras e pedregosas terras do cume não crescem os mimos dos hortos
só se alimenta de neve e vento quem desdenhou os sórdidos banquetes
aquele que se abandona ao espírito do mundo
só vence a morte quem venceu a vida na morte do dia-a-dia
a solidão faz a poesia surda
deixar tudo seguindo o trilho das rosas brancas com a carne violada por espinhos transfigurados em beatitude
a mais harmoniosa de todas as viagens é a interior liberdade absoluta na escolha do trilho deixando o mais belo dos crisântemos por colher e a suculenta amora no silvado
de que serve cursar mundo quando na floresta-virgem o leão dormita e a gazela se deleita com pasto tenro
não há maior violência do que a cadeia alimentar
gerei a eternidade sem o saber
criei uma nova alma
para ele nele e para mim
ele aqui
e eu nele -
imortalidade
quando o pensamento cessa o homem transforma-se na sua alma e sem que nada busque fora encontrará certamente o que no seu interior se demora
irá esconder-se no que escondido está
puro acto de amor
saindo ambos mão dada à intempérie
sorrindo sempre
o reino não está fora está dentro sensações
no mais belo e obscuro dos palácios
vitrais
espelhos
pedrarias
as mais belas mulheres
os mais puros de todos os vinhos
as mais deleitosas de todas as impressões
apartou-se do rumor canibalesco das ruas calejadas
aquele que é foi e será
este é o seu templo o seu repouso
de que servem os templos disseminados pelas planícies e vales
romarias ao alto de montanhas mortas
mesquitas
igrejas
sinagogas
capelas em ermos
nós somos o templo
a alma tem sem saber
o que tem e
o que tem lhe basta
despedaçou-se a rijeza serrana
duas lágrimas correram na face enlutada
senhor
tenho contas a ajustar contigo
consintas ou não
venhas ou não
terás de me ouvir
as ruínas da paisagem arruinaram a criação
sem beleza a viagem
sem fim é a peregrinação
procuro uma nação distante um paraíso em gestação
uma paz que seja constante um novo coração para amar
tenho tanto para dar
pouco importa receber
e mesmo que tenha de sofrer
com a alma rasgada de amor
receber-te-ei nessa alegre dor
que a vida dá
ao próprio morrer
porque quem desse modo morre
para o eterno júbilo há-de nascer
quer queiras ou não
terás de me ouvir
foi na morada da serra nascida do gelo e amamentada pelos torgais que das alturas mergulhei pela primeira vez nos abismos
meia-dúzia de chalés no lugarejo
um charco iluminou-se ao som da lua naquele local haviam uivado tristes tísicos nas noites plantadas de frígidas estrelas
ao amanhecer um manto de neve cobria todas as emoções sentimentos e afectos os pensamentos escorriam nas falanges regeladas
no vale das éguas um silêncio sepulcral e as penhas douradas ainda orvalhadas projectavam sombras vivas na lagoa de cristal
ali estava o meu oceano as caravelas de antanho os velozes veleiros do algodão com seus capitães ferozmente tisnados pelo sol dos mares embravecidos do sul
canibais vestidos de azul
na vila submissa ajoelhada aos pés dos cumes graníticos bebia-se o sangue da terra negra esventrada por nossos avós
um garimpeiro de almas abrira as portas do campanário deserto a casa ao lado habitada por giestas e por bem-nascido silvado estava à venda
ninguém comprava nada o pároco só no confessionário
deus tinha andado por ali naquele vazio inóspito de floreiras murchas e de vasos despedaçados
afastara-se entediado a senhora t da casa da águia asseverou que andava por assedasse
se por lá andasse
– como se eu acreditasse –
já teria sido visto
observador de raios criadores e trovões demolidores como era
sou
e o ignoro
os degraus da sala desciam por um portal semiaberto
daí haviam partido em pânico e sufoco todos os descobridores de monstros e animais fantásticos
mares de olhos negros onde rugiam cravos mágicos
nos rochedos do firmamento ouviam-se os cânticos do sangue coalhado
um quadro a óleo na parede virgem
- a música é um modelo para a pintura –
uma fenda no tabique do lado de lá da realidade o mais belo de todos os tesoiros
nem pratas nem oiros nem pedras preciosas
na escuridão amorosas ninfas subterrâneas
um vazio um nada
queda vertiginosa no vórtice do sonho
meu deus
que tenho eu
para te ofertar
noites de volúpia
sexo sem findar
vinho cor de rubi
na mesa a abarrotar
ou esta dor
que me consome
angústia existencial
a germinar
pesar de quem te ama
e na transgressão se suja
que não sabe o que ama
nem porque ama
e talvez nem saiba
o que é amar
nem porque é sujado
na violação da norma
que da cruz nos deixaste
dou-te apenas o que te posso dar
este padecimento angústia dor
que tu em mim geraste
***
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