Download dos textos de ANTIPOESIA ou a insustentável arte da falsa erudição em –
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estou certo de que num dia doirado ao refulgir da alva como rimbaud profetizou entrarei só e de cabeça erguida armado de inflamada paciência na cidade esplêndida e luminosa
aí sem qualquer alucinação ou apegamento rodeado de veros espectros silentes imergirei na verdade absoluta onde o tempo se ab-roga naturalmente e o espaço se desmembra no ilimitado
abençoado o que nasce para si e morre sozinho
em recato ditoso seja
um cão malhado coça-se à porta da cafetaria
será pulga ou alergia ao humano
um carro encarnado em cravo passa com um preto a distribuir ruidosa música
uma gaivota sobrevoa o pontão onde dois jovens se beijam
misterioso é o florescimento da escuma nos corações
o pensamento não está presente
nem a rebentação das ondas acossa a melancólica quietude
a alma está passiva
comprei um livro de poemas mais um que irei depositar na biblioteca municipal
sou avesso à acumulação de bens materiais
à obstipação emocional
e à subserviência
desisto do café às onze horas piranhas velhas malquistadas
os desaguisados ensombram o paladar
há pouco um momento em que tudo parecia brilhar mais
mesmo assim não paro de me assoar
no telhado dois trabalhadores negros discutem copiosamente a disposição das telhas
pobres trolhas
o p j enviou-me mais um texto para corrigir
teologia dogmática pura
o deus dos afectos
não sou de ninguém espreito o meu coração
ainda bate
e a flor no caminho pouco tarda para que murche
tudo emurchece
o carrasqueiro antigo
não há quem queira ser velho
se os trapos o são porque razão não o seremos nós também
vegeta a desídia no tempo narcotizam-se raízes no espaço
mães que concebem filhos para a insipiência do trabalho e efemeridade da ambição
amanhã é domingo
fato com ténue olor a naftalina
dia de banho na aldeia
a vitalina arejou a igreja
cravos rosas e crisântemos
mimos depositados em jarras
e uma mão-cheia
de cristãos-submarinos
sou o que no mundo te procurei
que por velhos caminhos desviados
passo a passo pelo deserto errei e
na mesa e leito dos transviados
sentei e deitei sem cuidar do pecado
que no corpo sentia e na alma crescia
sou o caçador errante
que ao veado neguei inevitável flecha
porque bramia
sem dono
compassivo
desesperado
mortal imerso em floresta negra
sem candeia que no escuro alumia
pobre alma que de tão vazia
não sabe o que é certo ou errado
nesta noite suja a negar o dia
quando o que está escondido se desencobre inunda o quarto atravessa serranias e vales
estende-se muito para além da via láctea ah andrómeda como estás próxima
remanso total isento de ego de qualquer pensamento
reconhecimento
condicionamento
ou memória
retiro
peço de nada serve pedir a quem melhor do que eu sabe o que me convém
o almejado atinge-se em resignação
puro amor ao amado dedicado
o que se esconde pode atingir o que está escondido
longe do mundo dos desejos das aflições da trivialidade e mesquinhez de guerras e contradições
quem o tem tem tudo
aquele que mata a alma
aniquila a eternidade
morre-lhe a verdadeira vida
paz ao seu nada
quando entrares em ti fecha as portas
quando te esconderes que estejas deveras escondido quando no mundo no mundo estejas
nesta vida nada há de mais dificultoso do que o encontro dos que se escondem no âmago do arvoredo
mesmo o que por parco período se esconde para alcançar o eternamente escondido
as árvores imensas escurecem o solo
o canto das aves exóticas obscurece a voz do que em surdina se apresenta
a vegetação disfarça o trilho
a alma nele
ele na alma
saboreando-se mutuamente no amor
que se dá e se recebe
na presença súbita e no padecimento natural da ausência
no entendimento do enlace ou no desentendimento do abandono
a aceitação de sua vontade feita nossa
desígnios incompreendidos de pobres mortais
qual a minha mão direita qual a esquerda
não sei foram-me comutadas nas horas da infância
daí a irresolução
peço a noite calada
a mudez da alma
o dumo selvagem
não me furtem a suave escuridão
meu único bem
encerra-se a golpelha ao rolar das trevas
não desaguam pensamentos nem se ausentam
o corpo cadavérico quase extinto
a alma lívida quebra liames
o aposento aquieta-se
o momento eterniza-se
esvazia-se a razão
corta-se a atadura
a mente serena
na dulcidão do letargo
é sumo e é pena
do que vem amargo
quando a paz abala
sem o dizer a ninguém
acordo a pensar na alma
ainda é cedo
adormeço nela
pressão constante no ventre
cordão umbilical que se sente
chamam-me um homem tentou suicidar-se no dia do baptizado da neta
lá fora um calor infernal morre-se de hipertermia
a morte é afinal tão natural como a vida basta de alarido
não morreu desta o suicida
estranha vida esta
o sem-sentido da opção de quem não ousa passar
para o outro lado por neste não encontrar motivo para permanecer
ou talvez clamar por consideração
escolhendo um dia de festa para a sua fazer
escolha obviamente acertada
vou suicidar-me por uma tarde
dias de ignorância
a insipiência é mensurável pelo pesadume da experiência
traquejo do sofrimento
negação de calendário com perfis nus
lá fora o sol incinera a sarça
cá dentro a alma em queimação
quem sou eu
haverá um falso eu
haverá um eu verdadeiro
pássaro ferido arrojado aos pés de camélias brancas
espírito alado varado pela dúvida
ânimo acorrentado prisioneiro do destino
beatitude da mais pujante soledade
levante de noite escura
quem sou eu
o mês das giestas já poisou nas mãos mortas da indigência quotidiana
as urgueiras brotam desejos
os pinheirais estão mudos
os relvões do cume fanados
corpo consciência intelecto
quando vigio quando no sono sonho e quando durmo profundamente na morte do entendimento
o que é que tem subsistência
sou este corpo mundo de órgãos e morada de biliões de seres que o habitam servem matam e são mortos
sou o que como o que desenfezo o que defeco o sémen que derramo nas horas de luxúria
suor de tardes violentas
calafrio de intempéries ancestrais
sincelo que na carne se entranha e os ossos rói
corpo que dói
quem sou eu
a percepção da realidade e do sonho a brotarem dum corpo que se abastarda dia-a-dia
o percebimento da orbe pelos sentidos
sonhei ser borboleta ou sou agora uma mariposa que sonha ser um homem
quem sou eu
o ego os pensamentos aí engendrados no sonho do sono e na insonolência
esse misérrimo eu criador de todas as iniquidades
serei corpo consciência intelecto
dormirei profundamente
e saberei que não
arbustos de fogo ardente
braços de plumas agrilhoados
príncipes do nada pudibundos
feras abatidas com palavras de aragem
rugido de mar nos canaviais de gente
asilada no pomo desfeito da nuvem dos dias
abrigo
de pobres-loucos-rastejantes manchados de chagas pungentes cor-de-rosa
olhos de devaneio incerto da anciã terra enegrecida por punhais das estepes
salvação
o senhor-do-mundo bem sabe o que faz
mata
estropia
banha-se no sangue quente da carroça de um só rodado
ainda que não carregue o peso do delito exilado de subterrânea consciência
tristão
triste o boi sacrificado pela farpa despovoada de piedosos e a canção renovada da música aquática desaparecida na névoa escura do mar sem fim
almas de fogo ardente consumidas pela escarcha
a pobrezinha
descalça
na estrada geada
mendigava
um quarto de trigo
uma sopa
um naco de pão
coisa qualquer
pouco mais que nada
o que deus quisesse
naqueles tempos
de negra fome
o desembargador
homem rico da freguesia
olhou-a com ar irado
mandou-a trabalhar
a pobre
sem forças
sem amparo
sem marido a seu lado
apenas um filhinho
sabe deus de quem
que faminto chorava
e continuou estrada fora
com frio e fome
a carregar nos braços
o pecado que em vida
nunca lhe foi perdoado
neste dia de todos os santos vejo o teu rico jazigo
homem de leis abastado impiedoso e celerado
e sei que por teu acto naquele inverno
ardes hoje no inferno
em pecado
de que nunca
serás inocentado
enquanto a pobre no paraíso
santa alma de amor
reza por ti juiz iníquo
o perdão a nosso senhor
o leão que ruge dentro de mim
floresta incandescente labaredas que transbordam
em toda a parte espectros vivos da perdição afugentam os pombos da praça esculpida na imundície
sinto a brevidade da existência na nuvem que por momentos ensombra a estátua de bronze
o trem parte tenho de partir para onde me chamam os ventos da impaciência
os vidros foram lavados embaciada a paisagem
opto por olhar para dentro perco-me
não vejo luz na escuridade
amanhã ou depois talvez seja diferente
conformo-me
afinal tu és um deus ausente
e eu sou no mundo o animal selvagem oculto em floresta de silvas e espinheiros
a água dispersa no coração do banquete de monstros e orquídeas
o vinho que enche as taças efervescentes das noites pecaminosas de luar
sou a alma negra do tumulto a afagar a morte com tranças de vidoeiro
o que espera na estrada sem berma a aparição da doce aragem de romã madura
que sulca os mares perdidos de sangue sem destino ou rumo na nau fantasma
o que se alimenta vorazmente do tempo e sente que gota a gota se derrama
no oceano da vida que finda quando o sol se põe
já sabido
os mistérios serão sempre mistérios
o que faz deles não-mistérios
prolongar os dias no carreiro da processionária descobrindo o que não existe
vida de saltos mortais
piruetas
trejeitos
e gente obsoleta a vaguear nos corredores das cidades
nos trens
nas aldeolas
na promiscuidade dos pavilhões exsudados
a clandestinidade da traição
a fome
a ganância
e a ira dos povos
morreremos tão asnos quanto nascemos
as árvores nem sempre são verdes e os rios não correm sempre na direcção do mar
pouco mais pouco mais
a porta aberta aos séculos de pássaros sombrios
a palavra que nasce da flor do espaço
gente em peregrinação quando deus o quer
não há sinais de sua chegada
abraça-me senhor
teu sagrado ventre no meu
invade-me com teu sangue
brame mar nas correntes
mãos de fogo nas pétalas que sucumbem
na boca de teus dentes
rio dos afectos
margens que se não adivinham
pupila inquieta em plumagem de verão
sinistra cascata onde o tédio se desmorona
janelo do madeiro corroído
a noite vem o tempo passa arrasta-se
o meu olhar demora-se no candelabro de cem velas
esta interioridade basta-me de nada nem ninguém alimento saudade
como poderei ter saudades quando abarco o mundo no meu sôfrego engenho
duas doutrinas ancestrais aos pés da cama
desprezo-as
uma estranha vibração percorre os meus tecidos
o aposento aquieta-se eu sou aquele que sou
pouco mais para além dos seis sentidos
quarta noite na casa de inverno
nas paredes de granito e pinho o emudecimento
esta paz incompreensível
sacarinos são os pomos da escuridade
espírito que se derrama
beatitude que a si mesma se alumia
mesmo que o destino seja amargo e o sonho pesadelo subo à minha torre onde os sinos têm dobres de alegria
longe de ti não há caminho
uma via
sem divindades
estende-se pela planície
arroxeada
enquanto
cavalos níveos
na neve
resfolegam na
alma constrangida
daqueles noviços
tão assustados nos
medrosos cárceres
como espoliados ouriços
mesmo autenticando a inutilidade da palavra persisto em falar
lavrar impiedades no papel precioso quando vazio e improfícuo se preenchido de sinais burlescos
observo a flor em silêncio que mahakashyap olhou
só a flor existe na campina que a esgota e é por ela consumida
só mahakashyap compreendeu
louco porque razão tropeças nos teus próprios passos
primeiros passos da criança-nova
evacuar a alma
emudecer a voz
não encalçar nada
depois com a mente desapossada de todas as inanidades voar sobre a ravina mortífera para além do próprio vazio planando nos céus sem opostos
descoberto o buda mata-o
vai além mais além
além para além do além
a verdade num corpo e numa alma a ocupar e a consagrar amorosamente o universo
decisivamente
os ramos nodosos vertiam versos de miserável vetustez a velhice aos portais do final da noite partilhava a cama carmim com a mais serena das dores
agitaram-se os ribeiros com três pés de profundeza na entrada da cidade sitiada a norte por exércitos de mitos remotos nos abismos traídos pela avara justiça os mortos juntavam-se à maioria escravizada a razão à vida elanguescente
um milhar de soldados encaminhou-se para as muralhas
o dia resplendia
o terror exalava das acácias
um louco por cada árvore rasgada pela vergonha
imaculada
a sombra da estátua de mármore onde discípulos dormiam na luz ténue do crepúsculo
houvera aí em tempos um mestre mudo
castelo de várias torres e tesouros adiamantados escusos
a insolência das palavras reduzira-o à solidão do portão emparedado
vivo na morte o mais afortunado dos anacoretas só divisava um caminho
um ramo de azevinho
lembro-me de quando rezava orações de rodas dentadas em máquinas perfeitas
nessa altura eu era mais feliz
havia deus em todas as coisas todas as coisas eram deus
o verde das searas
era mais verde
o azul do céu
era mais azul
o mal era
menos mal
tudo tinha a explicação simples das noites de luar
o mal do mundo não era dele era nosso e
o bem era dele e nosso
e tudo estava bem eterna e infinitamente bem
se hoje voltasse a orar orações imperfeitas de esquecimento provavelmente tudo estaria bem
mesmo as engrenagens corroídas pelo tempo ferruginoso
tudo estaria bem
para todo o sempre bem
nas mãos tão pequenas das crianças as sementes da natureza a mãe de todos os entes trinitários denodo e clemência não há mando atroz que destronize a munificência da sua dantesca exactidão
persigam-nas na desnudez dos entendimentos nesse préstito que peregrina para sueste quando as águas regelam e os corações empedernecidos vegetam e intermitem as plantações de espinhos na placitude transcendental das escumas primaveris
libertos de todo o mal
somos máquinas ancestrais
de rodados quadrangulares
uma libra esterlina por cada eixo soturno os vendilhões do templo fruem dos erros dos crédulos
quem melhor do que eles nos poderá ensinar a rectidão e a justa vereda
escavam-se fossos maldiz-se o bem desabrocha a malícia estremece o ódio nas imediações das artérias mutiladas pelo desgoverno dos trirremes da anunciação
a cavalaria sinuosa abraçou a floresta prateada onde os ossos descarnados exibem paisagens de vida
ah o medo da morte que iguala fraco e forte e arruína em ápices as sevícias de toda uma vida de facções e pérfidas ambições
uma lágrima por cada pecado
os seus passos caminhavam absortos no leito do rio reflectido nas luzes amarelas da avenida
perguntava-se
quem tem a natureza da suprema felicidade e a natureza feliz de todas as felicidades
a quem deveria render homenagem naquela hora de negro desespero
olhou-se no fato escarlate do desejo fez circular o olhar graus de vertigem apertou os dedos nas mãos ressequidas pela brisa marítima deixou o coração de corda palpitar como brinquedo barato que pudesse levianamente desperdiçar
na visão de longínquos corpos que saíam de bares isentos de sémen exasperou
iria continuar sozinho
oh ânsia de sexo
nascera homem na cal do dia enevoado
poderia ter nascido pedra
cacto
rato
pluma
ave
mas nascera homem para adorar esfinges de pedra barrenta
sem ter a quem seguir
na rua escura com espectros de carne jovem não tinha a quem amar
nem mestre para ouvir dizer que ser feliz é atar um nagalho no sexo entupido eliminando-o do quotidiano azedo remetendo-o para os sonhos do sono quase profundo do decesso prematuro do prazer enterrando-o na maré vazia de esperma estéril
regressou ao quarto das águas furtadas
seu pequeno mundo florido de quimeras ornado a melodias barrocas
mais certo do que nunca
seria para sempre o seu próprio mestre
o eremita do ninho das águias
o bosque gelou nas asas dos estorninhos
o desgosto nos campos frios dorme ao som das cordas da experiência
nosso primeiro guia
as delícias do amor na dança afervorada do sangue fermentado inebria a luta das aves por um pedaço de céu harmonia
das baladas que seguem
o curso dos rios
desertos e inundados de inverno
a quem os homens chamam simplesmente
inferno
o crepúsculo venceu hoje a aurora depois do mistério da noite ter consumido meia vida em meia-noite vivida
o medo ergueu-se com a alba para que ela o pudesse contemplar na sua forma quase divina e etérea
loira serpente das profundezas do desejo
a senhora da noite obscura
a minha paixão incognoscível
luminosa estrela de braços esplendorosos
meia-noite
meia-vida
meia existência perdida
a sombra explode em rosas luminosas
florescem os seios da manhã a amamentar lírios
no mar azul-celeste de espuma ígnea
jardins suspensos rejubilam
ao marulhar de rochedos disformes
um espectro diáfano perfila-se imagem sacra de pedra
guardiã dos portais de catedral
de papel de seda rosa
enquanto o sol dói ao nascer
no dia sombrio um rio espelhado percorre as margens do cérebro
o mistério escorre lânguido pela ponta dos compridos dedos
da noite anunciada
a montanha é um beijo áspero rude exacto e o lago acetinado acaricia melancolicamente o afogado no casamento da alegria com a dor da vida com a morte celebrado no campanário do crepúsculo à vista dos dons de misericórdia do inferno dos céus no fim da avenida do enforcado
a noite veste-se de luar depois do dia se desnudar
um mundo magoado enraíza-se entre blocos de granito cinza
o vento brame a noite em êxtase
as trevas balbuciam orgasmos
nas copas virgens dos pinheiros
o vento
gemente
chora lágrimas de folhas secas
rasga o peito das sombras com o espinho da solidão
num corpo de mulher enevoada
meia-noite meia-vida
meia-existência
despedaçada
noite escura da solidão
rosto de espuma branca de gelo rasgado
ó pescador de almas
a morte não existe para os jovens amados pelos deuses
perfeita harmonia de tempo amarelecido como as folhas de livro de pedra
devagar devagar
as flores casam as cores
sobre o gume de adaga mortífera
pinto um quadro monocromático de infinito
enquanto em agrigento empédocles discursa uivando
um bote voga na barra lavrando o mar
funesto túmulo dos ignorados
noite escura de temporal
a alma sangra
empobrece
o lago esconde-se
na pedra negra
que os construtores rejeitaram
o céu derrama nuvens não profanadas
com dedos de pétalas
a apontar graciosamente a lua
que hoje é nova
e pena sem remédio
de quem é aquele castelo nos confins da tua voz
de quem é o eco sem fim
que matronas vagueiam nas ameias que confirmam o trono de medusas
de quem é o olhar verde que se desvia do abismo da matança dos inocentes
aquele que é filho da terra e dos mares
é o vivente
o estio do chapéu-de-chuva do outono glacial de largos gestos estreitados ao peito de mutilada estátua cinzenta
fruto doirado a assistir insensível à infinita mascarada das horas profundas depositadas em astros incandescentes nascidos dos ulmeiros da infância cingida por palavras anos-luz anunciadas por um sino velho e rouco engasgado pelo catarro húmido e irritante do relógio da torre
enquanto isso
a alma sangra numa folha azul
e exaure-se
paz
bem
benção
graça
bondade
misericórdia
o senhor
é
meu
pastor
quem o senhor
tem
o senhor lhe basta
e se a paciência tudo alcança a tua bondade quando resplandece naquela que escondes santifica os santos a quem a guerra é alheia porque é coisa de homens e os santos não são homens
são os espectros luzentes dos címbalos da noite ignota são tambores que rufam sem culpa ou pecado são os que no espelho de si experimentam sentimento de respeito e afeição pelas imperfeições de sua carne são os que como o melro negro escondem os seus ninhos são os que não contabilizam o futuro nem sinos tangem são prisioneiros voluntariamente encarcerados na infinita cela do amor
o senhor lhes basta
a sua alma basta ao senhor e
de mãos dadas transcendem o espaço e o tempo
o tempo some-se nas caves do esquecimento
o lago gela na viagem do homem para a morte
um rapaz transporta erva húmida
apoiada na virginal pele macia
murmuram as fontes junto aos riachos que à costa dão nas marés de setembro da gandaia de rosto sulcado por negras vagas acocoradas nos mouchões da corrente norte
o vento endoidecido não suporta o brilho do sol reflectido nas pequenas flores das ervas da margem
pudesse eu viver tudo de novo
tudo viveria de novo
o que a terra me deu
o que num último abraço me há-de dar
o relógio que não tenho
da sala que não tenho
bate
há luzes moribundas na abóbada
delírio de despedida e
o coração em chamas sem fumo
bate
o céu vai alto
tão alto tão aéreo
o meu braço não o alcança
vai alto
como a rua em transe
do meu espírito em cruz
vai alto
o tempo é um lameiro reverdecido e penhorado às montanhas seminuas com noite de ossos de estrelas cadentes
o tempo é pureza e loucura paisagem destruída daquilo a que chamam vida nos corredores da morte
vou-me
não sei para onde
vou-me
deixando para trás a encruzilhada de néon
vou-me
cavalgando lágrimas e trovões
no vento dividido pelo quadrante da indecisão
refugiado no patíbulo do fazedor de chuvas
desperdiçando dias de amor
no fracasso da eternidade
tarde comecei a escrever versos uma cepa de maus poemas entrelaçados nas videiras bravas do sem-sentido já os havia escrito nos cabos emaranhados do cais do esquecimento letárgico das pedras gastas do ancoradouro norte
esses nem bons nem maus
dos quais não me recordo do mesmo modo que a sé catedral não relembra as promessas angustiadas dos aflitos inscritas nos altares e santos gastos por orações douradas
escrevia-os e lia-os
enquanto tu velho amigo de quatro patas no teu distendido pêlo fulvo interrompias vivaldi para os ouvir
os teus olhos iluminados desaprovavam a dissonância de grande parte das frases encadeadas num arremesso
outras brilhavam nos teus olhos luzeiros de universo
olhos compassivos sem mágoa
adormecias ao som das quimeras ditas num sopro e tal criança brincavas infantilmente com as imagens das garatujas ficando o meu mais profundo ser a velar por ti horas infindáveis de espanto
qualquer movimento teu era uma palavra redonda perfeita
qualquer olhar nocturno um canto à fé dum mundo-sem-esperança
a elegia do olhar vagabundeava na nossa cabana com vista prateada para o rio verde-esmeralda que nunca conseguiste ver
dia noite noites dias e meses contigo a olhar
reprovando as lágrimas ensanguentadas do momento pontiagudo do desespero porque a paz já nascera nas paredes encantadas do mais rico dos palácios
a cidade magnífica do amor
estava aos nossos pés
poço de água pura inesgotável
apenas te vi chorar uma vez
- os animais também choram -
eu que tantas chorei e senti a fraqueza duma qualquer erva a vibrar no caminho
partias para o reino da morte e eu verdugo havia indeciso assinado o veredicto
pedi-te não chores
uma parte da minha alma vai contigo
a outra saberá onde te encontrar
quando juntos entrarmos vitoriosos
na cidade branca do cume
no dia triste dos caminhos áridos anémonas serpenteavam o cume da rosa branca melancólica na respiração opressa do ar rarefeito da angústia
senhor
tu que me habitas
consola-me
o lótus asperge luz no zimbro rasteiro da ânsia
tu és o som das nuvens a roçarem o ápice
do vento revolto nos caules da inquietude
e na raiz enevoada da esperança
senhor
tu que me habitas
vence o meu inimigo
tu som sacramental do vazio
fonte do objecto disperso dos meus sentidos a quem a razão dissemina no esquecimento da memória desmoronada e a neve oculta no rigor da adversidade
senhor
tu que me habitas
vence-me a mim mesmo
as faces sedosas de tua bondade
teus longos dedos da benção invisível
a indiferença que é compaixão no lírio e no melro
faz de ti meu mestre de dor
senhor
tu que me habitas
alivia o meu jugo
uma vez que seja
abro as portas da mente
uma vez que seja
perante ti me ajoelho
e rasgo meu rosto
na sarça ardente
senhor
tu que me habitas
liberta-me para sempre
escrevo-te em segredo como a planta que deseja enflorar
ser cor
cor à meia-noite e
cor ao meio-dia
que desperta na sombra colorida do lago coberto de espelhos onde se debruça ou na campa rasa que beija
o meu corpo tem nove portais
mesmo que a todos encerre seremos trespassados pelo som eternamente acutilante do amor
saibamos ou não quem somos sejamos ou não pó
eu posso ser tu
tu podes ser eu
porventura tu és eu
e eu tu
se tu és eu
e eu sou tu
eu e tu somos tu
trindade num só
seguíamos cansados exaustos
pela mão das rimas no passo das estrofes
mas
aquela coisa incerta
era nova
e o silêncio novo
a cada instante
as nuvens aproximavam-se
existíamos sem que nunca tivéssemos existido
éramos sem que nunca tivéssemos sido
estranho
aquele azul sem nuvens
a terra imóvel
as montanhas incendiadas
o infinito da mente
falámos do medo
daquele medo que é fruto do passado
do que nascerá no futuro
do medo que já vive no porvir
falámos da bênção e da pesada barcaça mal calafetada e do barqueiro sem proa e do sol e do medo do medo
os pés descalços lavravam a poeira da vereda ladeada de silvas e de terra queimada
árvores pálidas no rosto marcado pelo desespero das distantes colinas
as curvas da estrada estavam silenciosas no vale onde dois abetos se entrelaçavam
paisagem doce
dela sobressaía
a casa da meditação
o quarto dos fundos
da reclusão voluntária
e a bênção veio
descia na direcção do lago dos desejos entre giestas e rochas doridas pelas borrascas da invernia
a vereda enlameada com a neve a derreter na confiança da nitidez do crepúsculo
flores amarelas salpicavam a alma atulhada de pecadilhos soltos nas extensas sombras da efemeridade
o sol já estava por detrás dos montes violáceos transportando a melancolia do anoitecer ao ritmo do sopro fascinante da primavera
e de tudo emergia
uma eterna energia
***
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