CHUANG TSE – CAPÍTULOS INTERIORES
TEXTOS ESCOLHIDOS
INTRODUÇÃO
Os Escritos de Chuang Tse e o Tao Te Ching são os dois textos fundamentais do Taoísmo.
O que denominamos Chuang Tse é uma colectânea de textos atribuídos precisamente a Chuang Tse, de quem muito pouco se sabe.
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Terá vivido no século IV a.C. e foi o mentor do taoísmo filosófico, que por sua vez, terá influenciado o budismo chan (China) e zen (Japão).
A sua obra é irónica, irreverente, poética. Influenciou toda a cultura chinesa posterior. Extraídos das suas páginas, vamos encontrar, nos dias de hoje, muitos dos provérbios chineses.
Os textos foram divididos em três partes, a que foram chamados Capítulos Interiores, Capítulos Exteriores e Capítulos Diversos. Os primeiros em número de sete, os segundos com quinze e os últimos com onze.
Existe convergência de opinião entre os eruditos quanto aos primeiros sete capítulos. O mesmo já não acontece com os segundos quinze e os últimos onze. Estes vinte e seis parecem ter sido redigidos posteriormente, por discípulos, comentadores ou simples seguidores da doutrina de Chuang Tse.
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O Capítulo I – Vadiar livremente e sem amarras – fala-nos da alegria que o Homem sente quando se liberta dos preconceitos e normas comportamentais, contrariamente àquele que não vive de acordo com a sua natureza e que busca interferir no fluxo das mutações naturais.
O Capítulo II – Sobre a Igualdade das Coisas – é considerado o mais importante na perspectiva filosófica. É nele que Chuang Tse expõe as suas teses, confrontando o pensamento chinês da época.
O Capítulo III – Sobre o Segredo do Crescimento – introduz-nos nos domínios da inevitabilidade da morte e do seu conhecimento e aceitação.
O Capítulo IV – Sobre os Assuntos Humanos ou Sobre o Homem no Mundo – ensina-nos a viver segundo os ideais taoistas e como devemos evitar cargos públicos, que nos retiram a quietude e a paz.
O Capítulo V – Sobre os Sinais de Plena Virtude – compara os deformados físicos e os delinquentes, à época sujeitos a amputações, com os sinais dos que trilham o caminho da virtude.
O Capítulo VI – Sobre o Grande Mestre – intenta demonstrar que a morte é um regresso à não-existência, a partir da qual nos iremos transformar numa outra coisa qualquer.
O Capítulo VII – Sobre o Rei Sábio – aconselha os governantes a permitirem que os seus súbditos se transformem natural e espontaneamente.
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O leitor deve estar advertido de que não é fácil ler Chuang Tse, assim como o não é a leitura do Tao Te Ching.
O enigma, a alegoria, a ficção pura, a ironia, os aforismos – alguns sem sentido aparente -, velam a essência das palavras. Como disse um mestre do século passado: - As palavras não são as coisas.
Chuang Tse vai além das palavras, aguardando que seja o próprio leitor a desvendar o sentido e a profundidade do seu pensamento.
Chuang critica a ética, as noções do certo e do errado.
Temos de deixar a vida fluir em nós, sem que estejamos presos aos grilhões ou condicionamentos éticos ou morais, que contrariam tudo o que é natural.
Tudo o que é do Homem, que não é espontâneo e natural, e que compreende a lógica, a racionalidade e as normas morais e sociais, é uma espécie de “vírus mental” de elevada perigosidade, que nos induz a pensar que estamos separados do todo e que impede que nos sintamos mais vivos e envolvidos em tudo o que existe, deixando-nos levar espontaneamente no fluxo universal.
Temos de deixar de interferir no que é natural. Devemos tomar como modelo a natureza, mas também o nosso corpo, que funciona naturalmente por si mesmo.
A ordem social perfeita seria realizável se deixássemos cada homem encontrar livremente o seu caminho.
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Este conjunto de excertos dos Escritos de Chuang Tse constituem-se como uma compilação de diversas fontes e incidem sobre os sete capítulos que lhe são inquestionavelmente atribuídos.
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Segundo a tradição anterior ao autor, os sábios de outrora teriam vivido de acordo com a Natureza e conheciam o Caminho (o Tao), mas afastaram-se desse caminho.
Chuang Tse responde à pergunta:
- Qual é o Caminho, o Tao?
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CAPÍTULO I
No Oceano do Norte há um peixe chamado Kung, não sei de quantas mil li de comprimento.
Esse Kung transforma-se num pássaro chamado Peng. As suas costas têm não sei quantas mil li de largura.
Quando se move voando, as asas escurecem o céu como se fossem nuvens. Quando viaja, dirige-se para o Oceano do Sul, o Lago Celestial. No Registo das Maravilhas de Chi Hsie, lemos que quando um Peng voa para o Sul, a água agita-se numa extensão de três mil li ao redor, enquanto o pássaro sobe num vendaval até à altura de noventa mil li, para um voo de seis meses de duração para depois repousar.
Subindo a essa altura nos ares, a ave vê as brancas neblinas mudáveis da primavera, as nuvens de poeira e as coisas vivas que exalam os seus hálitos no meio delas.
Imagina se o azul do céu será a sua cor real ou apenas o resultado da distância sem fim, e confirma que as coisas sobre a terra lhe parecem sempre as mesmas.
Se não houver profundidade suficiente, a água não fará as grandes embarcações flutuarem. Também se não houver profundidade suficiente, não será possível o ar suportar grandes asas.
Uma cigarra e uma pombinha riram, dizendo:
- Quando voo com todas as minhas forças o máximo que consigo é voar de árvore em árvore. Quantas vezes não chego ao meu destino, pois caio no chão a meio do voo. Para que é preciso subir noventa mil li para iniciar a viagem rumo ao Sul?
Quem vai para o campo e leva três refeições consigo, volta com o estômago tão cheio como na hora em que partiu. Mas quem viaja cem li deve levar arroz suficiente para o descanso de uma noite. E quem tem de percorrer mil li necessita transportar suprimento de provisões para três meses.
Aquelas duas criaturinhas, que sabem elas?
O saber limitado não tem o alcance do saber profundo, do mesmo modo que uma vida curta não tem a mesma duração de uma longa.
Como podemos afirmar que assim é?
A planta do cogumelo, que dura uma manhã, não conhece a mudança do dia e da noite. A cigarra desconhece a mudança das estações da Primavera e do Outono. Ambas têm vida curta.
Porém, no Sul de Chu, há uma árvore cuja floração e frutificação duram, cada uma, quinhentos anos. E antigamente havia uma árvore enorme cuja floração e frutificação duravam, cada uma, oito mil anos.
Contudo, Peng Tsu é conhecido por ter alcançado muita idade e é objecto de inveja para todos.
Não é triste que toda a gente o queira imitar?
Há pois, uma diferença entre o pequeno e o grande.
Tomemos por exemplo, um homem que concretiza as suas funções num pequeno escritório, ou cuja influência se faz sentir sobre um lugarejo, ou cujo carácter agrada a um governante.
A opinião que tem de si será a mesma que a da cigarra.
O filósofo Yung, de Sung, rir-se-ia de tal homem.
Se o mundo inteiro o lisonjeasse, ele não se deixaria impressionar, tão-pouco se deixaria dissuadir do que pretendia fazer se todo o mundo o censurasse. Pois Yung é capaz de distinguir a essência da superficialidade e compreende o que é a verdadeira honra e a vergonha.
Tais homens são raros numa geração.
Porém, nem mesmo ele consegue firmar a sua reputação e é imperfeito.
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Diz-se que o homem perfeito se ignora a si mesmo; o homem divino ignora a recompensa do valor; e o verdadeiro Sábio ignora a reputação.
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Não se pergunta a um cego qual é a sua opinião a respeito de um belo desenho, nem se convida um surdo para um concerto. A cegueira e a surdez não são apenas defeitos físicos. Há a cegueira e a surdez do espírito.
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O que não tem qualquer utilidade para os outros poderá causar-nos preocupações?
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CAPÍTULO II
A grande sabedoria é generosa; a sabedoria mesquinha gosta de contendas.
Os discursos virtuosos são desapaixonados, os pequenos, desagradáveis.
Pois ainda que a alma esteja presa ao sono, ou mesmo acordada, enquanto o corpo se move, nós empenhamo-nos e combatemos com as coisas que nos cercam.
Assim, quando estamos a dormir estamos em contacto com as nossas almas.
Algumas são fáceis de resolver e são comodamente aquietadas, algumas são profundas e dissimuladas, e outras misteriosas.
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Contentamento e ira, tristeza e felicidade, tédio e remorso, hesitações e temores, surgem à vez, sempre com aparências diferentes, tal como a música que sai de uma cana oca ou como cogumelos que germinam na humidade.
O dia e noite alteram-se em nós, mas não sabemos como nascem. Ai de nós!
Poderemos por uma só vez pôr o dedo sobre a verdadeira Causa? Como poderemos compreender tudo num único dia?
Parece que há uma alma; mas o principal para a sua existência é querer. Que opera é plausível, embora não possamos ver-lhe a forma. Deve ter uma realidade interior, posso senti-la, mas não tem forma externa.
Considera o corpo humano com as suas centenas de ossos, as nove cavidades externas e os seis órgãos internos, tudo completo.
Qual dessas partes preferes?
Não gostas de todas equitativamente, ou tens alguma preferência? Esses órgãos prestam tarefas de serviçais a mais alguém? Desde que os servos não se governam, servirão eles de senhores e servos por turnos? É inegável que existe uma alma para os controlar.
Tenhamos ou não firmado a verdadeira natureza dessa alma, isso é coisa que pouco interessa à própria alma.
Uma vez tomando conta da forma material, prossegue o seu curso até que se esgote.
Consumir-se nos trabalhos e nos pesares da vida e ser arrastada sem possibilidade de parar no caminho.
Não é digna de pena?
Trabalhar sem cessar a vida toda e depois, sem viver para colher os frutos, esgotada pelo labor, partir para não se sabe onde.
Não é uma razão para pesar?
Os homens afirmam que não há morte. De que adianta isso? O corpo decompõe-se e o espírito desaparece com ele.
Não é motivo para tristeza?
O mundo pode ser tão estúpido a ponto de não perceber isso? Ou serei eu somente o estúpido e os outros não?
Se devemos deixar-nos guiar pelos nossos preconceitos e ideias, quem ficaria sem um guia? Que necessidade haveria de fazer comparações sobre o que está certo e o que está errado nos outros? E se alguém deve seguir o próprio julgamento de acordo com os seus preconceitos, até os loucos os têm.
Mas produzir um julgamento do que está certo e errado sem primeiro ter uma opinião é o mesmo que dizer: - Parti para Yueh hoje e cheguei lá ontem. Ou é o mesmo que afirmar que algo que não existe, existe.
A ilusão de afirmar algo que não existe, como existente, não pode ser conseguida nem pelo teólogo Yu; e nós muito menos o poderemos penetrar.
A palavra não é um simples sopro de hálito. Foi criada para dizer algo; apenas não se pode determinar o que dizer. Há, na verdade, palavra, ou não há? Podemos ou não podemos distingui-la do chilreio dos filhotes de pássaros?
Como é que o Tao pode ser tão obscuro de modo a necessitar que haja uma distinção entre o verdadeiro e o falso?
Como pode a palavra ser tão obscura de modo a necessitar que haja uma distinção entre o certo e o errado?
Onde poderemos ir e pensar que o Tao não existe?
Onde poderemos ir e pensar que as palavras não podem ser ouvidas?
O Tao não pode ser inteiramente apreendido por via da nossa compreensão inadequada, e as palavras não se apresentam com perfeição devido às expressões retóricas floreadas.
Daí, que as afirmações e negações das escolas de Shih e Fei representem julgamentos morais gerais e distinções mentais: “certo” e “errado”, “verdadeiro” e “falso”, “ser” e “não ser”, “afirmativo” e “negativo”, bem como “fazer justiça” e “condenar”, “afirmar" e "negar”.
As escolas de Confúcio e de Mo Tse, cada qual negando o que a outra afirma e afirmando o que a outra nega.
Cada qual afirmando o que a outra nega e negando o que a outra afirma.
Só pode resultar em evidente confusão.
O melhor a fazer é olhar para além do certo e do errado.
Não há nada que não seja “isto”; não há nada que não seja “aquilo”.
O que não pode ser visto por “aquilo” pode ser compreendido por mim.
Só se podem conhecer as coisas através do conhecer-se a si próprio.
Daí digo: “isto” emana “daquilo”; “aquilo” também deriva “disto”.
Esta é a teoria da interdependência “disto” e “daquilo”.
Não obstante, a vida resulta da morte, e vice-versa.
A possibilidade decorre da impossibilidade, e vice-versa.
A afirmação baseia-se na negação, e vice-versa.
Sendo esse o caso, o verdadeiro sábio rejeita todas as distinções e refugia-se na Natureza, buscando a iluminação que vem do Céu.
Precisamos de entender, que mesmo que nos detenhamos no “isto”, o “isto” também é “aquilo” e o “aquilo” também é “isto”.
“Isto” tem os seus “certos” e “errados”, e “aquilo” também os tem.
Existe realmente, ou não existe, a distinção entre “isto” e “aquilo”?
Quando o “isto”, subjectivo, e o “aquilo”, objectivo, não têm correspondentes, são o verdadeiro Eixo do Tao, o seu ponto de quietude. E quando esse Eixo passa através do centro para o qual o Infinito converge, as afirmações e as negações confundem-se no Infinito Único.
Daí se diz, que não há nada como conservar a Luz para além do certo e do errado.
Tomar um dedo como prova de que um dedo não é um dedo, não é melhor do que tomar uma qualquer coisa, que não seja um dedo, para provar que um dedo não é um dedo.
Tomar um cavalo como prova de que um cavalo não é um cavalo, não é melhor do que tomar uma qualquer coisa, que não seja um cavalo para demonstrar que um cavalo não é um cavalo.
O mesmo se dá com o universo, que não é nem dedo nem cavalo.
O possível é possível e o impossível é impossível.
O “Céu e a Terra” são como um dedo; as “dez mil coisas” são como um cavalo.
O Tao trabalha e o resultado obtido é o seguinte: as coisas recebem nomes e afirmamos serem o que são. Por que são assim? Porque se afirma serem como são.
Por que não são de outro modo? Porque se afirma não serem assim. As coisas são assim por si mesmas.
Não existe nada que não seja de certo modo e não existe nada que não possa ser de certo modo.
Toma, por exemplo, uma pessoa feia e uma grande beleza e tudo o que for estranho e monstruoso. Tudo isso é igualado pelo Tao.
A divisão é o mesmo que criação. A criação é o mesmo que destruição.
Não há uma criação ou uma destruição, porque essas condições são irmanadas de novo numa única.
Todas elas são uma no Tao.
Só os verdadeiros sábios compreendem o princípio de igualar todas as coisas numa Única.
Descartam as distinções e refugiam-se nas coisas comuns e ordinárias. As coisas comuns e ordinárias servem para certas funções e, portanto, conservam a integridade da natureza. Partindo dessa integridade, uma pessoa compreende, e da compreensão chega ao Tao.
Aí pára. Parar sem saber como pára e se parou: eis o Tao.
Mas cansar o intelecto numa ligação obstinada com a individualidade das coisas, não reconhecer o facto de que todas as coisas são uma Única, chama-se a isso, “Três pela Manhã”.
O que é “Três pela Manhã”?
Um tratador de macacos disse-lhes que cada um devia comer três nozes pela manhã e quatro à noite. Os macacos ficaram furiosos. Então o tratador resolveu que poderiam comer quatro nozes pela manhã e três à noite. Os macacos ficaram satisfeitos. O número de nozes continuou a ser o mesmo, porém havia uma diferença devida à avaliação subjectiva de gostos e aversões. “Isso” também deriva “disto”, por via do princípio da subjectividade.
Em consequência, o verdadeiro Sábio reúne todas as coisas diferentes e descansa no natural Equilíbrio do Céu. A isto chama-se o princípio de seguir dois cursos ou os dois lados de uma só vez.
O Sábio harmoniza o certo e o errado, e repousa no equilíbrio da Natureza.
O conhecimento dos homens antigos tinha um limite. Qual era esse limite?
Remontava a um período em que a matéria não existia. Era esse ponto extremo que o seu saber atingia.
O segundo período era o da matéria, porém da matéria sem condição ou período indefinido, onde não lhe era dado nomes.
A terceira época viu a matéria com condição, definida, mas ainda se desconhecia o que foi depois julgado verdadeiro ou falso, o certo ou errado.
Quando o verdadeiro e o falso, o certo e o errado apareceram, o Tao começou a declinar. E com o declínio do Tao surgiu o desejo, o fim individual.
Além disso, o Tao teria realmente chegado ao apogeu e declinado?
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O verdadeiro Sábio foge da luz que o deslumbra e refugia-se no comum e no ordinário. Por esse meio chega à compreensão. Suponhamos que haja uma afirmativa. Não sabemos se pertence a uma categoria ou a outra. Mas se reunirmos as diferentes categorias numa única, então, as diferenças de categorias deixam de existir. Devo explicar melhor.
Se houver um começo, então houve uma época antes desse começo, e uma época antes da época que ficava antes da do começo.
Se há uma existência, deve ter havido uma não-existência.
E se houve um tempo em que nada existia, então deve ter havido uma época em que nem mesmo o nada existiu.
O nada veio a existir subitamente.
Alguém pode dizer realmente se pertence à categoria da existência ou da não-existência? Até mesmo das palavras que acabo de proferir, não posso dizer se significam, ou não, alguma coisa.
Sob o pálio do céu não há nada maior do que o comprimento da penugem de um pássaro no Outono, enquanto que o monte Tai é pequeno. Tão-pouco há vida mais longa do que a da criança ceifada pela morte na infância, enquanto o próprio Peng Tsu morreu jovem.
O universo e eu viemos à existência juntos; eu e tudo que existe somos uma Única coisa.
Se todas as coisas são uma Única, qual o lugar para a palavra? Por outro lado, desde que eu posso dizer a palavra “única”, como pode a palavra não existir? Se existe mesmo, temos Única e a palavra dois; e dois e um, três. Daí em diante até os melhores matemáticos deixam de alcançar o derradeiro. Então, e as pessoas comuns? Falhariam muito mais? Daí, se de nada se pode chegar a alguma coisa, e consequentemente a três, segue-se que será ainda mais fácil se se partir de algo. Desde que não se possa prosseguir, pára-se aí.
O Tao pela sua natureza, jamais pode ser definido. A palavra pela sua natureza, não pode exprimir o absoluto.
Daí surgem as distinções. Essas distinções são: “direito” e “esquerdo”, “relacionamento” e “dever”, “discernimento” e “discriminação”, “competição” e “luta”. São as chamadas Oito Virtudes.
Além dos limites do mundo externo, o Sábio reconhece que existe, mas não fala sobre o assunto.
Dentro dos limites do mundo externo, o Sábio fala, mas não comenta.
Com respeito à sabedoria dos antigos, como incorporada no Livro da “Primavera e do Outono”, que é a crónica dos antigos reis, o Sábio comenta, mas não interpreta.
E assim, entre as distinções feitas, existem distinções que não podem ser feitas; entre as coisas interpretadas existem coisas que não podem ser interpretadas.
Como pode ser? Pergunta-se.
O verdadeiro Sábio guarda o seu conhecimento para si, enquanto os homens, em geral, usam o seu em argumentos, com o propósito de se convencerem uns aos outros. Portanto, se diz que aquele que argumenta assim o faz, porque não pode ver determinadas realidades.
Aqueles que disputam não veem.
O Tao perfeito não pode receber um nome.
Um argumento perfeito não emprega palavras.
Quem conhece o argumento que não pode ser alegado sem palavras, e o Tao que não se declara como Tao?
Daquele que o sabe pode afirmar-se, que entrará no reino espiritual.
Sendo preenchido sem ficar cheio e despejado sem ficar vazio, sem saber como isso terá sido feito, é a verdadeira arte de “Ocultar a Luz”.
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O Homem Perfeito é um ser espiritual. Mesmo que o oceano ferva sob o Sol, ele não se sente quente. Mesmo que os grandes rios congelem, não sente frio. Mesmo que as montanhas se desagreguem em consequência de raios vindos do céu, e as suas profundezas colossais se virem do avesso por efeito de tempestades, ele não tremerá de medo.
Assim, subirá acima das nuvens do céu e guiando o Sol e a Lua adiante, passará para além dos limites da existência mundana. A morte e a vida não lhe oferecem mais vitórias.
A vida e a morte não o afectam.
Poderá preocupar-se com a distinção entre ganho e perda, bem e mal?
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Chu Chiao dirigiu-se a Chang Wu Tse do seguinte modo:
- Ouvi Confúcio dizer: “O verdadeiro Sábio não presta atenção aos negócios deste mundo. Ele não procura o ganho nem evita as perdas. Nada pede das mãos dos homens e não adere às rígidas regras de conduta. Algumas vezes diz algo sem falar, e outras, fala sem nada dizer. E assim paira para além dos limites do mundo dos homens”.
Confúcio disse que isso são fantasias fúteis. Mas para mim são a personificação do Tao mais maravilhoso. Qual é a tua opinião?
Chang Wu Tse respondeu:
– São factos que deixarão perplexo até o Imperador Amarelo. Como o haveria de saber Confúcio? Além disso, tu és muito ligeiro a tirar conclusões. Quando vês o ovo de uma galinha, esperas ouvir o galo cantar. Quando vês um arco, esperas ter um pombo assado. Dir-te-ei algumas palavras como exemplo e ouvi-las-ás do mesmo modo:
– Como é que o Sábio se senta entre o Sol e a Lua e conserva nas mãos o universo?
Reúne tudo num todo harmonioso rejeitando a confusão disto e daquilo, título e precedência, coisas que o homem vulgar cultiva cuidadosamente.
O Sábio ignora-as totalmente, amalgamando as disparidades de dez mil anos numa matéria pura. O próprio universo conserva e mistura tudo do mesmo modo.
Como sei que o amor à vida não é uma ilusão? Como sei que aquele que teme a morte não é uma criança que se perdeu no caminho e que não sabe como voltar a casa?
A senhora Li Chi era filha de um oficial de Ai. Quando o Duque de Chin a quis tomar para si, chorou até que o corpete do seu vestido ficou ensopado de lágrimas. Porém, quando chegou à residência real, partilhou o luxuoso leito do duque, comeu finas iguarias e arrependeu-se de ter chorado.
Como poderei saber, que o que morre irá arrepender-se de se ter apegado à vida anterior?
Como poderei saber que os mortos não ficarão espantados caso voltem alguma vez à vida?
Os que sonham com a festa acordam para os lamentos e para os pesares.
Os que sonham com os lamentos e os pesares acordam para se reunirem aos que vão caçar.
Enquanto sonham, não sabem que estão a sonhar. Alguns até farão interpretações do sonho que estavam a ter; e apenas quando acordam compreendem que tiveram um sonho.
Pouco a pouco vamo-nos aproximando do grande despertar e verificamos que esta vida foi realmente um grande sonho.
Os tolos pensam que estão acordados agora e ficam convencidos de que tudo sabem. Que espírito estreito têm.
Tu e Confúcio são ambos sonhos. E eu que afirmo que vós sois sonhos, também não passarei de um sonho.
É um paradoxo. Amanhã um Sábio talvez se erga para o explicar. Mas esse amanhã não virá senão depois que se tenham passado dez mil gerações. Contudo, talvez o encontres ao dobrar a esquina.
Supõe que discutimos. Se tu levares a melhor e eu não conseguir argumentos que batam os teus, és tu, necessariamente, quem tem razão e eu estou errado? Ou se eu levar a melhor na argumentação, sou eu, necessariamente, quem tem razão e tu estás errado? Ou ambos teremos razão em parte, e em parte estamos errados? Ou ambos estamos completamente certos e completamente errados? Tu e eu não o podemos saber e portanto vivemos todos nas trevas.
A quem chamaremos para juiz nesta questão?
Se eu pedir a alguém que tenha a tua opinião, ficará do teu lado e será parcial.
Que adiantará um tal juiz entre nós?
Se eu pedir opinião de alguém que tenha o meu ponto de vista, ficará do meu lado e será parcial.
De que nos adianta um tal juiz?
Se eu nomear alguém cuja opinião seja diferente das nossas, ficará em situação de não poder decidir, já que difere de ambos.
E se eu nomear alguém que concorde com os dois, também ficará em situação de não poder decidir, já que concorda com ambos.
Desde que tu e eu, e os outros homens, não podemos decidir, como podemos depender um do outro?
As palavras dos argumentos são todas relativas; se nós queremos alcançar o absoluto necessitamos de os harmonizar por intermédio da unidade de Deus e seguir a sua evolução natural, de modo que possamos completar a duração de vida que nos foi concedida.
Mas qual é a harmonia por meio da unidade de Deus?
É isto: O certo pode não ser realmente certo. O que parece pode realmente não o ser.
Esquece o tempo e a distinção. O certo e o errado. Goza o infinito, repousa nele.
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A Treva disse à Sombra:
- Tu agora estás em movimento. Daqui a pouco ficas parada. Ora te sentas, para daqui a pouco te levantares. Porquê toda essa indecisão?
A Sombra respondeu:
- Talvez eu dependa de algo que me faça fazer o que faço; e talvez essa coisa dependa, por sua vez, de outra que a obriga a fazer o que faz. Ou talvez a minha dependência seja como um movimento inconsciente.
Como posso dizer porque faço uma coisa ou porque não faço outra?
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Certa vez eu, Chuang Tse, sonhei que era uma borboleta, esvoaçando alegremente daqui para ali e dali para aqui, usufruindo a vida sem saber quem realmente era.
De repente, acordei e ali estava eu, eu mesmo, Chuang Tse.
Sonhou Chuang Tse que era uma borboleta, ou foi a borboleta que sonhou ser Chuang Tse? Deve haver alguma diferença entre Chuang Tse e a borboleta.
Este é um caso de transformação de coisas materiais.
CAPÍTULO III
Quando Lao Tse morreu, Chin Shih foi ao funeral. Soltou três gritos de dor e saiu.
Um discípulo dirigiu-se-lhe:
- Não era amigo do nosso Mestre?
Chin Shih respondeu:
– Era.
Volveu o discípulo:
– Assim sendo, acha que foi razoável a sua expressão de pesar pela sua morte?
Chin Shih disse:
– Acho. Estive a pensar que ele era um homem mortal, porém agora sei que não era.
Quando cheguei para as condolências, encontrei pessoas idosas, que choravam como chorariam pelos filhos, jovens que carpiam como se tivessem perdido as mães.
Quando essas pessoas se encontraram deviam ter dito palavras sobre o acontecimento e derramado lágrimas sem qualquer intenção.
Chorar assim pela morte de alguém é fugir dos princípios naturais da vida e da morte, aumentando o apego humano, esquecendo-se da fonte da qual recebemos esta vida. Os antigos chamavam a isto “fugir à retribuição do Céu”.
O Mestre veio porque tinha chegado a hora de nascer, partiu porque chegou o tempo de partir.
Os que aceitam o curso natural e a sequência das coisas estão acima da alegria e dos pesares. Os antigos falavam disto como a emancipação da escravatura. A madeira é consumida, mas o fogo continua e não sabemos quando chegará o seu fim.
CAPÍTULO IV
Confúcio disse a Yen Hui:
Deves fazer jejum. Digo-te porquê. É fácil trabalhar a partir de ideias preconcebidas? O céu desconfia daqueles que assim pensam.
Yen Hui disse:
– A minha família é pobre e durante muitos meses não provámos nem vinho nem carne. Não é isto jejum?
Disse Confúcio:
– É efectivamente jejum segundo as regras religiosas para os rituais, porém não é o jejum do Coração.
Volveu Yen Hui:
– E posso perguntar-lhe‚ em que consiste o jejum do Coração?
Confúcio disse:
– Concentra a tua vontade na unidade. Não ouças com os ouvidos e sim com a mente. A mente só pode pensar. Assim, não ouças com a mente mas com o Coração. A energia vital no Coração está vazia, receptiva a tudo.
O Tao habita no vazio e o vazio é o jejum da mente.
Yen Hui disse:
- Antes desta conversa eu pensava ser Hui. Agora que o ouvi, já não sou mais Hui. Será isto o vazio?
Confúcio respondeu:
- Exactamente.
***
Tse Chi andava pelos montes de Shang, quando viu uma árvore enorme que muito o surpreendeu. Mil carros com quatro animais atrelados poderiam abrigar-se sob a sua sombra.
Perguntou-se:
- Que árvore será esta? Certamente há-de ser de madeira preciosa.
Olhando para cima viu que os seus ramos eram tortos demais para fazer vigas; e olhando para baixo verificou que a madeira do tronco era muito curva e cheia de nós, o que a tornava imprestável para fabricar ataúdes.
Provou uma das suas folhas e pensou que lhe tinham arrancado a pele dos lábios; e o seu odor era tão forte que bastaria para intoxicar um homem durante três dias seguidos.
Tse Chi disse:
– Esta árvore não serve para nada. Não admira que tivesse crescido tanto e tenha chegado a esta idade.
Um homem de espírito bem pode seguir o seu exemplo de inutilidade.
Todos os homens sabem qual a utilidade das coisas úteis, mas não há quem saiba a utilidade do inútil.
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CAPÍTULO V
No estado de Lu vivia um homem chamado Wang Tai, a quem tinham amputado um pé. Os seus discípulos eram tão numerosos como os de Confúcio.
Chang Chi perguntou a Confúcio:
- Esse Wang Tai é um mutilado, no entanto tem tantos seguidores no estado de Lu, como tu.
Não se levanta para ensinar, nem se senta para dissertar, contudo, os que o procuram, sem nada saber, voltam satisfeitos. Chegam até ele vazios e voltam cheios.
Ele será daquelas pessoas que podem ensinar sem palavras e influenciar o espírito das multidões sem empregar meios materiais? Pode a mente ser perfeita se o corpo é deformado? Que espécie de homem é ele?
Confúcio disse:
– Esse homem é um sábio. Bem quisera ir procurá-lo, mas tenho-me atrasado na visita, para além de ficar atrás de outros.
Mesmo assim irei e fá-lo-ei meu mestre.
Porque não farão o mesmo os que são menos do que eu? Os meus discípulos?
Eu farei com que não só o estado de Lu, como o mundo inteiro, o siga.
Chang Chi disse:
– O homem é um mutilado e ainda assim o povo chama-lhe Mestre.
Deve ser um homem muito diferente dos homens comuns.
O que é que ele tem de especial no seu modo de exercitar a mente?
Confúcio respondeu:
– A vida e a morte não passam de transformações do grande momento‚ mas não o afectam.
O céu e a terra podem entrar em colapso, porém o seu modo de pensar perdurará.
Ele compreende a realidade verdadeira, e não é afectado pelas aparências externas.
Deixa que as coisas mudem naturalmente e assim agarra-se com firmeza às raízes.
Chang Chi perguntou:
– Como assim?
Confúcio respondeu:
– Do ponto de vista de diferenciação das coisas nós distinguimos entre o fígado e a bílis, entre o estado de Chu e o de Yueh.
Do ponto de vista da sua semelhança todas as coisas são uma Única. Se vemos o que é igual em todas as coisas, então as dez mil coisas tornam-se numa só.
Aquele que vê as coisas sob essa luz, nem mesmo se perturba pelo que lhe chega através dos sentidos da audição e da visão, deixando o espírito vaguear na harmonia natural das coisas.
Ele vê a unidade nas coisas e não nota a perda dos objectos particulares. E assim a perda do seu pé representa para ele o mesmo que a perda de outro tanto de barro; é como deitar fora um pedaço de lixo.
Chang Chi disse:
– Mas ele cuida apenas de si. Vive para si. Utiliza a sua sabedoria para aperfeiçoar a mente e usa a mente para alcançar a mente universal.
Qual a razão pela qual são tantos os que vão até ele?
Confúcio disse:
– Um homem não procura ver o seu rosto na água corrente, mas apenas na água tranquila.
Só aquele que tem tranquilidade em si mesmo pode tranquilizar os outros. O que em si mesmo é quietude pode doar quietude aos outros.
A graça da Terra culminou apenas nos pinheiros e nos cedros. No Inverno e no Verão são igualmente verdes.
A graça de Deus derramou-se sobre o rei Shun, e só este chegou à rectidão. Felizmente ele era capaz de se corrigir e assim obteve os meios pelos quais tudo se corrige, mesmo a vida dos outros.
***
O Duque Ai do estado de Lu disse a Confúcio:
– No Estado de Wei há um homem feio chamado Ai Tai To.
Os homens que convivem com ele não o conseguem esquecer, nunca se apartando dele.
As mulheres que o veem dizem aos pais:
– Preferia ser a concubina deste homem a ser a esposa de um outro.
Nunca tentou orientar os outros, mas as pessoas limitam-se a segui-lo.
Não tem ao seu dispor nenhum poder de governante pelo qual possa proteger as vidas dos homens.
Tão-pouco tem fortuna amontoada com a qual possa alimentar os pobres.
E é, além disso, terrivelmente feio, tão feio que pode meter medo a qualquer criatura debaixo do Sol.
Concorda com as pessoas, mas nunca as persuade.
Sabe apenas o que acontece no lugar onde vive.
Contudo, tanto homens como mulheres procuram a sua companhia.
Assim deve haver nele algo diferente dos demais. Fui procurá-lo e verifiquei que é, na verdade, horrorosamente feio.
Entretanto ainda não tínhamos estado muitos meses em contacto quando comecei a ver que havia algo nesse homem. Antes de um ano comecei a confiar inteiramente nele. Como o meu estado necessitava de um Primeiro-ministro ofereci-lhe o cargo.
Olhou-me de mau humor antes de responder e pareceu-me que preferia declinar a oferta. Talvez não me julgasse bom demais para ele. De qualquer modo dei-lhe o cargo. Porém em muito pouco tempo deixou-me. Afligi-me como se tivesse perdido um amigo, como se estivesse de luto, como se não houvesse mais ninguém com quem eu pudesse viver alegremente no meu reino.
Que espécie de homem é este?
***
É importante a conservação do corpo. Não será mais valioso aquele que preserva a sua virtude?
Ai Tai To não dizia nada e confiava-se nele. Nada fez e era amado. Até lhe ofereceram o governo de um país com o receio de que ele o não quisesse aceitar. Na verdade, ele deve ser aquele homem que atingiu a perfeita harmonia e cuja virtude não se manifesta exteriormente.
O Duque Ai perguntou:
- O que é que queres dizer quando afirmas que Ai Tai To atingiu a perfeita harmonia?
Confúcio disse:
- Vida e morte, ganho e perda, falhanço e sucesso, pobreza e opulência, valor e inutilidade, elogio e censura, fome e sede, calor e frio, são tudo mudanças na ordem natural das coisas. Alternam entre si como o dia e a noite. Ninguém sabe onde uma acaba e a outra começa. Por conseguinte, não deveriam perturbar a nossa paz ou penetrar as nossas almas.
Vive de tal maneira que te sintas bem, em harmonia com o mundo, cheio de alegria. Partilha a paz da Primavera com as coisas criadas. Deste modo crias as estações no teu próprio coração.
É a isto que se chama perfeita harmonia.
***
O Sábio deixa o seu espírito em liberdade enquanto o conhecimento é considerado como uma manifestação exótica.
Os acordos são feitos para cimentar as relações de amizade; os bens para o tráfico social, e as artes mecânicas apenas para servirem o comércio. Porque o Sábio não inventa e portanto não emprega o que sabe; ele não se separa do mundo e portanto não necessita de cimentar as relações; não sofre perdas e portanto não tem necessidade de adquirir; nada vende e por conseguinte não se utiliza do comércio. Estas quatro qualificações foram-lhe doadas por Deus. Isto é, ele é alimentado por Deus. E aquele que é assim alimentado por Deus, pouca necessidade tem de ser alimentado pelo homem.
Tem a forma humana sem as paixões humanas. Devido ao facto de ter a forma humana associa-se aos homens. Devido ao facto de não ter paixões humanas, as questões do certo e do errado não o preocupam. Na verdade é infinitesimal o que pertence ao ser humano e infinitamente grande a parte que o faz ser celestialmente perfeito.
***
Hui Tse disse a Chuang Tse:
Pode um homem viver sem desejos? Primitivamente, os homens não tinham paixões?
Chuang Tse disse:
– Certamente.
Hui Tse disse:
– Mas se um homem não tem desejos e paixões, o que é que o faz ser um homem? Como pode ser chamado de homem?
Chuang Tse respondeu:
- O Tao dá-lhe a aparência, o céu dá-lhe o corpo. Por que não poderá ser chamado de homem?
Quando digo que não tem desejos, quero dizer que não se perturba com o gostar. Aceita as coisas como elas são e não as procura melhorar.
***
CAPÍTULO VI
O homem perfeito é o que sabe distinguir o que vem do céu daquilo que vem do homem.
O que é o homem verdadeiro?
O homem verdadeiro de outrora não se importava de ser pobre. Não era orgulhoso. Não fazia planos.
Podia subir a altas montanhas sem ter medo, entrar na água sem se molhar e passar pelo fogo sem se queimar.
É este o conhecimento que conduz ao Tao.
Os verdadeiros homens de antigamente dormiam sem que tivessem sonhos e acordavam sem ansiedade ou preocupações.
Comiam indiferentes ao paladar e respiravam profundamente. Porque os homens verdadeiros aspiram o ar até aos calcanhares e os vulgares até à garganta.
Da boca dos perversos as palavras são expelidas como vómitos.
Quando as afeições e desejos do homem são intensos, os seus dons divinos são superficiais.
Os verdadeiros homens antigos não sabiam o que era amar a vida ou temer a morte. Não se alegravam pelos nascimentos nem se esforçavam para evitar a morte.
Chegavam sem preocupações e partiam sem preocupações. Era tudo.
Não se esqueciam de onde tinham surgido e não procuravam o seu fim.
Aceitavam a vida e as coisas que lhes eram dadas com alegria e quando se afastava não pensava mais nelas.
Eis o que se chama não desencaminhar o coração do Tao, não usar a mente contra o Tao, e não suprir o natural por meios humanos.
Esse é o homem verdadeiro.
Um tal homem tem a mente livre, modos calmos e aparência feliz. É tão frio como o Outono e tão suave como a Primavera. A sua alegria e a sua raiva fluem como a mudança das estações. Está em harmonia com todas as coisas e não sofre limitações.
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O homem perfeito de outrora conservava-se firme e não vacilava. Tinha um semblante humilde, mas não era servil. Era independente, mas não era teimoso, aberto a tudo, mas sem vanglórias. Sorria se isso agradava, e respondia naturalmente. A sua radiância tinha origem na sua luz interior.
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A Mãe Terra carrega-me com o corpo, faz com que brinque na vida, ajuda-me na velhice e faz-me descansar na morte.
O que faz a vida ser boa, também faz com que a morte o seja.
O sábio aceita de boa vontade a morte prematura, a velhice, o princípio e o fim, e serve de exemplo para todos.
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Nascemos nesta forma humana, que é para nós fonte de alegria. Que alegria maior, além da nossa concepção, saber que o que está agora sob forma humana pode sofrer transições sem fim, tendo apenas o infinito por limite?
Eis porque o Sábio se alegra com aquilo que não se pode perder e que dura para sempre.
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O Tao tem realidade interior e substância. É desprovido de acção e de forma. Pode ser dado mas não recebido. É atingível, mas invisível. É a sua própria fonte e raiz.
Existia antes do céu e da terra e por toda a eternidade. Faz com que os espíritos e os deuses sejam divinos. Cria o céu e a terra. Nasceu antes do céu e da terra.
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Nascemos no tempo devido e morremos de acordo com a Natureza.
Satisfeito com a vinda das coisas no tempo devido e vivendo segundo o Tao, a alegria e a tristeza não me afectam. A isto se chama, segundo os antigos, estar livre da escravatura. Há os que não podem livrar-se da escravatura por viverem prisioneiros da existência material. Mas o homem tem cedido sempre perante Deus.
Por que deveria eu incomodar-me?
***
Todos nós falamos do “eu”. Como sabemos o que é esse “eu” de que falamos?
Se tu sonhares que és uma ave, vaguearás pelos céus, ou se sonhares que és um peixe mergulharás nas profundezas do oceano. Mas não podemos dizer, enquanto falamos, se estamos acordados ou a sonhar.
Um homem sente uma sensação agradável antes de sorrir e sorri antes de pensar que deve sorrir.
Renuncia à sequência das coisas, esquece as mudanças, deixa que as coisas sigam o seu curso natural, e assim poderás entrar no mistério da Unidade.
***
Yen Hui disse a Confúcio:
– Estou a progredir.
Confúcio disse:
– Como assim?
Yen Hui respondeu:
- Fico sentado e esqueço.
Confúcio disse com espanto:
- O que queres dizer com ficar sentado e esquecer?
Yen Hui disse:
– Libertei-me do meu corpo. Descartei qualquer intenção de conhecer. Tendo-me libertado do meu corpo e da minha mente, tornei-me Um com o infinito.
É isto o que quero dizer com ficar sentado e esquecer.
Confúcio disse:
- Quando há comunhão, não há preferência. Quando há mudança, não há consciência. Talvez sejas tu um homem prudente, um verdadeiro sábio.
Se alcançaste o que dizes, permite que eu seja teu discípulo.
***
Tse Yu e Tse Sang eram amigos. Uma vez quando tinha chovido durante dez dias, Tse Yu disse:
– Tse Sang está doente ou a passar um mau bocado.
Assim empacotou alguns alimentos e foi vê-lo. Chegando à porta ouviu algo que lembrava o choro e o canto acompanhado pelo som de um instrumento de corda, com as seguintes palavras: – Ó Pai! Ó Mãe! Foi devido a Deus? Foi devido ao homem? É isto o mundo?
A sua voz era entrecortada e as suas palavras vacilantes.
Desse modo Tse Yu entrou e perguntou:
– Por que cantas deste modo?
Tse Sang disse:
– Eu procurava pensar em quem me poderia ter trazido a tal descalabro. Mas não encontro explicação. Meu pai e minha mãe dificilmente desejariam que eu fosse assim tão pobre. O Céu cobre tudo igualitariamente. A Terra, do mesmo modo, tudo suporta. Qual o motivo de ser assim tão pobre? De quem é a responsabilidade?
Eu estava a tentar descobrir a causa de tal desgraça, mas sem sucesso. Aqui estou, nesta vida ruinosa.
Deve ser o destino.
***
CAPÍTULO VII
Tien Ken vagueava pela encosta ensolarada do monte Yin. Quando chegou ao rio Liao, encontrou um sábio sem-nome a quem perguntou:
– Por favor, explica-me como governar o mundo?
O sábio sem-nome respondeu:
– Sai já daqui, louco! Como podes fazer uma pergunta tão horrível? Estou prestes a juntar-me ao criador das coisas. Quando me sinto oprimido, monto o pássaro da plenitude e do vazio, para além das seis direcções, e vagueio na terra de parte-nenhuma e moro no domínio de nenhuma-coisa. Por que é que me incómodas com perguntas como essa?
Tien Ken perguntou de novo, e dessa vez o sábio respondeu:
– Deixa que o teu coração e a tua mente vagabundeiem no que é puro e simples. Sê um com o infinito. Permite que todas as coisas sigam o seu rumo natural. Não procures a inteligência.
Assim o mundo será governado.
***
Não abras a tua porta à fama.
Não faças planos.
Não te absorvas em actividades tentando carregar os deveres do mundo.
Não tenhas mestre.
Não penses que sabes.
Fica consciente de tudo o que existe e vive no infinito.
Que o teu corpo seja o infinito.
Segue o trilho do nada possuir.
Sê tudo o que o céu te deu, mas comporta-te como se não tivesses recebido nada.
Não busques lucro.
Sê vazio, isso é tudo.
A mente do sábio é como um espelho.
Não apanha nada, nada espera, reflecte mas não segura.
Por isso, o homem perfeito age sem esforço.
***
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José Maria Alves
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