***
quem sou eu
e tu quem és
há algo que seja teu
há algo que seja meu
busquei o que é puro por si
que por si cintila
luminosidade clara e pura
aqui e em toda a parte
libertando-se da vida e da morte
os sábios não temem o fenecimento
são tantas as vezes que já morreram
para o ego ensoberbecido
para a glória e para a vaidade
para o mau destino e para a sorte
para os grilhões que os aprisionam
não há nada que possa ser considerado como complexo no caminho
libertação de tudo o que existe
opinião condição e situação
do eu que gera o eu
tombando no vazio da mente
sem pensamento
para aí encontrar a verdade
sendo como o espelho
que retém e não reflecte
não escolher sem amor e sem ódio
nem sujeito nem objecto
nem interior nem exterior
nem certo nem errado
se não preferir seja o que for
serão poucas as
pedras de tropeço no caminho
amor e ódio
toldam a visão
do iniciado
uma mente vazia no infinito –
a cada sentido a sua função
sem que se deixe afogar na ilusão
que eu corte a raiz dos desejos e apegos
sejam quais forem minhas faltas e meus pecados
possam desaparecer como a névoa matinal
que em surdina desce sobre os povoados
penso logo existo diz-se
e se eu não pensar
se existir no vazio claro puro e luminoso do meu coração
descendo directamente ao seu lugar mais profundo
abrindo-o à verdadeira realidade
se o fizer penetro a minha natureza
se nela perseverar libertar-me-ei do nascimento e da morte
eu eu que nunca nasci
eu eu que nunca hei-de morrer
que vivo sofrendo sem sofrer
sentado morre de pé morre morre deitado
não morre
o que nunca nasceu
nem nunca há-de morrer
jesus disse
eu sou o caminho a verdade e a vida
caminho correcto verdade e vida correctas
deixa que a tua vida flua esse o caminho correcto
faz o que tens de fazer expurga a mente do pensamento e verás a verdade age com amor e compaixão e terás uma vida justa
se não pensares tudo será verdade
quando tiveres fome come
quando tiveres sede bebe
quando tiveres sono dorme
quando encontrares alguém no teu caminho
pergunta como estás
quando comeres beberes ou repousares
cumprimentares seja quem for
limita-te a fazê-lo nada mais para além disso
come e sabe que comes
bebe e sabe que bebes
repousa e sabe que repousas
saúda e sabe que saúdas
quando o cansaço te invadir vai para o teu quarto
dorme profundamente
a iluminação também se atinge a dormir
afinal o que é que se move
o vento ou o canavial à beira-mar
nem o vento nem os caniços
é a mente quem se move
o vento e o canavial são a mesma coisa
o vento não é o canavial nem o canavial o vento
o vento e o canavial não são a mesma coisa
dos olhos da estátua de pedra do jardim
brotam lágrimas
o leão de porcelana ruge
o oceano é uma imensidão de água
existem tantas nuvens no céu grandes pequenas
negras cinzentas e tantas as suas formas
quantos são os meus cabelos
de onde nasceram o sol os planetas estrelas meteoros e tantos outros objectos
e os buracos negros
a matéria escura
galáxias nascentes e galáxias que morrem
habitantes de mundos desconhecidos mistérios apetecidos
e as criaturas desta terra
a mente tudo criou
sem pensamento
que nomes podemos
atribuir às coisas
experimenta por ti
usa um arco sem flecha
aponta-o e abate a tua presa
como é possível
senta-te de frente para uma parede
deita-te e adormece dentro do coração
esquece os ensinamentos
sacrifícios a tradição
para que possas obter a iluminação
quando comes com que mente comes
a passada a presente a futura
nenhuma delas te conduz à libertação
o silêncio é melhor do que a santidade
a acção melhor que o ensinamento
palavras palavras palavras certo e errado
bom e mau monge e ladrão
não quero palavras
quero compaixão
um tronco apodrecendo sobre o granito frio no rigor do inverno
é um falso santo um habitante do inferno
nunca será um liberto
quando a mente aparece tudo aparece
se desaparece tudo desaparece
quando está luminosa tudo é iluminado
quando apagada tudo são trevas
que nome e forma não deixem marcas imagens
não faças nada ou faças o que fizeres
que embora pareça ser seja nada
quando beberes chá que seja chá
quando beberes água que seja água
quando comeres arroz que seja arroz
não havendo mente
não haverá chá água arroz
o vento de primavera é florido
o vento do verão é tórrido
o do outono traz folhas mortas
o do inverno traz a neve
sem palavras o vento é teu
o que é a verdade
a resposta está nos passos que deste
lavaste o teu corpo na montanha do diamante
como poderás lavar a tua mente
mantêm-na pura e luminosa
se ainda tiveres mente limpa-a
se não tiveres liberta-te dela definitivamente
ver simplesmente
ouvir simplesmente
cheirar simplesmente
é melhor do que o sutra do diamante
faz o que estás a fazer
limpa o pó do espelho
abre a janela
deixa entrar o orvalho
do espelho límpido
originalmente nada
onde está o pó
como limpar o que é claro
não te prendas a nada que venha da mente
eu meu tu teu ele
a impermanência tudo aparece e desaparece
quando há imobilidade há felicidade
este corpo não pode atingir a beatitude
nasce e morre na aparência surge
e pela aparência deserta
o vazio do coração é como a natureza
é a natureza de tudo o que existe
nada ouve diz ou sente
não fazendo nada é feliz
senta-se e esquece
como o velho monge
vê ouve cala
está tudo fora da tua mente
conhece o impermanente
não faças nada
sê o não-ser
como gotami escreveu
não é lei de aldeia ou cidade
nem lei de uma única morada
é a lei do mundo que faz
com que todas as coisas sejam impermanentes
estás sujeito ao nascimento
à velhice e à doença
ao sofrimento e à morte
procura o não-nascimento
a não-velhice e a não-doença
o não-sofrimento e a não-morte
sem nenhum desejo
que se enraíze
atingirás o nirvana
serás uma candeia para o mundo
e terás como prémio
a extinção do padecimento
fim do nascimento e da morte
a forma é vazio e o vazio forma
estranho mundo de opostos
se sem forma e sem vazio o nirvana
como são tolos todos aqueles
que julgam alcançar a salvação
em corpos e mentes aprisionados
aos desejos mundanos
o universo é criado pela mente
todas as coisas são criadas pela mente
de onde vem a mente
pergunta à montanha à neve à pedra à árvore
o homem de pedra está a chorar
o que é que isto significa
as colunas do templo desabam
o que é que isto indica
o monge queimou o buda de madeira
que crime cometeu
não sei segue o teu caminho
cada trilho começa com um único passo
e termina com a imobilidade
o que é que isto representa
o que significa o cipreste no jardim
olha vê o cipreste no jardim
entenderás
1+1+1 = 3 3+0 = 3 3x0 = 0
estátua x 0 = 0 monge x 0 = 0
3 monges x 0 = 0 monges
3 monges x 3 monges = um
a forma é vazio vazio é forma
nem forma nem vazio
forma é forma vazio é vazio
sê um espelho apenas isso
esquece todo o resto
a mente desaparece tudo desparece
palavras desaparecem
se falares erras deixa tudo
segue em frente
no pico do abutre uma flor
sem palavras sem discursos
uma só flor
contendo toda a verdade
vê e sabe
a rosa floresce na colina
não faz perguntas não quer saber porquê
não se embeleza limita-se a existir
buda ergueu a flor
man gong ergueu um dedo
flor e dedo são claros
a flor é uma flor
um dedo um dedo
que mais há para dizer
o corpo morre o não nascido permanece
o buda
um quilo de linho
trampa seca num pau
o velho cipreste do jardim
se o encontrares mata-o
quem és
és buda
sem ti
não há buda
a estrela da iluminação do buda
abandona tudo
até a mente da iluminação
o verdadeiro buda é a total ausência da mente
a bandeira não se move o vento não se move é a mente que se move
buda
é liberdade
verdade
e compaixão
se tudo é impermanente
para quê construir um templo
alcançando a impermanência
alcançarás o verdadeiro templo
no recanto mais profundo
do teu coração sagrado
ouve com clareza
vê com clareza
cheira com clareza
pensa com clareza
para que alcances
a verdade do iluminado
o que é que estás a ver
o que é que estás a ouvir
não é tudo tão real e claro
não te bastam os sentidos
numa mente pura
fé coragem e dúvida
caminho verdade vida correcta
mente única sem tempo e espaço
o céu da consciência iluminada
é livre
sem tempo e sem fim
a iluminação está aqui
perante ti
o círculo do zen
o eu pequeno
o eu karma
o eu nada
o eu liberdade
o eu grande
cada um cada quarto de círculo
desenha-o de uma só vez
deixa tudo para trás das costas
vê e ouve com simplicidade
atentamente
segue em frente
que os teus passos sejam
o movimento das tuas pernas
o que é que estás a fazer
faz o que tens a fazer
ouve o rugido do leão de pedra
quando nasces de onde vens
quando morres para onde vais
a vida é uma nuvem que aparece
a morte uma nuvem que desaparece
a nuvem não existe por si
só uma coisa permanece
deixa que os desejos se extingam
mantém a mente límpida como o infinito
os desejos surgem e com eles o inferno
retiram-se e desponta o umbral do paraíso
as estátuas têm olhos
dos olhos brotam lágrimas de chuva
chegaste de mãos vazias
de mãos vazias partirás
passa para além da vida e da morte
se morreres
morrerás na realidade ou não
se renasceres
renascerás na realidade ou não
quando morreres para onde irás
se renascerás para onde retornarás
a morte não dá lugar ao nascimento
a morte é uma não-morte
permanece no teu estado natural
tu és o não-nascido
o espírito é vacuidade
não há outro lugar
para meditar
para encontrar o paraíso
mergulha no teu coração
naquele compartimento
que irradia paz
onde está deus
onde mais ninguém pode entrar
nunca o abandones
deixa-te estar
quem nada quer de tudo é dono
sentado no silêncio da noite
à espera de nada
não percas a língua ao abrires a boca
um grito de um ganso enche o céu
é sempre azul azul se vê
o grito trespassa o silêncio e a quietude da montanha
da obscuridade iridescente
todos temos uma sombra que nos persegue
como poderás pisar a sombra que te antecede
poderás fugir dela
não fujas vê-a como quem vê
sem mente sem nada
as sombras são sempre e serão sombras
tu és a sombra e não és
se não estiveres cativo de nada serás livre
onde estão os meus tesoiros a minha casa meu filho minha mulher ou amante
sem pensamento onde está tudo o que possuo
quando a mente desaparece não há formas
ou há
há círculos quadrados losangos ou é tudo linear
respondo sempre não sei
uma coisa eu compreendo
entendo este não sei
melhor é deitar-me e dormir sem sonhos
a verdadeira natureza não existe
a corrente de norte arrasta a jangada para sul
a corrente de sul arrasta-a para norte
se não houver corrente o que é que seria carregado
o universo não diz eu sou o universo
a terra não diz eu sou a terra
o céu não diz eu sou o céu
as coisas não dizem nós somos as coisas
nem outros seres
só os homens
guarda silêncio não sabes quem és
não faças nada deixa que aconteça
o que tiver de ser será
tem cuidado onde pões os pés
descobre o portal que encobre
a única coisa que vale
és o fogo que arde eternamente
nós o brilho reflectido
não cresço sozinho
não caminho solitário
nem tu
como poderei eu sem ti
e tu sem mim ser alguém
quando a mente desaparece eu e tu somos um
o tudo é nada
o nada é tudo
se eu sou nada como posso ver o tudo e o nada
sem olhos sem ouvidos sem nariz sem mãos
sem mente
está tudo à minha frente
olha através dos olhos de deus
não há maior iluminação
deus vazio e puro
visto como forma
transforma-se em substância
luz escuridão quietude movimento e tempestade
o maior dos abismos profundo na eternidade
oceano sem margens sem espaço
donde tudo se ergue infinito
para onde tudo flui
era deus dentro de deus
antes de ter os grilhões do eu
que me aprisionam ao tempo e espaço
voltarei a ser deus
quando do eu me libertar
quando a mente aparece
perde-se a divina natureza
quando a mente desaparece
estarás com deus
torno-me um com o vazio desenvencilho-me do eu
e compreendo como ninguém a liberdade e o poder de deus
de nada me vale dele falar pregar sermões
palavras palavras que nada valem
saio do meu interior
morro para mim
não sou jamais
nada mais faço
ele que viva dentro de mim serei ele e ele eu
ou apenas ele que é e faz o que aparento ser e fazer
se tiver no meu coração
a centelha clara e pura
o mundo continuará
essa centelha ora sonha ora está acordada
se não vigiar nem sonhar
se dormir profundamente
onde está essa centelha
senão no mesmo lugar
não queiras nada
não faças nada
o universo dar-te-á tudo
olha para o chão e apanha a lua
não há outra oração do que a que te une a quem te diriges
prossegue o teu caminho
busca o que é puro
o que é luminoso
mergulha no teu coração
respirando profundamente
e perguntando quem és
liberta-te da vida
liberta-te da morte
sê forte como a monção
abandona o eu
que cria o eu
cai no vazio da mente
sem pensamento
encontrarás a verdade
o que existiu desde sempre
e nunca deixará de existir
lembra
que a verdade
não está no longe
ou na distância
está aqui agora
no que está perto
medita no teu coração
e a meditação apagará
de imediato todos os
os teus erros e pecados
sê como um espelho
isento da poeira do mundo
que reflecte e não segura
não te afastes do céu e da terra
que diferença há entre o céu e a terra
as preferências
levam ao desejo
o desejo ao apego
o apego à morte
uma mente morta em vida
é a pior das epidemias
a doença mais virulenta
apazigua o espírito
vê as coisas como são
está atento ao teu coração
aí a dúvida desaparece
a terra da luz fica perto
e abrem-se os portais
da paz eterna
dá o primeiro passo no teu caminho o primeiro passo é sempre o mais difícil
perguntas-te para onde irei
norte sul este oeste alto ou baixo
o caminho não tem direcção porque é apenas caminho
sem rumo como navio num oceano
sem terra para aportar ou porto para repousar
é vasto e tudo contém
caminha sem caminhar
repousa sem repousar
movimenta-te sem te movimentares a unidade está aí
onde sempre esteve no mais profundo do teu coração
vasto como o cosmos é a suprema perfeição
não fales cala o teu intelecto
o que é que há fora do caminho nada
nem tu
o caminho és tu
tu és o caminho
do tamanho do universo
***
não tenhas preferências
não tenhas amor e ódio
não discrimines
separando o céu da terra
não tenhas opiniões
não estejas a favor ou contra
o que quer que seja
não desejes nem te apegues
ao que está fora ou dentro
não te prendas
a seres a coisas a ti
à sabedoria à iluminação
sê livre
no que é luminosidade incandescente
sem causa ou consequência
sem o eu que mata
não fales
não penses
e tudo conhecerás
não julgues
para que não te condenes
não compares
nem interpretes
observa os factos
com a clareza
da testemunha
abandona o gostar e o não gostar
o preferir ou ter aversões
compreende a essência das coisas
sem aceitar ou rejeitar
nada te será ocultado
não busques a verdade
repousa na unidade
e tudo o que é falsidade
ou mera ilusão
surgirá do nada
e a iluminação
irá muito além
do erro e da vacuidade
renuncia a todo o mal
sê forte
não te apegues
ao nascimento
e à morte
tem compaixão
por todos os seres sensíveis
não detestes nem desejes
não te preocupes
não te lamentes
tolos são os que pensam
que nada pode matar a morte
há uma morte que vence a morte
e essa morte é a morte do eu
fica atento
atenção constante
a atenção é a vida
no agora
no momento
só sabe viver sozinho
na montanha ou na floresta
o que está atento noite e dia
procura o bem
a competência e a integridade
a sinceridade e a ausência de orgulho
puro de palavras amáveis
sem que mintas ou faças intrigas
satisfeito na riqueza e na pobreza
contente e agradecido
tem sabedoria sem arrogância
sem cobiça ou inveja
humilde e austero
deseja a felicidade para ti
para amigos e inimigos
que todos vivam
na alegria e na segurança
sem cólera ódio ou rancor
com bondade compaixão e amor
sem apego a quaisquer doutrinas
sem desejos nascidos dos sentidos
sem apegos ou condicionamentos
com uma visão clara da realidade
que todos atinjam a verdade
descontrai o corpo
movimenta-te com lentidão
cerra os lábios e resta em silêncio
esvazia o espírito
não penses em nada
ou pensa sem pensar
sem medo desejo apego inveja ódio ilusão tentação dúvida ansiedade angústia existencial depressão avareza
busca a unidade
no teu coração
e serás um
com a perfeição
o caminho é perfeito
nada lhe falta
nada tem em excesso
não é fácil nem difícil
repousa serena-te domina-te
não te apegues a nada
nem à iluminação
sabe que não há dualidade
mas não te deixes
prender pela unidade
não faças discriminações
coisas e seres são um
liberta-te dos grilhões
não há nem dois nem três
liberta-te da ilusão
todos os seres
têm a natureza de buda
assim como a natureza
do gelo é a água
sem água não há gelo
sem seres não há buda
não te apresses ansioso
quanto mais corres
mais devagar o percorres
e sofres
sabe
que as coisas dependem da mente
e que a mente depende das coisas
deixa que tudo seja o que é
nada rejeites
caminha com amor e bondade
tranquilidade e compaixão
ausente da paixão
protege os outros
e protege-te a ti
protegendo-te a ti
pela atenção constante
aos outros proteges
não persigas o passado
não te percas no futuro
atenção constante aqui e agora
dia e noite sempre
não tropeces na tua sombra
procura o impermanente luminoso
no âmago do teu coração
esquece
ganho e perda
certo e errado
que sejas nada
e o nada tudo
diz não há dualidade
repete-o
sabe que não há eu
nem nada
que não seja eu
quando os conceitos
desaparecem
não há ser e não-ser
virtude e pecado
caminha no agora
e serás libertado
***
não há tempo a perder
não há amanhã
nem depois –
só o agora existe
a morte não se faz anunciar
e quando se anuncia é tarde
e pouco há para fazer
dá hoje o primeiro passo
quem sabe se amanhã
tu que te julgas forte
não estarás no vale da morte
***
mestre tandzan escreveu sessenta cartas no último dia da sua vida e pediu a um noviço que as enviasse
as cartas diziam
parto deste mundo
este é o meu último aviso
tandzan
27 de julho de 1892
***
04/2021
José Maria Alves
https://homeoesp.blogspot.com/
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