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OS TRATAMENTOS SUGERIDOS NÃO DISPENSAM A INTERVENÇÃO DE TERAPEUTA OU MÉDICO ASSISTENTE.

ARTE

domingo, 20 de maio de 2018

DESCONSTRUÇÃO XIII



Download dos textos de ANTIPOESIA ou a insustentável arte da falsa erudição em –



***



estou certo de que num dia doirado ao refulgir da alva como rimbaud profetizou entrarei só e de cabeça erguida armado de inflamada paciência na cidade esplêndida e luminosa
aí sem qualquer alucinação ou apegamento rodeado de veros espectros silentes imergirei na verdade absoluta onde o tempo se ab-roga naturalmente e o espaço se desmembra no ilimitado 

    abençoado o que nasce para si e morre sozinho
                     em recato ditoso seja


um cão malhado coça-se à porta da cafetaria

será pulga ou alergia ao humano

um carro encarnado em cravo passa com um preto a distribuir ruidosa música

uma gaivota sobrevoa o pontão onde dois jovens se beijam
misterioso é o florescimento da escuma nos corações

o pensamento não está presente

nem a rebentação das ondas acossa a melancólica quietude

a alma está passiva

comprei um livro de poemas          mais um que irei depositar na biblioteca municipal
sou avesso à acumulação de bens materiais
                              à obstipação emocional
                                       e à subserviência

desisto do café às onze horas          piranhas velhas malquistadas

os desaguisados ensombram o paladar

há pouco um momento em que tudo parecia brilhar mais

mesmo assim não paro de me assoar

no telhado dois trabalhadores negros discutem copiosamente a disposição das telhas
                                                      pobres trolhas

o p j enviou-me mais um texto para corrigir   

                 teologia dogmática pura
                      o deus dos afectos 

não sou de ninguém          espreito o meu coração   
                           ainda bate
e a flor no caminho          pouco tarda para que murche
           tudo emurchece

o carrasqueiro antigo

não há quem queira ser velho
se os trapos o são porque razão não o seremos nós também

vegeta a desídia no tempo          narcotizam-se raízes no espaço

mães que concebem filhos para a insipiência do trabalho e efemeridade da ambição

amanhã é domingo

fato com ténue olor a naftalina

dia de banho na aldeia

a vitalina arejou a igreja
      cravos rosas e crisântemos
            mimos depositados em jarras
                  e uma mão-cheia
                         de cristãos-submarinos

sou o que no mundo te procurei
que por velhos caminhos desviados
passo a passo pelo deserto errei e
na mesa e leito dos transviados
sentei e deitei sem cuidar do pecado
que no corpo sentia e na alma crescia

                 sou o caçador errante
       que ao veado neguei inevitável flecha
                      porque bramia

sem dono
              compassivo
                               desesperado

           mortal imerso em floresta negra
          sem candeia que no escuro alumia

               pobre alma que de tão vazia
           não sabe o que é certo ou errado
              nesta noite suja a negar o dia

quando o que está escondido se desencobre inunda o quarto atravessa serranias e vales

estende-se muito para além da via láctea          ah andrómeda como estás próxima

remanso total isento de ego de qualquer pensamento
                reconhecimento
                                    condicionamento
                                                         ou memória

retiro     
peço          de nada serve pedir a quem melhor do que eu sabe o que me convém

           o almejado atinge-se em resignação
                puro amor ao amado dedicado

o que se esconde pode atingir o que está escondido
longe do mundo dos desejos das aflições da trivialidade e mesquinhez de guerras e contradições

                    quem o tem tem tudo

                  aquele que mata a alma
                     aniquila a eternidade
                morre-lhe a verdadeira vida  

paz ao seu nada

quando entrares em ti fecha as portas

quando te esconderes que estejas deveras escondido quando no mundo no mundo estejas

nesta vida nada há de mais dificultoso do que o encontro dos que se escondem no âmago do arvoredo 
mesmo o que por parco período se esconde para alcançar o eternamente escondido

as árvores imensas escurecem o solo
o canto das aves exóticas obscurece a voz do que em surdina se apresenta 

a vegetação disfarça o trilho

        a alma nele
        ele na alma
        saboreando-se mutuamente no amor
                    que se dá e se recebe

na presença súbita e no padecimento natural da ausência
no entendimento do enlace ou no desentendimento do abandono
a aceitação de sua vontade feita nossa
desígnios incompreendidos de pobres mortais 

qual a minha mão direita qual a esquerda
não sei          foram-me comutadas nas horas da infância
daí a irresolução

peço a noite calada
                         a mudez da alma
                                                 o dumo selvagem

não me furtem a suave escuridão
                                                 meu único bem

encerra-se a golpelha ao rolar das trevas

não desaguam pensamentos nem se ausentam

o corpo cadavérico quase extinto
                            a alma lívida quebra liames  

      o aposento aquieta-se
     o momento eterniza-se

         esvazia-se a razão
         corta-se a atadura

           a mente serena
       na dulcidão do letargo

           é sumo e é pena
        do que vem amargo

                          quando a paz abala
                        sem o dizer a ninguém

acordo a pensar na alma

                                     ainda é cedo
               adormeço nela

pressão constante no ventre

                     cordão umbilical que se sente


chamam-me          um homem tentou suicidar-se no dia do baptizado da neta

lá fora um calor infernal          morre-se de hipertermia 

a morte é afinal tão natural como a vida          basta de alarido
                  não morreu desta o suicida

estranha vida esta
o sem-sentido da opção de quem não ousa passar
para o outro lado por neste não encontrar motivo para permanecer
    ou talvez          clamar por consideração
       escolhendo um dia de festa para a sua fazer
       escolha obviamente acertada

vou suicidar-me por uma tarde


dias de ignorância

a insipiência é mensurável pelo pesadume da experiência

traquejo do sofrimento
negação de calendário com perfis nus

lá fora o sol incinera a sarça
cá dentro a alma em queimação


quem sou eu


haverá um falso eu

haverá um eu verdadeiro

pássaro ferido arrojado aos pés de camélias brancas

espírito alado varado pela dúvida

ânimo acorrentado              prisioneiro do destino
          beatitude da mais pujante soledade
                     levante de noite escura 


quem sou eu


o mês das giestas já poisou nas mãos mortas da indigência quotidiana
                              as urgueiras brotam desejos
                              os pinheirais estão mudos
                              os relvões do cume fanados

corpo          consciência          intelecto
quando vigio quando no sono sonho e quando durmo profundamente na morte do entendimento
o que é que tem subsistência

sou este corpo          mundo de órgãos e morada de biliões de seres que o habitam servem matam e são mortos

sou o que como           o que desenfezo          o que defeco          o sémen que derramo nas horas de luxúria
          suor de tardes violentas
          calafrio de intempéries  ancestrais
           sincelo que na carne se entranha e os ossos rói

                       corpo que dói


quem sou eu


a percepção da realidade e do sonho a brotarem dum corpo que se abastarda dia-a-dia
o percebimento da orbe pelos sentidos


sonhei ser borboleta ou sou agora uma mariposa que sonha ser um homem


quem sou eu


o ego               os pensamentos aí engendrados no sonho do sono e na insonolência

esse misérrimo eu criador de todas as iniquidades


serei corpo          consciência          intelecto


                 dormirei profundamente
                     e saberei que não


arbustos de fogo ardente 

braços de plumas agrilhoados

príncipes do nada pudibundos

feras abatidas com palavras de aragem

rugido de mar nos canaviais de gente
asilada no pomo desfeito da nuvem dos dias

abrigo
de pobres-loucos-rastejantes manchados de chagas pungentes cor-de-rosa 
olhos de devaneio incerto da anciã terra enegrecida por punhais das estepes 

salvação
o senhor-do-mundo bem sabe o que faz

mata
        estropia
                   banha-se no sangue quente da carroça de um só rodado
ainda que não carregue o peso do delito exilado de  subterrânea consciência

tristão

triste o boi sacrificado pela farpa despovoada de piedosos e a canção renovada da música aquática desaparecida na névoa escura do mar sem fim

   almas de fogo ardente consumidas pela escarcha

a pobrezinha
                 descalça
                     na estrada geada
                                    mendigava
                                         um quarto de trigo
uma sopa
             um naco de pão
                coisa qualquer
                        pouco mais que nada
                               o que deus quisesse
                                      naqueles tempos 
                                              de negra fome

o desembargador
                             homem rico da freguesia
olhou-a com ar irado
                              mandou-a trabalhar
a pobre
          sem forças
                         sem amparo
                                       sem marido a seu lado
                                             apenas um filhinho
                sabe deus de quem
que faminto chorava

                 e continuou estrada fora
                      com frio e fome
                   a carregar nos braços
                   o pecado que em vida
                   nunca lhe foi perdoado

neste dia de todos os santos vejo o teu rico jazigo
homem de leis abastado impiedoso e celerado
e sei que por teu acto naquele inverno
                   ardes hoje no inferno
                         em pecado
                        de que nunca 
                      serás inocentado

enquanto a pobre no paraíso
      santa alma de amor
                     reza por ti juiz iníquo
                  o perdão a nosso senhor

o leão que ruge dentro de mim
floresta incandescente          labaredas que transbordam

em toda a parte espectros vivos da perdição afugentam os pombos da praça esculpida na imundície 

sinto a brevidade da existência na nuvem que por momentos ensombra a estátua de bronze     

o trem parte          tenho de partir para onde me chamam os ventos da impaciência

os vidros foram lavados          embaciada a paisagem
opto por olhar para dentro                       perco-me
não vejo luz                                      na escuridade

         amanhã ou depois talvez seja diferente
                             conformo-me
                  afinal tu és um deus ausente

e eu sou no mundo o animal selvagem oculto em floresta de silvas e espinheiros

a água dispersa no coração do banquete de monstros e orquídeas

o vinho que enche as taças efervescentes das noites pecaminosas de luar

sou a alma negra do tumulto a afagar a morte com tranças de vidoeiro

o que espera na estrada sem berma a aparição da doce aragem de romã madura

que sulca os mares perdidos de sangue sem destino ou rumo na nau fantasma

o que se alimenta vorazmente do tempo e sente que gota a gota se derrama

no oceano da vida que finda quando o sol se põe

já sabido
os mistérios serão sempre mistérios
o que faz deles não-mistérios

prolongar os dias no carreiro da processionária descobrindo o que não existe

vida de saltos mortais
                                piruetas
                                trejeitos 
                                  e gente obsoleta a vaguear nos corredores das cidades
                                       nos trens
                                       nas aldeolas
                                          na promiscuidade dos pavilhões exsudados
a clandestinidade da traição
                                        a fome
                                        a ganância
                                        e a ira dos povos

       morreremos tão asnos quanto nascemos

as árvores nem sempre são verdes e os rios não correm sempre na direcção do mar
pouco mais                                           pouco mais

a porta aberta aos séculos de pássaros sombrios

a palavra que nasce da flor do espaço
gente em peregrinação quando deus o quer
                não há sinais de sua chegada

abraça-me senhor
              
                    teu sagrado ventre no meu

                              invade-me com teu sangue


    brame mar nas correntes

    mãos de fogo nas pétalas que sucumbem

    na boca de teus dentes

rio dos afectos
      margens que se não adivinham
               pupila inquieta em plumagem de verão
         sinistra cascata onde o tédio se desmorona

    janelo do madeiro corroído

a noite vem          o tempo passa            arrasta-se
o meu olhar demora-se no candelabro de cem velas

esta interioridade basta-me          de nada nem ninguém alimento saudade
como poderei ter saudades quando abarco o mundo no meu sôfrego engenho 

duas doutrinas ancestrais aos pés da cama     

                                                     desprezo-as

uma estranha vibração percorre os meus tecidos

o aposento aquieta-se          eu sou aquele que sou

        pouco mais para além dos seis sentidos


             quarta noite na casa de inverno

nas paredes de granito e pinho o emudecimento     
                 esta paz incompreensível

sacarinos são os pomos da escuridade

          espírito que se derrama
  beatitude que a si mesma se alumia

mesmo que o destino seja amargo e o sonho pesadelo subo à minha torre onde os sinos têm dobres de alegria

                  longe de ti não há caminho

uma via
                                 sem divindades

                            estende-se pela planície
                                                       arroxeada
       
                      enquanto
                                   cavalos níveos
                        na neve
                                     resfolegam na
                                                 alma constrangida
daqueles noviços
                         tão assustados nos
                         medrosos cárceres
                         como espoliados ouriços

mesmo autenticando a inutilidade da palavra persisto em falar

lavrar impiedades no papel precioso quando vazio e improfícuo se preenchido de sinais burlescos

observo a flor em silêncio que mahakashyap olhou

só a flor existe na campina que a esgota e é por ela consumida

              só mahakashyap compreendeu

louco porque razão tropeças nos teus próprios passos

primeiros passos da criança-nova

                           evacuar a alma
                           emudecer a voz
                         não encalçar nada

depois com a mente desapossada de todas as inanidades voar sobre a ravina mortífera para além do próprio vazio planando nos céus sem opostos

                    descoberto o buda mata-o
                   vai além             mais além
                      além para além do além 

a verdade num corpo e numa alma a ocupar e a consagrar amorosamente o universo

decisivamente

os ramos nodosos vertiam versos de miserável vetustez          a velhice aos portais do final da noite partilhava a cama carmim com a mais serena das dores
agitaram-se os ribeiros com três pés de profundeza na entrada da cidade sitiada a norte por exércitos de mitos remotos          nos abismos traídos pela avara justiça os mortos juntavam-se à maioria      escravizada a razão à  vida elanguescente
um milhar de soldados encaminhou-se para as muralhas
             o dia resplendia
                        o terror exalava das acácias
                          um louco por cada árvore rasgada pela vergonha
                    imaculada
                          a sombra da estátua de mármore onde discípulos dormiam na luz ténue do crepúsculo

houvera aí em tempos um mestre mudo

castelo de várias torres e tesouros adiamantados escusos

a insolência das palavras reduzira-o à solidão do portão emparedado

vivo na morte o mais afortunado dos anacoretas só divisava um caminho

                    um ramo de azevinho

lembro-me de quando rezava orações de rodas dentadas em máquinas perfeitas

nessa altura eu era mais feliz
havia deus em todas as coisas todas as coisas eram deus

o verde das searas
                           era mais verde
o azul do céu
                           era mais azul
o mal era
                           menos mal

tudo tinha a explicação simples das noites de luar

     o mal do mundo não era dele era nosso e
                 o bem era dele e nosso
   e tudo estava bem eterna e infinitamente bem

se hoje voltasse a orar orações imperfeitas de esquecimento provavelmente tudo estaria bem
mesmo as engrenagens corroídas pelo tempo ferruginoso
                     tudo estaria bem 
               para todo o sempre bem

nas mãos tão pequenas das crianças as sementes da natureza          a mãe de todos os entes trinitários          denodo e clemência          não há mando atroz que destronize a munificência da sua dantesca exactidão
persigam-nas na desnudez dos entendimentos nesse préstito que peregrina para sueste quando as águas regelam e os corações empedernecidos vegetam e intermitem as plantações de espinhos na placitude transcendental das escumas primaveris
libertos de todo o mal

somos máquinas ancestrais
de rodados quadrangulares

uma libra esterlina por cada eixo soturno          os vendilhões do templo fruem dos erros dos crédulos
quem melhor do que eles nos poderá ensinar a rectidão e a justa vereda

escavam-se fossos maldiz-se o bem desabrocha a malícia estremece o ódio nas imediações das artérias mutiladas pelo desgoverno dos trirremes da anunciação

a cavalaria sinuosa abraçou a floresta prateada onde os ossos descarnados exibem paisagens de vida

ah o medo da morte que iguala fraco e forte e arruína em ápices as sevícias de toda uma vida de facções e pérfidas ambições

uma lágrima por cada pecado


os seus passos caminhavam absortos no leito do rio reflectido nas luzes amarelas da avenida

perguntava-se
quem tem a natureza da suprema felicidade e a natureza feliz de todas as felicidades
a quem deveria render homenagem naquela hora de negro desespero

olhou-se no fato escarlate do desejo          fez circular o olhar graus de vertigem apertou os dedos nas mãos ressequidas pela brisa marítima deixou o coração de corda palpitar como brinquedo barato que pudesse levianamente desperdiçar

na visão de longínquos corpos que saíam de bares isentos de sémen exasperou
                      iria continuar sozinho
                          oh ânsia de sexo

nascera homem na cal do dia enevoado
poderia ter nascido pedra
                                     cacto
                                     rato
                                     pluma
                                     ave
mas nascera homem para adorar esfinges de pedra barrenta
sem ter a quem seguir

na rua escura com espectros de carne jovem não tinha a quem amar
nem mestre para ouvir dizer que ser feliz é atar um nagalho no sexo entupido eliminando-o do quotidiano azedo remetendo-o para os sonhos do sono quase profundo do decesso prematuro do prazer enterrando-o na maré vazia de esperma estéril

regressou ao quarto das águas furtadas

seu pequeno mundo florido de quimeras ornado a melodias barrocas

                  mais certo do que nunca
         seria para sempre o seu próprio mestre
              o eremita do ninho das águias

o bosque gelou nas asas dos estorninhos

o desgosto nos campos frios dorme ao som das cordas da experiência
                                nosso primeiro guia

as delícias do amor na dança afervorada do sangue fermentado inebria a luta das aves por um pedaço de céu                         harmonia
                          das baladas que seguem 
                                o curso dos rios
desertos e inundados de inverno
a quem os homens chamam               simplesmente            
                                          inferno


o crepúsculo venceu hoje a aurora depois do mistério da noite ter consumido meia vida em meia-noite vivida
o medo ergueu-se com a alba para que ela o pudesse contemplar na sua forma quase divina e etérea

loira serpente das profundezas do desejo 

a senhora da noite obscura 
a minha paixão incognoscível 
luminosa estrela de braços esplendorosos

                       meia-noite
                        meia-vida
                 meia existência perdida

a sombra explode em rosas luminosas

florescem os seios da manhã a amamentar lírios

no mar azul-celeste de espuma ígnea 
jardins suspensos rejubilam 
ao marulhar de rochedos disformes

um espectro diáfano perfila-se          imagem sacra de pedra
                         guardiã dos portais de catedral 
                                      de papel de seda rosa
                            enquanto o sol dói ao nascer 

no dia sombrio um rio espelhado percorre as margens do cérebro
o mistério escorre lânguido pela ponta dos compridos dedos 
                         da noite anunciada

a montanha é um beijo áspero rude exacto e o lago acetinado acaricia melancolicamente o afogado no casamento da alegria com a dor da vida com a morte celebrado no campanário do crepúsculo à vista dos dons de misericórdia do inferno dos céus no fim da avenida do enforcado

a noite veste-se de luar depois do dia se desnudar

um mundo magoado enraíza-se entre blocos de granito cinza

o vento brame                             a noite em êxtase
              as trevas balbuciam orgasmos
             nas copas virgens dos pinheiros

                               o vento
                              gemente
               chora lágrimas de folhas secas
rasga o peito das sombras com o espinho da solidão
               num corpo de mulher enevoada

meia-noite                                              meia-vida
                           meia-existência
                             despedaçada

noite escura da solidão

rosto de espuma branca de gelo rasgado
ó pescador de almas
a morte não existe para os jovens amados pelos deuses

perfeita harmonia de tempo amarelecido como as folhas de livro de pedra
devagar                                                    devagar
                     as flores casam as cores
               sobre o gume de adaga mortífera

pinto um quadro monocromático de infinito
enquanto em agrigento empédocles discursa uivando
um bote voga na barra lavrando o mar 
funesto túmulo dos ignorados

noite escura de temporal

a alma sangra
                       empobrece
                                         o lago esconde-se
na pedra negra
                          que os construtores rejeitaram

o céu derrama nuvens não profanadas
com dedos de pétalas
a apontar graciosamente a lua
                                            que hoje é nova
e pena sem remédio

de quem é aquele castelo nos confins da tua voz 
de quem é o eco sem fim
que matronas vagueiam nas ameias que confirmam o trono de medusas
de quem é o olhar verde que se desvia do abismo da matança dos inocentes

aquele que é filho da terra e dos mares

                                        é o vivente

o estio do chapéu-de-chuva do outono glacial de largos gestos estreitados ao peito de mutilada estátua cinzenta
fruto doirado a assistir insensível à infinita mascarada das horas profundas depositadas em astros incandescentes nascidos dos ulmeiros da infância cingida por palavras anos-luz anunciadas por um sino velho e rouco engasgado pelo catarro húmido e irritante do relógio da torre

                        enquanto isso
             a alma sangra numa folha azul
                         e exaure-se

paz 

           bem

                           benção
graça

           bondade 

                           misericórdia

                 o senhor
                              é
                                meu
                                       pastor

                       quem o senhor
                               tem
                     o senhor lhe basta

e se a paciência tudo alcança a tua bondade quando resplandece naquela que escondes santifica os santos a quem a guerra é alheia porque é coisa de homens e os santos não são homens
são os espectros luzentes dos címbalos da noite ignota          são tambores que rufam sem culpa ou pecado           são os que no espelho de si experimentam sentimento de respeito e afeição pelas imperfeições de sua carne           são os que como o melro negro escondem os seus ninhos          são os que não contabilizam o futuro nem sinos tangem          são prisioneiros voluntariamente encarcerados na infinita cela do amor

                       o senhor lhes basta
                 a sua alma basta ao senhor e
  de mãos dadas transcendem o espaço e o tempo

o tempo some-se nas caves do esquecimento

o lago gela na viagem do homem para a morte

um rapaz transporta erva húmida
apoiada na virginal pele macia

murmuram as fontes junto aos riachos que à costa dão nas marés de setembro da gandaia de rosto sulcado por negras vagas acocoradas nos mouchões da corrente norte

o vento endoidecido não suporta o brilho do sol reflectido nas pequenas flores das ervas da margem

            pudesse eu viver tudo de novo
            tudo viveria de novo
            o que a terra me deu
            o que num último abraço me há-de dar

o relógio que não tenho 

                         da sala que não tenho

                                      bate
                  
                   há luzes moribundas na abóbada 

              delírio de despedida e
o coração em chamas sem fumo

bate

                    o céu vai alto

tão alto                                                   tão aéreo
                  o meu braço não o alcança

vai alto

                        como a rua em transe
                       do meu espírito em cruz

vai alto

o tempo é um lameiro reverdecido e penhorado às montanhas seminuas com noite de ossos de estrelas cadentes

o tempo é pureza e loucura paisagem destruída daquilo a que chamam vida nos corredores da morte

vou-me
não sei para onde
vou-me
deixando para trás a encruzilhada de néon
vou-me
cavalgando lágrimas e trovões
no vento dividido pelo quadrante da indecisão
refugiado no patíbulo do fazedor de chuvas
desperdiçando dias de amor
no fracasso da eternidade 


tarde comecei a escrever versos          uma cepa de maus poemas entrelaçados nas videiras bravas do sem-sentido          já os havia escrito nos cabos emaranhados do cais do esquecimento letárgico das pedras gastas do ancoradouro norte 
esses              nem bons nem maus
dos quais não me recordo do mesmo modo que a sé catedral não relembra as promessas angustiadas dos aflitos inscritas nos altares e santos gastos por orações douradas

escrevia-os e lia-os 
enquanto tu velho amigo de quatro patas no teu distendido pêlo fulvo interrompias vivaldi para os ouvir
os teus olhos iluminados desaprovavam a dissonância de grande parte das frases encadeadas num arremesso
outras brilhavam nos teus olhos luzeiros de universo
olhos compassivos sem mágoa 

adormecias ao som das quimeras ditas num sopro e tal criança brincavas infantilmente com as imagens  das garatujas ficando o meu mais profundo ser a velar por ti horas infindáveis de espanto

qualquer movimento teu era uma palavra redonda perfeita
qualquer olhar nocturno um canto à fé dum mundo-sem-esperança
a elegia do olhar vagabundeava na nossa cabana com vista prateada para o rio verde-esmeralda que nunca conseguiste ver

dia        noite        noites         dias e meses contigo a olhar
reprovando as lágrimas ensanguentadas do momento pontiagudo do desespero porque a paz já nascera nas paredes encantadas do mais rico dos palácios

                     a cidade magnífica do amor
                        estava aos nossos pés 
                   poço de água pura inesgotável

apenas te vi chorar uma vez
- os animais também choram -
eu que tantas chorei e senti a fraqueza duma qualquer erva a vibrar no caminho
partias para o reino da morte e eu verdugo havia indeciso assinado o veredicto
pedi-te                           não chores
uma parte da minha alma vai contigo
    a outra saberá onde te encontrar
  quando juntos entrarmos vitoriosos
          na cidade branca do cume

no dia triste dos caminhos áridos anémonas serpenteavam o cume da rosa branca melancólica na respiração opressa do ar rarefeito da angústia

                           senhor 
                    tu que me habitas
                        consola-me

o lótus asperge luz no zimbro rasteiro da ânsia
tu és o som das nuvens a roçarem o ápice
do vento revolto nos caules da inquietude
e na raiz enevoada da esperança

                           senhor
                    tu que me habitas
                  vence o meu inimigo

tu som sacramental do vazio
fonte do objecto disperso dos meus sentidos a quem a razão dissemina no esquecimento da memória desmoronada e a neve oculta no rigor da adversidade

                           senhor
                   tu que me habitas
              vence-me a mim mesmo

as faces sedosas de tua bondade
teus longos dedos da benção invisível
a indiferença que é compaixão no lírio e no melro
faz de ti meu mestre de dor

                           senhor
                 tu que me habitas
                  alivia o meu jugo

uma vez que seja
                          abro as portas da mente
uma vez que seja 
                          perante ti me ajoelho
                          e rasgo meu rosto
                          na sarça ardente

                           senhor
                    tu que me habitas
                liberta-me para sempre

escrevo-te em segredo como a planta que deseja enflorar
ser cor
           cor à meia-noite e
                                      cor ao meio-dia 
que desperta na sombra colorida do lago coberto de espelhos onde se debruça ou na campa rasa que beija

o meu corpo tem nove portais
mesmo que a todos encerre seremos trespassados pelo som eternamente acutilante do amor
saibamos ou não quem somos          sejamos ou não pó 

eu posso ser tu
                      tu podes ser eu
                                              porventura tu és eu
e eu tu

se tu és eu
                e eu sou tu

                      eu e tu somos tu
                      trindade num só


seguíamos cansados          exaustos
pela mão das rimas no passo das estrofes

mas

aquela coisa incerta
                             era nova
e o silêncio novo
                             a cada instante

as nuvens aproximavam-se
existíamos sem que nunca tivéssemos existido
éramos sem que nunca tivéssemos sido

estranho

aquele azul sem nuvens
                                  a terra imóvel
                                  as montanhas incendiadas
                                  o infinito da mente

falámos do medo

          daquele medo que é fruto do passado
                   do que nascerá no futuro
                do medo que já vive no porvir

falámos da bênção e da pesada barcaça mal calafetada e do barqueiro sem proa e do sol e do medo do medo

os pés descalços lavravam a poeira da vereda ladeada de silvas e de terra queimada

árvores pálidas no rosto marcado pelo desespero das distantes colinas

as curvas da estrada estavam silenciosas no vale onde dois abetos se entrelaçavam

paisagem doce

dela sobressaía
                      a casa da meditação
                      o quarto dos fundos
                      da reclusão voluntária

             e a bênção veio

descia na direcção do lago dos desejos entre giestas e rochas doridas pelas borrascas da invernia

a vereda enlameada com a neve a derreter na confiança da nitidez do crepúsculo

flores amarelas salpicavam a alma atulhada de pecadilhos soltos nas extensas sombras da efemeridade

o sol já estava por detrás dos montes violáceos transportando a melancolia do anoitecer ao ritmo do sopro fascinante da primavera

                     e de tudo emergia
                    uma eterna energia



***


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