***
um muro em campos pérfidos ungiu-se de pesadelos
um mundo decadente destaca-se dos raios de sol doentes
tão amarelecidos cor de tabaco envelhecido
não recuo tenho as minhas lembranças de um passado presente nos corredores do futuro flutuo nos cúmulos ancestrais nimbos de um planeta amaldiçoado
são anos são dias são horas que percorrem silenciosamente os caminhos da noite sem estrelas
um corpo atravessa o nevoeiro
do mais profundo dos tempos ouve-se uma voz
com uma cicatriz no som
a terra que habito
vestida de farrapos
exibe sua espada
astro cintilante
à porta dos celeiros
roídos pela putrefacção
eis que aportam
os mercadores de escravos
com os seus guardas
da noite tisnada
na escuridão dos sonhos desfeitos
nas pedras tempestuosas da muralha
estendem-se nos silvados
corpos húmidos de sofrimento
dores que se erguem no coração de ferro
nas paredes por caiar
nos cactos manchados de sangue
vermelho vivo de quem não ousa amar
vivemos no meio das feras
em lugares selvagens
que ninguém quer habitar
há lobos e ladrões
lamentos por vingar
terra de tormentos
flores de todas as latitudes
arbustos de todas as longitudes
a murchar num único gemido
em cada rosto abatido
um homem sem trabalho fome na mesa de carvalho
escassez centenária a varanda deserta os lírios esvoaçam doentes e doces nas palmas abertas das mãos em flor
existo parece-me
eu e o silêncio
os anjos não cantam
como cantavam quando eu orava solitário na igreja da aldeia
as poucas mulheres deixaram de cantar
a lua desapareceu nas águas do lago
a silhueta do teu corpo vivo como a morte nas margens do ribeiro
não passa do odor a tempo que se desmorona na cidade que desperta
odor a mofo hipocrisia gravada nos muros
nomes dos amantes esquecidos a eternidade acaba aqui
o r vai hoje ser enterrado com ele a ilusão e a bondade a droga e o álcool nunca foram os seus vícios e defeitos
foram o seu grito de revolta
continuará a gritar no pequeno campo-santo enquanto a terra for terra
haverá pontos de luz infiéis às sombras
nítidos como punhais de guerreiros destemidos
enquanto as fotografias dos heróis de antanho caem no solo árido como folhas de palavras quotidianas sem significação
descansa agora amanhã seria tarde
é inverno
a casa vazia
as ruas desertas os cães já não uivam estão velhos e sem forças arrastam-se no pó das bermas e nas pedras da estrada
serenos vagueiam os vírus do futuro
não se pode amar a peste tem as suas qualidades e conveniências
imposições rígidas sem que faça um favor que seja
ninguém ama ninguém ninguém se ama
porque ninguém sabe o que é o amor
com vinte e quatro anos queria tão-somente retornar à casa das noites frescas de verão
homem-menino com o coração a transbordar de esperança
destroçado na criança antiga
o violino no canto da sala a presenciar as longínquas dissertações da vida sobre aquele a quem chamamos deus
especulações da morte meditações do fim
luz e três dimensões uma quarta e uma quinta
rememora-se na falsidade da história os espectros voláteis
o olhar pudibundo dos falecidos olhares perdidos na penumbra da solidão das janelas cegas
um pedaço de pão negro azeitonas curtidas
tudo a contrastar com as paredes enegrecidas pelo fumo das lareiras e braseiras de granito e bronze
o fogo aceso as chamas do frio
quem te visita neste inverno
pureza do destino a rastejar na neve
golpe letal cravado na alma
raiz das chagas em cinza
o sangue ardente coalhado lentamente
crescemos a evitar a morte
no centro dos aromas de jardins infernais
assombrados por demónios pelas ferramentas da má sorte
pelos fantasmas das raparigas
nas saias rodadas com seus decotes
procuramos o amor na água que inunda os campos e faz crescer o fruto e o pão
na seca rebanhos de cordeiros agonizam nos lameiros
paixão desconsiderada amor desfeito
renascerá na próxima primavera para morrer no outono
e voltar a nascer no inverno ou no tártaro das almas perdidas
os estilhaços em círculo quebram a imensidão da paisagem
tingem a terra branca de escombros
há fitas de cabelos que rasgam o vento
relâmpagos cruéis pedaços de pensamento
um pássaro chora nas ramagens do medronheiro
mais valeria nada saber ver apenas ver
queremos ser felizes temos os olhos vazios
partir sempre em doce voo
deixando para trás esta terra contaminada por larvas e parasitas
a beleza arde na superfície dos rios
nas águas correntes do amanhecer
eterna e efémera
bem-aventurada e ansiosa
são assim as horas da vaidade e da arrogância
uma mulher com lágrimas nos passos perfuma a calçada iluminada pela chama das palavras mordentes
um sossego enorme percorre o oceano deitado sob um encantado céu de nuvens e raios de sol perdidos
riso inflamado de aves que trespassam o vácuo dos corações envenenados
reflexo da liberdade nunca por humanos alcançada
implorando ao medo da fúria um miserável passado
passeava a primavera pela mão cantando afeição
a lua cheia colheu a rosa de carne ceifada e deixada ao abandono
por detrás dos vidros opacos da janela ninguém
ninguém para ouvir o ruído surdo da infinita planície
mantas grossas e esventradas suspensas da cama onde dormira um menino precocemente morto
a centopeia das estações ergueu-se numa nuvem de luz
um passe de mágica com a liberdade latejante cravou-se à cruz dos anos vividos dos remorsos escondidos
porque te ris perguntou-se
tantas amantes de formas suaves disse
e agora a consumir-me na sombra desta ruína
cospe a vida cospe o amor cospe a morte e a dor
enquanto o sol entre as nuvens alumiava o artista do pecado venial
pecador desesperado mais pecador do que o pecado
mais desespero do que perdão
uma andorinha fez o seu ninho na verdade ignorada
no beiral da casa ao lado beirado da vizinha reboluda
cadela fiel ao seu dono desaparecido além-mar
nostalgia de um corpo que se esgotou nas ondas da praia
e que agora não é visto ou procurado
esvoaçam anjos no campanário
a sul o mundo estreito e incógnito dos martírios e dos punhais cravados nos açoitados
a oeste o mar esse mar angular e sangrento
mar que também há-de morrer
do norte vem o vento em longa viagem
tormento cinza ou chaga
jardim de açucenas
a este onde as árvores definham de tédio nas florestas virginais
os caçadores selvagens aguardam pacientes os animais sagrados
rumor de passos ramos quebrados
corações pulsantes um estrondo amedrontado absorvido pelo crepúsculo
animal abatido estranha festividade
gozemos a felicidade mesmo desamparados
os demónios circundam o lago gelado
ao longe o silêncio de um piano
música e anseio de dedos decrépitos artrose do tempo
percussão das agudas e das graves incessante crueldade
pobre instrumento gemente
não há mais música que seja pura ou inocente ou mística e oculta clave de sol aparente
na tarde cinzenta uma partitura melancólica e decadente
como toda a arte que não nasce espontaneamente
um cego quieto e inofensivo
a alma disponível a todas as impressões
assobia uma canção misteriosa triste como a cidade
a gente passa rompe as ondas da multidão
e o cego sentado à beira do corrimão assobia lentamente de olhos abertos
o som nascido de cifras do corpo e da alma é sua sede e sua água
chove perde-se no infinito no regaço firme da eternidade
mas de noite enquanto dorme sonha com abelhas douradas mulheres de bronze seios de amadas que nunca teve
e sonha com deus um velho de barbas brancas encrespadas
o que é a realidade
um volume uma forma uma cor um pensamento a madona sem filho ou uma criança que brinca no fim da tarde
no seu sonho
quantas valsas não dançou
quantos peitos contra o seu não estreitou
quantas bocas vermelhas não beijou
nesses sonhos e longínquos horizontes salpicados de momentos felizes e de choros subtis suspensos dos candeeiros do caminho empedrado amou o tudo e amou o nada o amor e o ódio
êxtases quiméricos de criança que nunca viu o sol nascer
de adolescente que incansável ouviu o canto furibundo das casas pardas da avenida
homem a irradiar pobreza e a cuspir o sangue friamente semeado pela solidão
velho abandonado sem desejos apegos
olhos tristes de sal na enxerga inundada
a sentença tinha sido proferida
o destino do ser o cadafalso do imaginário
basta
os campos sobrevivem no tempo imprevisto da lavra
a vida é isso pouco mais
hoje vivos amanhã desamparados ao vento e às ervas
quem és quem eras
um símbolo um grito um pai austero
ou um humano gentil carente frágil
compassivo
que interessa um ser vivo na água da levada que arrasta consigo todas as pontes
a doença um roseiral de falsa esperança com a morte por derradeira
um dia todos estaremos mortos e não seremos mais lembrados cegos surdos mudos
génios e insanos
um dia todos estaremos vivos irremediavelmente vivos na fria transparência de mansa nascente
ouvindo stravinsky na sua russa dança
rafeiros latem na aldeia uma nuvem de duas faces oculta a lua
o poeta encanecido escreve um par de versos numa folha amarelecida tarda a amanhecer
quando a chuva cai em pingos grossos o pensamento tem outra velocidade
tu e o teu sonho de que serve a perfeição se ninguém saboreia o teu hálito
tão necessária essa esperança incógnita semeada nas montanhas atraiçoadas pela paisagem enevoada
amparem-no que dorme
sustentem-no que tem fome
enquanto o universo se move em círculos
e nos geométricos quadrados de furtivos sentidos gelados
o tempo passa tudo passa
a sorte está morta no centro da caminhada
vejam
o leão de pedra ruge
os tabiques da capela com as rédeas entrelaçadas
a porta principal da igreja aberta à borrasca dos indigentes
uma andorinha voa em círculos tal anjo em pranto
cantam as mulheres ao santíssimo e tu deitado sem te moveres criança aprisionada num vidro luminescente com um lenço bordado a fio de prata sobre a cara
o leão de pedra voltou a rugir
som que só eu poderia ouvir segredo do meu rumo perdido num oceano sem margens
agora a luz a espuma junto ao costado a escada incendiada e o céu tão distante tão separado da terra
um arco uma flecha
a alegre correria de um grito compacto
a estátua do toureiro do matador de touros e dos cornos do desprezo
paredes de pedra irmanadas com as de cimento
corpos vivos em movimento que permanecem sentados no silêncio erguendo os seus punhos ferozes e tristes
corpos vivos a apodrecer em cada momento da existência sombreada
o ódio dos mortos por inumar
populaça que vejo e leio com o olhar simples e humilde da ignorância vespertina que partiu e que não mais irá voltar
também eu quando morrer não saberei para onde ir nem terei onde repousar a cabeça
restar-me-á ficar com a pele enrugada
o olhar perdido na vastidão do infinito
na plenitude do eterno com a alma junto ao tronco fendido onde possa sossegar num fio de luz divino
estou preso aos dias remorsos do tempo que injuriei
por trilhos angulares e detraídos
pertenço à primeira dinastia dos anciãos revoltados
tardia é sempre a iluminação dos desesperados
lenta tarefa de quem escala as estrelas maduras da dor e da negrura
preso ao medo e às lágrimas do soldado entrincheirado no lamaçal dos regimentos ocultos e dos batalhões esventrados
agrilhoado ao fumo das fábricas construídas mas margens de rios e mares assombrados
detido pela consciência da oração repetida e imóvel do lago celestial
pranteio e sorrio
vi uma a uma outra e outra menina e virgem
navegarem no coração do meu veleiro
vi o fogo nos seus rostos
os mistérios pendentes dos seus sorrisos
o troar das florestas enfurecidas
das tormentas do mar a inundarem as praças da cidade
chicoteadas por cristo tantas vezes morto traído e torturado
valsas nos céus
trepadeiras nas nuvens
batalhas de flores
ervas daninhas
miseráveis escombros da felicidade anunciada por guerreiros em formação de desordem anarquistas do proletariado
caóticos e submergidos em mágoas sepultados
alguém lhes poderá devolver a cor são cadáveres amarelecidos e inchados sem o poder do espírito
sem que de si sejam donos
possuidores de mil demónios que legião
ninguém ninguém lhes dará a vida apenas pedras sobre pedras para que os lobos inquietos os não possam desencovar
da vida e do nada forças cegas que nascem dos genes da infância no íntimo da candura e de uma espera ultrapassada
fenece-lhes a fé
nasce-lhes uma nova morte
o medo do além do vazio do nada
progredindo lentamente sem um novo amanhã
conto as vidas que vivi em todos estes anos
a infância com os seus canteiros de flores variadas
a fé cega fruto maduro da verde esperança
as abelhas no cortiço revestido por pedaços de árvores por mãos humanas decepadas
tudo tão fiel e inócuo na unidade das coisas
tinha de viver continuar vivo vegetar
morte incerta
fumo sempre o último cigarro quando não sei o que fazer
como sempre a última refeição odeio comer
amo sempre pela última vez sei lá o que é amar
morro para renascer
morrer é viver e viver morrer
escrevo a carta que nunca escrevi sem destinatário terreno e sem remetente
escrevo-a envio-a para que não pese na alma na viagem que amanhã farei
inundo-me de paz de música angelical de névoa
deixo-me adormecer
neste derradeiro entardecer
humildade simplicidade tranquilidade
bem-aventuradas as horas das esferas sem princípio nem fim
luminosas e transparentes águas que brotam dos nascimentos prematuros
espelhos da ilusão de fecundas auroras e misterioso anoitecer
abraço de golpe letal na paciência infinita
da não-existência
diz-me a quem o vento açoita
à fome e movimento da dor que cresce nos membros mirrados e pacíficos dos indigentes
pés ensanguentados arrastam-se pela ponte fria
húmida e escura
geada envolve amorosamente os pilares amarelados pelas luzes das margens fugidias
agonia da lembrança das infecções campestres e das ilhas contaminadas
um navio ajoelha-se docemente nas águas pardacentas
mais ao largo
uma multidão reúne-se no cais
no meio das algas o corpo esbranquiçado e roído de um afogado
escuta
o som da noite
da madrugada
do dia chamejante
compreende o que te digo a névoa e as cinzas da memória aguardam-nos na sua resignação quase eterna
a paciência é mais uma qualidade animal que humana na sua infinita dormência
fomos definitivamente esquecidos assim como a corrente das glórias do passado
não nos libertámos das redes do desejo mergulhámos nos regatos do apego
nas cinturas finas das mulheres petrificadas pelo orvalho
de que servem pois os sacrifícios realizados nas bermas dos caminhos ensolarados ou as orações infantis que mais não são do que ciladas do maligno a apelar ao pecado
a esta hora tardia há quem ainda esteja em vigília orando
e quem acorde de um curto sono rezando
veias salientes iluminadas por velas apagadas nomes mortos que retornam todas as manhãs o cipreste da praça cresce na vertigem das frases imberbes dos turistas
desastrosas como lanças aguçadas
no café a pestanejar um velho lê o jornal
lá fora o rumor dos pneus nas poças de água ensanguentadas prazer e mágoa sombras sombras aladas o fumo dos cigarros dos transeuntes sem rosto
a vida envolve os corpos dormentes povo que passa
morte que ignoro por agora o que está vivo já morreu uma duas ou milhares de vezes
o que ficou esquecido não renasceu
haverá amor paixão encantamento
não há o hábito estes vasos de argila e o sono sem lamento
que venha a música do sono e do sonho
o nada que envolve o profundo
como uma pedra cinzelada ou uma árvore nascida da carne
regada a sangue alimentada pelas vísceras dos animais
sem discurso poético ou prosa rimada anunciada em cartazes luminosos distribuídos pelas estradas
as órbitas vazias as vigílias das sensações com um forte odor a miséria e a desgraça
tanto por tudo tanto por nada
quando tudo finda na vereda tresmalhada da mente
quando tudo o que fica para trás é um ossário ausente
ofereces-te imóvel nasceste do amor entre as distâncias
podem as entranhas mentir
a pele do teu corpo feita de água salgada e beijos
a ingenuidade da charrua lavra um dócil sorriso no teu coração dos lábios rubros nascem artérias invisíveis que germinam sob a terra
espinhos da carne que lampejam no sonho da insónia que abraças no leito
agora o rio arrasta os destroços das últimas batalhas
as raízes das árvores insidiosamente arrancadas
o sol poisa na superfície das águas ilumina uma mão crestada e um cigarro apagado
mais uma alma sem abrigo num mundo de estátuas e trilhos de pedra aparelhada
talvez fosse uma mulher assinalada pelo suplício uma sombra viva vergada pelo peso dos ombros frágeis calejados da felicidade ausente
distante com o olhar poisado no horizonte perdido
presa às finas redes da melancolia
fala-nos sem que profira sonoridades cingida pelas espessas trepadeiras das terras húmidas e pantanosas
sem alento sem uma margem onde aportar
murmúrio de dor na ausência de uma boca para beijar
que fazer afinal nem todas as tardes são calmas e delicadas quietas e fiéis a si mesmas
há sempre lesmas e vermes fluindo de sorriso em sorriso
de gemido em pranto
continua o teu caminho
não olhes para a tua sombra
deixa tudo para trás
não és ninguém ou és
uma gota de orvalho no leito não permite que sossegues
a casa é branca a lua é branca o espaço transparente o corpo limpo fede
a estrela da manhã nasce do nada enquanto ondas silenciam o rumorejar do mar apaziguado
põe os pés na neve arqueia a tua coluna esfrega as mãos uma na outra bate palmas ao porvir com o som de uma só mão
o mundo amanhece e anoitece
uma voz oculta cresce rumo à tua crença de menino
catástrofe de um momento nascido na nossa língua
sangrento seco como um deserto sem oásis
parte para uma terra nova
pássaros azuis nas ramagens dos cortinados da varanda a sul beijos que florescem
as mãos vazias na escuridão da primavera cruel
albergando a dor do castigo vão consequência de faustosa vida
não entendem o que dizes quando falas sem palavras audíveis
concordo o silêncio vale mais do que todas as livrarias e discursos
e ser ser como o é o pinhal o fruto incendiado no pomar o sensual correr do rio na direcção do nascente o pardal vagabundo um eterno navegante um mistério um sinal
uma ave rasga o céu
terra ar fogo água
música divina ignorada
estamos adormecidos como a loba selvagem saciada no covil
não há um único som no salão
o oceano turquesa aguarda pelos banhistas gregos
a filosofia é hoje construída pelos corpos seminus nas praias
no horizonte veleiros pérfidos com andrajosas velas de calmaria içadas em mastros de iguarias em cada adriça um escravo
despertai a revolução da tormenta de braços abertos ao movimento dissonante do mar
no leme circular o centro do mundo em chamas
nuvens garbosas em debandada o presságio do novo dia no relevo rochoso da costa a este
quem é que não quer descobrir um novo mundo
marinheiros embebidos em rum dormem no convés apodrecido miram-se nos estilhaços do espelho da mezena
uma ave volta espada de luz a escanar o ar de metal fundido volta para não mais voltar vai-se num suspiro tão delicada na luz pesada da inexacta eternidade
corpo vasto no universo da idolatria
a praia vazia
palavras apagadas na areia
na morte de mãos dadas com as luzes da cidade
quantas vezes a coragem não é mais do que cobardia
medo o pavor pardacento dos corpos no espaço cósmico
sem segurança no viver insistem tais cães acossados por reflexos articulados dos espelhos confluentes
cautelosos pisam a areia que arde nos trópicos e a terra ardente das montanhas desnudadas
vivem num ataúde florido que as águas impelem para os mares acariciados pela brisa que ao entardecer varre as lágrimas sem fim
o silêncio é sempre uma oração silêncio não só da boca mas também da mente
um deserto cheio de ti
um mar assombrado
uma montanha rasgada por um vulcão adormecido
um amar quebrado pelo tédio
tens espigas douradas nos braços
és frágil
franzina e volátil
desapeguei-me do passado e peço peço o presente
o instante que abre sulcos de luz nas almas que morrem entre as árvores ressequidas das florestas doentes
deixo-te o meu fio e a cruz pendente
parti para uma região onde os fogos nascem nos corações dos homens
ausente sim ausente
que me importa a sede e a fome
a tempestade e a bonança
o amor e a saudade
parti sem deixar rasto
tenho vivido como um escravo de mim mesmo
poderá existir pior escravidão não talvez não
chegou o tempo da existência em que devo conceder-me a alforria emancipado do passado
de desprezado a humilde
sem conhecimento e com sabedoria
cansaço atroz do quotidiano
embriago-me de alegria
tantas vezes enfrentei a derrota arrependimentos
pesares remordimentos negros pensamentos
o sacramento
o sacrifício
uma rosa
desperta
no frio
navegar no suplício
num velho suspiro
diante da igreja
três vezes repeti
as palavras
que por malícia
ressuscitam os mortos
que os dão à vida
como está escrito pela palavra se perde e pela palavra se salva
admitam se quiserem os anjos das fotografias a preto e branco são máquinas de guerra por isso cada homem tem um que o arma para o combate da violência demoníaca
grandeza de exércitos alados separados pelo ritmo infernal do bem e do mal
legiões sem máscaras
rabos de cabedal violáceos
feridas produzidas por punhais de aço temperado no inferno
nos pássaros que sangrantes percorrem o espaço
presenteados pelos despojos pedaços de carnes em decomposição
a natureza revoltada multiplica-se em calamidades
não quero falar de inutilidades sempre as houve e sempre as haverá
a dispersão do pensamento é o útil quando retira o peso que recai sobre os nossos ombros
e fútil quando faz com que o espaço espirre
por ora que se lixe a pandemia
- com o respeito devido aos mortos e aos que sofrem –
a decisão de um tribunal
magistrados que nem putas em luta aguerrida por um mesmo cliente
onde isto chegou
da pandemia à justiça nas televisões pobre povo pacóvio e inocente
deixo que o meu cérebro rebente
destruindo as reflexões
ouve as vozes da idade heróica
uma idade de ouro outra de prata outra de bronze
a falta de disciplina dos exércitos circunscritos a cercados de gado com o pasto seco inundado por sangue derramado
generais com o olhar enlouquecido a brilhar na noite
centuriões com blenorragia soldados com escrófula e avariose
combates em roupa interior as armaduras são frágeis
o chão incerto para os cavalos
desilusão para os estrategas acantonados na tenda furiosa do planeamento
agora há marechais com moedas no peito
secretárias vegetais na sede do comando
tudo contingências para além do nosso alcance faz-se a guerra por uma razão que esconde uma outra
justificando o que não pode ser justificado a mentira vestida de verdade
nas árvores da planície sangrenta as aves deliram
cantam em grupo desafinadas
há que seguir o rasto dos feridos e o vómito dos mortos
uma brigada de reconhecimento avança em losango ceifando o mato sensível
que descarnado os irá denunciar aos atiradores furtivos
que mais se pode fazer ordens são ordens
cumprir ou não cumprir morrer ou viver
apreciava ser cem vezes mais forte do que sou
mil vezes mais inteligente
- esperto não que a esperteza é a mãe da infâmia –
um milhão de vezes mais
- sei lá o quê –
sem camaradas a quem foram arrancados os membros por engano
um erro é sempre um erro
mesmo que seja verdadeiro
ou justificado por um brigadeiro
temos escrúpulos em demasia
não lemos a história dos homens com cotos que sobreviveram à maçada da morte
procuro-te entre tantos corpos
a terra coberta de vermelho e linfa exala um perfume quente
divirto-me naquele paraíso de paz
esqueço quem sou
busco a memória nos corvos atónitos das ramagens ressequidas
tenho nos bolsos duas madeixas dos teus cabelos negros
elas far-me-ão voltar deste crepúsculo vazio
túmulo inóspito e frio a céu aberto
onde consigo sempre ouvir um requiem em ré menor
único que trago comigo
as vozes lamentam-se
o primeiro violino modela-as
tudo como num funeral sem umbigo
o cortejo melódico trespassa-me o coração em chamas
requiem de vivos na desgraça da fome do canibalismo vivo da desgraça e da miséria à espera da morte
kyrie eleison
a alma voa em círculos não dorme nem sonha
observa
vive o seu outono de folhas descoradas e pendentes
uma pausa
para que se desembainhe a espada suja com o sangue coalhado dos desertores
a violência do medo na guerra-de-ninguém
os humanos inventam pátrias a defender usando a coragem dos deserdados nas linhas da frente
nas trincheiras e nos combates de peito aberto
enquanto
à retaguarda os filhos de nobres e poderosos
acenam no porto ao embarque dos amigos pobres
ficando nos comandos de armas
em secretárias sentados
prontos a bater em retirada
quando as paliçadas
são derrubadas
nuvens escureceram o campo
lutaram por menos de trinta moedas
enfeitiçados por um falso patriotismo
onde defenderam os interesses
dos que ao confronto se negaram
débil e arqueada
a bandeira rasgada
suicida-se numa lentidão
escalonada
foi-se a guerra
veio a revolução falsidades corrupção
veio a pandemia
a incompetência a velha a serigaita o poupinhas o papudo o gordo o hipocondríaco
tudo em conivência
esqueçamos o que para ficar veio
temos o orgulho de ser humanos
pensamos como guerreiros luminosos
sem a simplicidade dos pequenos
e a humildade dos silenciosos
dâmis ergueu um monumento ao seu cavalo de guerra esventrado
ártemis encheu de peixe a nossa rede
alimentando os náufragos da batalha
confutatis a crueldade inicial do canto que só dura enquanto a claridade permanece
deixo de ouvir
a prostituta que gemia estridente lacrimosa
agora no chão caída
jaz sem boca língua e voz
em vida não defendendo a sua virgindade
sabendo que nos infernos nunca iria encontrar amante
para lhe dar o prazer de cípris
os soldados não escolhem
branca ou negra
que interessa no aqueronte seremos carne putrefacta depois ossos e por fim
pó e cinzas
aliás o carvão é negro e se aceso e em brasa
brilha mais do que rosas ao sol do meio-dia
zéfiro o vento
separará o pó dos restos mortais que alimentaram os animais selvagens
as catedrais da música foram destruídas por obuses e canhões
as cantoras líricas emudeceram
os cantores morreram
restam-nos os pássaros da colina
estorninhos e cotovias
cucos e pardais
e o roçar do vento nas cordas das árvores e arbustos dispersos na paisagem
e o regresso a casa
seduz-te a beleza sem graça
a donzela muda no leito
dá-te o prazer do corpo
combatente esquece o espírito
que esperas da vida
para além da batalha
e da soldada
do vinho e do orgasmo
nada
enviaram-te jovem
para a armada real
e receberam em casa
um homem feito e leal
que agora no arado
e nas horas mortas
só encontra na vida
um profundo marasmo
ansiando para a guerra
a inevitável partida
a guerra é um vício
como o sexo
o jogo e o tabaco
defeitos lícitos
a batalha pode ser violenta
salvas de setas que cruzam o ar
lanças arremessadas
escudos que se chocam
enquanto as espadas
as vísceras perfuram
na legião
o soldado morre
o soldado vive
enquanto a música inunda a sala
uma névoa azul desvanece-se
os cenários são ruínas da consciência
crianças esfomeadas
dependuradas nas vedações de rede
dos muros construídos com mãos
de maligno ódio e rancor
cantam as águas do rio
dezenas de catraios brincam nas margens
e cantam canções populares
correm para montante depois para jusante
juntam-se
marcham ritmadas imitando os soldados
do pelotão invasor
violador das donzelas prometidas em casamento
ao homens do povoado
os homens fazem a guerra
os miúdos brincam aos oficiais
tenentes brigadeiros generais
sem que saibam que suas mães e irmãs
são por animais estupradas
e os homens sumariamente executados
sem que renasçam ao anoitecer
sem regressar a casa à ceia
e adormecer nos braços das amadas
enquanto a ocupação continua
com a morte da resistência
e o abuso das crianças e das mulheres
memórias tristes que atormentam uma alma cansada
águas salgadas de tantos mares e lágrimas passadas
de que serve chorar
as imperfeições os erros os pecados
quando o coração se abre num novo ser
o tempo deu-me pesares e contentamentos
tolheu-me sentimentos e afectos
alimentou amores de tanta graça e prazer
que hoje nada têm de concreto
de nada servindo gemidos e lamentos
vou escrevendo palavras que se fazem versos
poemas que não dedico às mulheres que amei e já não amo
porque amar é mais do que partilhar um leito
e escrever mais do que ter alguém para nos ler
daí
a mim me dedico
e a mais ninguém
***
04/2021
José Maria Alves
https://homeoesp.blogspot.com/
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