***
nasrudin na praça do mercado
dirigiu-se à multidão
povo deste lugar
minha boa gente
que sempre trago no coração
quereis conhecimento
sem dificuldade
verdade
sem réstia de falsidade
realização
sem esforço
progresso
sem sacrifício
o número de pessoas
era cada vez maior
e todos bradavam
do mais velho ao mais moço
queremos queremos
no meio
de todo o entusiasmo
de toda aquela gente
disse o mulá
excelente
apenas o queria saber
para vos bem entender
confiem em mim
como em vossos pais
confiastes e confiais
porfiai que tudo
a tal respeito vos contarei
caso algum dia
descubra algo assim
***
um aluno do mulá perguntou
qual o maior empreendimento
o do homem que conquistou um império
o do que o poderia ter feito mas não o fez
ou daquele que evitou que outro o fizesse
disso nada sei
respondeu nasrudin
mas há um empreendimento
bem mais árduo e dificultoso
que qualquer desses
qual é
ensiná-lo a ver
a realidade
tal qual ela é
***
quiseram os moradores
da aldeia
embaraçar nasrudin
por ser considerado
uma espécie
pouco ortodoxa de santo
rogando-lhe que fizesse
um sermão na mesquita
nasrudin anuiu
no dia marcado subiu ao púlpito
e disse
bom povo
fiéis de alá
sabeis vós
o que vou dizer
desconhecemos
responderam
se não sabem
então falar não poderei
sois uma corja de ignorantes
não perderei mais tempo convosco
regressou de imediato
a casa indignado
vexados
volveram
uma vez mais a nasrudin
pedindo-lhe que fizesse
um novo sermão
nasrudin
compareceu
e questionou-os
bom povo
fiéis
sabeis vós
o que vos vou dizer
de conluio
responderam em uníssono
sabemos
falai
nesse caso
não estais aqui
a fazer nada
ide para casa
que outras ocupações
vos aguardam
mais uma vez
solicitaram nova pregação
nasrudin perguntou
sabeis ou não
o que vos vou dizer
de novo combinados
responderam
uns sabem
outros não
bom assim sendo
disse nasrudin
os que sabem ensinam
os que não sabem
e de imediato
desceu do púlpito
***
um aldeão aproximou-se de nasrudin
com uma expressão de dor dizendo
tenho dores de morte no olho
desespero que faço
nasrudin colocou a mão no queixo
franziu o sobrolho e disse
há dias que o meu molar me doía
uma dor infernal
não me acalmei
enquanto o não arranquei
***
certo dia
perguntaram ao mulá
quando amanhece
cada um vai para seu lado
uns para cá
outros para lá
porque será
uns para a eira
outros para a fábrica
outros para a baía
outros vão à feira
e outros para a estação
respondeu
se todos fossem na mesma direcção
certamente
o mundo desequilibrava-se
tropeçava
e caía
***
a escola de nasrudin
estava em chamas
sentado debaixo de uma árvore via-a arder
passou um motorista da aldeia
professor a escola está em chamas
eu sei
e nada faz
não estou a fazer
o quê
desde que começou o incêndio
rezo para chover
***
nasrudin montava o seu jumento
levando pesado alforge nas suas costas
um amigo disse-lhe
porque é que não pões
como é normal
o alforge nos costados do jumento
nasrudin respondeu
endoideceste por um momento
já não basta que me transporte
ainda queres que o pobre animal
carregue com o alforge
***
é verdade mulá
que tem vinagre de quarenta anos
ouvi dizer
dá-me um pouco
nem pense
poderia o vinagre quarenta anos ter
se eu o andasse por aí a oferecer
***
um emir serviu lauto banquete
para o qual todos convidou
nasrudin assim que soube
não se fez esperar
com seu manto esfarrapado
correu para o palácio
onde o mestre de cerimónias
o sentou junto de mendigos
no pior lugar
afastado de grandes celebridades
e das melhores mordomias
muito tempo demoraria
até que fosse servido
melhor seria a casa retornar
vestir roupa a preceito
besuntar-se com água de cheiro
assim pensou
assim o fez
vestiu um manto resplandecente
e magnífico turbante colocou
chegado ao palácio
rufaram tambores e soaram trombetas
a condizer com tamanha personalidade
o camareiro real conduziu-o para lugar
na mesa principal ao lado do próprio emir
e de farta comida foi servido
nasrudin apanhava alimento com as mãos
esfregando-o no manto e no turbante
tais modos estranhou o emir
eminência senhor estou curioso
seus costumes são uma novidade para mim
enfim é justo e normal respondeu nasrudin
se o manto e o turbante me fizeram aqui chegar
não merecem assim perante tal arte e engenho
a sua parte
***
o mulá de cócoras
esgravatava no chão
em frente de sua casa
buscava algo
que não lograva encontrar
um vizinho questionou-o
que buscas tu
a minha chave
bom homem respondeu
os dois ajoelhados vasculham
terra poeira pedra
da porta à soleira
e metade do caminho percorrem
mas nada
cansado de tanto remexer
com todos os dedos a doer
e alguns dormentes
disse o prestável ajudante
mas que raio nasrudin
onde perdeste tu a chave
na minha casa
não sei onde a pus
então porque a procuramos
aqui na rua e não lá
não vês vizinho
aqui há mais luz
***
eis um estrondo
nos fundos da casa
que se passa
sai a mulher de nasrudin correndo
e dirige-se para o quarto
diz o mulá
que espanto mulher
estou aqui não estou lá
desnecessária preocupação
foi tão somente meu manto
que caiu ao chão
por amor de deus nasrudin
como fez tanto barulho assim
tem razão
eu estava dentro dele
***
com constância
atravessava nasrudin
a fronteira entre a pérsia
e a grécia
montado num jumento
ladeando a besta
dois cestos cheios de palha
voltava sem nada e a pé
sempre que ia
procurava contrabando
ora a guarda fiscal
ora a polícia do local
mas nada
o que é que transportas nasrudin
sou contrabandista respondia sorrindo
passaram anos nasrudin próspero
encontrou no egipto
um dos guardas da fronteira
agora aposentado
diz-me agora mulá
longe da grécia e da pérsia
sem que preso possas ser
que mercadoria transportavas
nunca conseguimos perceber
burros respondeu a rir
***
o pai de nasrudin aconselhava-o
levante-se cedo de manhã
deitar cedo e cedo erguer
dá saúde e faz crescer
porquê meu pai
é um bom hábito
e bom conselho
olhe certo dia
levantei-me eu ainda o sol não nascera
e para meu espanto
deparei-me com uma bolsa cheia de moedas
ouro do bom ouro de lei
mas meu pai
não a terão perdido na noite anterior
não meu filho não estava lá
eu bem reparei
então nem sempre será de tino ou siso
cedo erguer
porventura gratuito penhor
quem a bolsa perdeu e liso ficou
levantou-se mais cedo que o senhor
***
com fome de dois dias
entrou nasrudin num café
esperou a sua vez
e logo que servido
começou a comer com as mãos
passou um vizinho
que o questionou
porque come com as duas mãos mulá
porque três não tenho
***
porque é que nunca se casou nasrudin
toda a minha juventude
busquei mulher perfeita
no cairo encontrei linda moça
inteligente mas pouco delicada e descuidada
em bagdá mulher de alma generosa
mas não comungava de minhas motivações
conheci muitas mulheres
ou se excediam em virtude ou defeito
algumas eram meras ilusões
um dia conheci o ser imaculável
bela educada generosa e afável
tudo tínhamos em comum
e os dois parecíamos um
na vida e no leito
então porque não a desposou
porque ela estava à procura
do homem perfeito
***
nasrudin desejava ardentemente um burrico
que o auxiliasse nas suas árduas tarefas
sem meios para o adquirir
orou insistentemente para que alá o ajudasse
decorrido algum tempo
deparou-se com um homem montado num burro
com um outro pequeno burrico atrás
quando passava por nasrudin disse
vergonhoso
eu e o meu burro e burrico estamos esgotados
e o senhor completamente descansado
nesse lazer sem nada fazer
nisto ameaçou-o com a espada
obrigando-o a carregar o burrico às costas
transportando-o para a cidade mais próxima
caminharam por várias horas
sem que nasrudin exausto
por medo se manifestasse
chegados ao destino
descarregado o fardo
seguiu o homem sua carreira
o mulá ergueu os olhos ao céu e disse
que assim seja senhor
aprendi a lição com enorme suadeira
de hoje em diante mais específico e concreto serei
quando oração vos fizer
***
eu vejo no escuro
como os pássaros da noite
elogiava-se nasrudin
se assim é como afirmas
porque é que pelas ruas
por vezes te vejo
transportando uma lamparina
tento evitar
que outros em mim esbarrem
***
entrou nasrudin numa loja
para comprar umas calças
bem vistas as coisas
mudou de opinião
tendo escolhido um manto
pegou-o e saiu
da loja prazenteiramente
nasrudin
esqueceu-se de pagar
bradou o vendedor
espere não precisa gritar
não ficaram as calças
que custam o mesmo que o manto
mas também as não pagou
e deveria perguntou o mulá
onde já se viu pagar
o que não quero comprar
***
nasrudin tinha boas novas para o rei
depois de grande dificuldade e paciência
conseguiu a almejada audiência
o rei agradecido disse
escolha nasrudin a sua compensação
cinquenta chicotadas
surpreso e abismado ordenou
o cumprimento do peticionado
aplicadas vinte e cinco o mulá anunciou
alto lá tragam agora o meu parceiro
que receba metade da promessa
quem e porquê perguntou sua alteza
o camareiro real
permitiu ver-vos sob o juramento
de que com ele dividiria metade
da recompensa
***
um filósofo marcou
debate com nasrudin
hora determinada
não o encontrou em casa
furioso e num ímpeto
com um pedaço de carvão
escreveu no portão
imbecil
o mulá ao chegar
correu de imediato a casa do filósofo
mil desculpas pelo sucedido
tal não volta a acontecer
relembrei nosso compromisso
quando vosso nome vi escrito
no portal de meu quintal
***
houve uma festa
estavam presentes todos os discípulos do mulá
horas e horas a comer e beber
conversando sobre a origem do universo
o sentido da vida e o destino da humanidade
o sol estava prestes a nascer
e preparavam-se para voltar a casa
em cima da mesa um prato de doces
nasrudin obrigou-os a comer
um recusou dizendo aos outros
o mestre experimenta-nos
quer ter a certeza
de que controlamos nossos desejos
nasrudin ouviu
enganas-te
a melhor forma de controlar o desejo é satisfazê-lo
prefiro os doces nos vossos estômagos
do que no vosso pensamento
este deve ser usado para mais nobre intento
***
nasrudin entrou na casa de chá
olhou os presentes e exclamou
a lua é de maior utilidade que o sol
interrogaram-se os ouvintes
seria verdade tal asseveração
até que o questionaram
porquê mulá
ora necessitamos de mais luz
de noite que de dia
***
andando no mercado
viu o mulá vender pássaros
cada um por cem moedas
o meu pensou
maior que todos esses
será muito mais valioso
muito mais vale
eis que no dia seguinte
carregou ao mercado gorda galinha
animal de grande estimação
mas ninguém
instado ou não
lhe ofereceu mais de cinco moedas
o mulá furioso gritava
em tom indignado
isto é terrível
uma humilhação
ontem os vossos pássaros
metade do meu
valiam dez vezes mais
nisto alguém replicou
nasrudin
eram papagaios
pássaros que falam
porque falam o valem
e quanto mais falam mais valem
idiotas ignorantes asnos
valorizais os que falam
e esqueceis os pensamentos maravilhosos do meu
que não incomoda com conversa fiada
nem horrorosos discursos
***
nasrudin regalava-se sonhando
que alguém lhe estava dando
nove belas peças de ouro
pediu-lhe uma mais
para dez completar
nisto acordou
e olhando a mão vazia
sem que visse moeda alguma
fechou os olhos e disse
tudo bem
traz-me de novo o dinheiro
que eu aceito nove
***
nasrudin comprou um burro na feira
um amigo deu-lhe instruções
quanto à quantidade de ração do quadrúpede
demais pensou
vou habituá-lo a cada vez menos comer
diminuir a ração até que se acostume
quando já quase nada comia
morreu o jumento
que lamento que pena
com um pouco mais de tempo
viveria com certeza
sem alimento
***
a chuva rolava dos céus
farta e copiosa
quando o santo aga
corria para se abrigar
nasrudin vendo-o vociferou
como ousas fugir desse modo
da graça de deus
do líquido divino dos céus
tão devoto e cumpridor da lei
e não entendes que a chuva
é bênção sagrada
para a criação
aga não querendo perder
a reputação de santidade
afirmou não ter de tal modo pensado
caminhou contrafeito e vagarosamente
e lentamente se ensopou
como consequência do seu passo frouxo
com gravidade se constipou
cinco dias de cama e três de recuperação
foi o custo de tal façanha
e de à força tentar manter
imagem imaculada
algum tempo decorreu
que sentado à sua janela
viu nasrudin correndo
afugentado de chuva torrencial
com transtorno e espanto o interpelou
de que foges tu da bênção divina
como ousas renegar chuva abençoada
aga disse o mulá
tento não pisar
algo de tão sagrado
***
disse um homem
que a vontade de alá seja feita
sempre se faz
em todo o momento
em qualquer situação
respondeu nasrudin
como podes provar tal afirmação
simples e conveniente
se a vontade de alá se não fizesse sempre
seguramente que a minha
uma ou outra vez se faria
***
um homem herdou grande fortuna
mas num curto espaço de tempo
não lhe restou um único centavo
sem saber o que fazer
queixou-se a nasrudin
mulá a minha situação é terrível
não sei como sobreviver
restar-me-á pedir esmola
que faço
que passo dar
haverá remédio para tal maleita
nasrudin reflectiu e respondeu
não se apoquente
em breve esfumar-se-á sua aflição
já entusiasmado o pobre desgovernado
agitado e impaciente perguntou
como será meu bom mestre
voltarei a ter riqueza
as arcas cheias
e amigos à minha mesa
não não homem de deus
acostumar-te-ás à pobreza
***
nasrudin carregou o burrico com trigo
e transportou-o até ao moinho
enquanto aguardava a moagem
sacava pedaços dos outros sacos
e assim atestava os seus
ao vê-lo em furto flagrante
diz-lhe o moleiro
que é que estás tu a fazer nasrudin
com calma e indiferença respondeu
posso fazer o que bem me apetecer
sou louco
se assim é
põe do teu trigo nos sacos dos outros
sou apenas um louco
se fizesse o que propões
seria doido varrido
***
na praça da aldeia
recitava nasrudin poesia
concentrado e enlevado
ó minha amada
o meu interior está tão repleto de ti
que tudo o que se apresenta à minha visão
pareces ser tu
um jovem chistoso perguntou
e se um imbecil ou tolo
se apresentar à tua visão
nasrudin continuou
pareces ser tu
***
diz-nos mulá
qual a essência do destino
qual o seu significado
meras suposições
disse
em que sentido
não entendo a sua afirmação
cada um supõe
que tudo irá correr bem
mas não corre
a isto chamamos azar
que tudo irá correr mal
mas não corre
a isto chamamos sorte
supomos que algo irá acontecer
ou que tal não acontecerá
mas não sabemos de verdade
o que a realidade nos trará
enfim supomos que o futuro
imprevisível e desconhecido
quando ocorre ser surpreendido
no meio de tanta suposição
chama-lhe você destino
***
nasrudin especulava
as pessoas são como os animais
fazem o que eles fazem
mas pensam que são diferentes
não seja tolo
se você tivesse razão
os coelhos escreveriam livros
tal qual gente disse um religioso
escreveriam sim
escreveriam
se de quando em vez
olvidassem o desejo urgente
de comer cenouras
***
meia-noite
nasrudin passeava-se pelas ruas
sem direcção ou destino
um polícia questionou-o
que fazes tu a esta hora
é perigoso vaguear só
perdi o sono e procuro-o
respondeu
***
nasrudin estava empoleirado
numa escada
com o fim de reparar
uma parede de sua casa
caiu desamparado
e teve de ser transportado
para o leito gritando de dor
a mulher tratou-o
com os medicamentos viáveis
seguindo com rigor
as indicações do médico
mesmo assim
as melhoras
não se faziam sentir
alguns amigos
foram visitá-lo
um disse
tiveste muita sorte
com tal queda
poderias ter partido uma perna
deslocado a anca
ou mesmo ter morrido
e outro
realmente poderia ter
sido muito pior
outro ainda
tem paciência
tens de suportar
essa dor
há por aí muita gente
que sofre certamente
muito mais do que tu
nasrudin inundado
de sofrimento
gritou em desespero
saiam imediatamente
ponham-se na rua
bando de incompetentes
e de ignorantes
sabem lá
qual o meu tormento
mulher
aqui não entra mais ninguém
a menos que alguma vez
tenha também caído de uma escada
***
perguntaram ao mulá
pode um homem velho
digamos de cem anos
ter um filho
pode respondeu
desde que tenha a cumplicidade
de uma jovem
com uns vinte anos
***
o mulá vivia numa cidadezinha
junto de um rio
nas suas margens passeava
com um copo de leite na mão
olhou para o rio olhou para o copo
derramou o leite no seu leito
e com um galho
começou a mexer as águas
em contínuo movimento circular
passava o presidente da câmara
que depois de muito o observar
julgou estar nasrudin louco
mesmo assim interrogou-o
que fazes nasrudin
há horas sem parar
estou a fazer iogurte
enlouqueceste homem
mesmo que derrames cem mil litros
nunca farás iogurte
o rio é vasto e suas águas muitas
nasrudin olhou-o
com o seu jeito peculiar de indagar
dizendo
já pensou se fosse possível
***
quantos anos tem mulá
quarenta
mas há dois anos
quando lhe perguntei
você também tinha quarenta
tem razão
sustento sempre o que digo
nunca me contradigo
***
nasrudin passeava-se
quando uma montra
lhe chamou a atenção
era uma loja de fabrico de doces
e os bolos expostos chamativos
não conseguindo resistir à tentação
entrou e começou a comer tudo o que lhe agradava
o doceiro estranhando tal gula e postura
apresentou-lhe a conta
mas nasrudin que não tinha qualquer moeda
ignorou-o e continuou a deliciar-se com as guloseimas
despeitado o dono
do estabelecimento
muniu-se de um pau
começando a vergastar nasrudin
que mesmo assim não se continha
dizendo enquanto sofria arrochada
mas que cidade tão hospitaleira
que gente tão agradável
nada de igual vi até ao dia de hoje
aqui até nos coagem
a comer doces à paulada
***
mulá
de onde vem toda a sua sabedoria
falando muito
falando sempre
digo o que me vem à cabeça
quando a expressão dos ouvintes
é de espanto e respeito
eu sei
acertei
anoto então mentalmente
o que disse
nessa precisa ocasião
***
um rei velho e despótico
ignorante quase anedótico
afirmou peremptoriamente
se ninguém disser algo que me agrade
cortarei a cabeça de todos vós
nasrudin como sempre
fez menção de se adiantar
alteza nada façais
que eu algo farei que vos compraza
e que farás tu sandeu
eu eu consigo ensinar um burro
a ler e a escrever também
melhor que o faças
ou em vida ordenarei que te esfolem
irei honrar a minha palavra
mas tal tarefa ocupar-me-á dez anos
eu tos concedo
e dito isto retirou-se para os seus aposentos
de imediato os nobres da corte
envolveram nasrudin com questões
como é que podes ensinar um asno a ler
como o ensinarás a escrever
quem nem mãos tem
a tua loucura levar-te-á a penitente morte
calma tende calma ficai tranquilos
disse nasrudin
dormi sossegados que o mesmo eu farei
o rei tem setenta e cinco primaveras
e eu com oitenta conto
muito antes dos dez anos
outros factores e elementos
irão influir no aprendizado do jumento
***
nasrudin passeava com um discípulo
quando pela primeira vez viu
fantástica paisagem reflectida
na superfície das águas calmas
árvores de folhas multicolores
flores de pétalas rosadas
tons ocre da terra
salpicados pelo cinza das pedras
e pelo azul do céu
maravilha das maravilhas disse
mas se ao menos
se pelo menos continuou
se ao menos mestre
questionou o aluno
se ao menos não houvesse água no lago
disse
***
foi nasrudin ao banho turco
e pela sua aparência
deram-lhe os empregados
lenço velho e toalha desgastada
nasrudin nada disse
não esboçou qualquer reclamação
e deixou choruda gratificação
decorrida uma semana voltou
tratamento principesco
primoroso e cuidado
quando saiu
parca gorjeta deixou
mas senhor
questionaram os empregados
porquê tão pobre presente
por serviço tão esmerado
nasrudin respondeu
esta gorjeta é a da passada semana
e a dessa a de hoje
consideremo-nos pois pagos
***
um miúdo que transportava um ovo no bolso
encontrou o mulá na rua do mercado
mulá quer adivinhar
o quê
o que é que eu tenho no bolso esquerdo
como posso saber
posso adivinhar mas não sou bruxo
dá-me alguma indicação
claro mulá
tem a forma de ovo
branco e amarelo por dentro
casca por fora
e parece de verdade um ovo
já sei já sei por alá
meu tolo
respondeu entusiasmado o mulá
é um bolo
***
nasrudin transportava consigo
antídoto contra mordedura de serpente
estranhando-o um aldeão perguntou
para quê esse contraveneno
sabe como é perigoso respondeu
peguei num pau
e julguei tratar-se de uma cobra
por amor de alá
um pau não o picaria nem morderia
pois sim
e a serpente que agarrei
para me defender do galho
***
nasrudin aguardava com paciência
na sala de espera do médico
ia repetindo
espero estar muito doente
espero estar muito doente
os outros pacientes já inquietos
olhavam-no intrigados
nisto surgiu o clínico
nasrudin retornou
espero estar muito doente
o médico não se conteve
porquê qual o seu prazer nisso
doutor seria detestável
que alguém que tão mal se sinta
de nada padeça
***
nasrudin foi nomeado juiz
apresentado o primeiro processo
durante o julgamento
o queixoso foi tão persuasivo
que o fez exclamar
parece-me que tem razão
o velho escrivão
experiente e diligente
com respeito e consideração
cochichou ao mulá
excelência por favor contenha-se
ainda não ouvimos o arguido
ouvido este tão persuasivo quanto o outro
disse nasrudin
penso que a razão está do seu lado
o escrivão não se conteve
excelência pode lá a razão a ambos assistir
parece-me que você tem razão
respondeu o mulá
***
nasrudin iniciou a construção de uma casa
seus amigos
artistas pedreiros carpinteiros
arquitectos e engenheiros
todos o envolveram em conselhos
todos lhe diziam exactamente o que fazer
nasrudin feliz seguiu as instruções
terminada a construção
com tudo se parecia menos com casa
nada tinha a ver com uma habitação
curioso pensou nasrudin
fiz com exactidão
tudo o que cada um
me disse para fazer
***
nasrudin transportava dois cestos de uvas
algumas crianças pediam-lhe um cacho
deu um ou dois bagos a cada uma delas
como é avarento nasrudin disseram
claro que não respondeu
vocês são crianças tolas
provando um
já sabem como os outros são
***
um iraniano iletrado
pediu ao mulá que lhe lesse uma carta
nasrudin olhou-a
e de imediato a rejeitou
pede a outro que o faça
não sei persa
o iraniano insistiu
e nasrudin confirmou
não sei persa
como é possível
com tal manto e tal turbante
poderá o senhor ser um verdadeiro ignorante
não conseguir ler uma simples carta
nasrudin risonho
tirou turbante e manto
entregou-os ao iraniano dizendo
então sendeiro leia-a você mesmo
***
um filósofo caseiro
especulava no salão de chá
estranha esta humanidade
insatisfeita e volúvel
quando está frio reclama
reclama do verão e do inverno
enquanto todos aquiesciam
disse nasrudin absorto e abstraído
ninguém reclama da primavera
***
nasrudin levava por vezes
viajantes e amigos no seu bote
um professor universitário contratou-o
o mulá transportava-o quando lhe perguntou
poderá o tempo agravar
há possibilidade de temporal
nasrudin respondeu
não me pergunte nada sobre isto
perante tal resposta
volveu o erudito
nunca estudou gramática
não
então desperdiçou metade da sua vida
o mulá manteve-se em silêncio
mas dos céus escurecidos soaram trovões
elevaram-se as águas
com ondas a desfazerem-se em espuma
não tardou que a embarcação metesse água
aí o mulá dirigiu-se ao doutor
aprendeu a nadar
não respondeu o pedante
bom desperdiçou toda a sua vida
estamos prestes a afundar
***
estive no deserto disse o mulá
aí fiz correr para valer
uma tribo sanguinária
como é que conseguiu
perguntaram os presentes
simples corri e eles atrás de mim
respondeu nasrudin
***
nasrudin transportando um copo
dirigiu-se ao leiteiro da cidade
compadre serve-me
um litro de leite de vaca
estás louco nasrudin
neste copo não cabe
nem meio litro de leite
de vaca
volveu nasrudin
nesse caso eu
prescindo do leite de vaca
deita-me um litro de leite
de ovelha
***
no museu o guia ia explicando
este sarcófago tem 5000 anos
nasrudin corrigiu
cinco mil e três anos é o que tem
o guia ficou vexado
e os turistas impressionados
noutro local do museu
este magnífico vaso tem 2000 anos
dois mil e três anos
volveu nasrudin
por amor de alá
disse o guia
como é que pode ser tão preciso
não sei quem o senhor é
mas ninguém pode ser tão exacto
simples e óbvio respondeu o mulá
estive aqui há três anos
nessa altura você dizia
que o sarcófago tinha 5000 anos
e o vaso 2000
***
nasrudin quedava agonizante
pensava-se que iria morrer
sua esposa chorava
os discípulos estavam consternados
o mulá aparentava calma imperturbável
um dos presentes disse
como é possível que estejas tão calmo
tu que te aprestas para deixar o mundo
quando todos nós estamos atormentados
nasrudin sorriu e respondeu
estou certo que o anjo da morte
vendo vossas expressões e desespero
um de vós por erro levará
deixando-me por cá uns anos mais
***
nasrudin foi à consulta
doutor não me consigo lembrar de nada
nada mesmo
diga-me
em que momento isso começou
isso isso o quê
***
nasrudin viajou para ver o mar
as ondas desfaziam-se na areia
explodiam violentamente contra as rochas
desfazendo-se em alva espuma
o azul estendia-se ao céu do horizonte
e tamanha vastidão
dominava um nasrudin extasiado
à beira-mar de joelhos
e com as mãos em concha
provou a água que de imediato cuspiu
dizendo
lindo pois sim
como é que coisa com tais pretensões
de tamanhas proporções
não é digna de se beber
***
nasrudin foi ao barbeiro
que o barbeou desajeitadamente
a cada navalhada novo golpe
onde aplicava sucessivamente
pedaços de algodão para estancar o sangue
um dos lados do rosto estava cheio de algodão
aprontava-se para iniciar o outro lado
quando o mulá vendo-se ao espelho disse
obrigado irmão basta
decidi cultivar num dos lados algodão
e no outro cevada
***
um rei incrédulo
tendo ouvido narrar os poderes místicos
do afamado nasrudin ameaçou-o
enforcar-te-ei num ápice
se não me demonstrares teu misticismo
vejo coisas estranhas meu rei
aves douradas nos céus
demónios nas profundezas da terra
anjos cantando a glória de alá
como podes tu ver o que não vejo
ver através da terra
na lonjura do céu
medo majestade
medo vos juro
é tudo o que necessito
respondeu o mulá
***
a verdade não é absoluta
mas existem afirmações
que sabemos serem absolutamente falsas
como assim nasrudin
perguntou um ouvinte
deixa que te explique
no mercado na passada semana
ouvi que eu estaria morto
que teria finado
***
nasrudin em visita à índia
viu um homem vendendo
o que pensou serem doces
guloso comprou inúmeros chiles
logo que comeu o primeiro
lacrimejaram os seus olhos
e o rosto ficou avermelhado
por serem tão apimentados
no entanto não se susteve
continuando a comer
um transeunte estupefacto comentou
ouça amigo chiles só poucos se comem
pensava que eram doces
se já sabe o que são
qual o motivo porque não pára
veja como ardem e fazem doer
tossindo e soluçando
com lágrimas a escorrer
disse
não vou deitar o meu dinheiro a perder
***
estando nasrudin em casa
sentiu leves ruídos
e apercebeu-se da presença de um ladrão
que havia entrado furtivamente
escondeu-se num recanto
e o salteador foi carregando
tudo o que se lhe apresentava
pela frente e que tivesse algum valor
finda a pilhagem
nasrudin seguiu-o
até à sua casa
bateu à porta
e com educação disse
agradeço que tenhas transportado
todos os meus bens
fizeste com que libertassem espaço
na minha humilde residência
onde tanto eu quanto a minha família
vivíamos angustiados com tal aglomeração
e consequente falta de espaço
a tua casa é muito mais ampla e agradável
que a de nossa família
assim poderemos viver todos nesta tua residência
não sei como te hei-de agradecer
vou de imediato buscar minha mulher e meus filhos
para que também eles
possam usufruir da tua hospedagem
o larápio inquietou-se perante tal ideia
e balbuciando disse
leva tudo homem
carrega tudo de novo
e fica com a tua família
com todos os vossos problemas
com vossos dilemas
***
um religioso disse
o meu desapego é imenso
nunca penso em mim apenas nos outros
nos meus irmãos
nasrudin afirmou
e eu sou objectivo
posso ver-me como outra pessoa
assim sou capaz de pensar em mim
***
nasrudin desempregado
pensando e aconselhando-se
decidiu abrir uma farmácia
algo de grandioso a condizer
com o seu estatuto e intenção
apetrechou o estabelecimento que adquiriu
e no exterior pintou uma tabuleta
que de imediato tapou
tudo preparado distribuiu folhetos
inauguração amanhã às 9 horas
vieram as gentes da aldeia e das vizinhas
na hora designada destapou o mulá
a placa da fachada onde se lia
farmácia cósmica e galáctica de nasrudin
e logo abaixo inscrito
influenciada e harmonizada
com influências estelares e planetárias
fez óptimo negócio
mas ao anoitecer um erudito disse-lhe
nasrudin é duvidoso o que apregoa
não não é
quando o sol se levanta eu abro
quando se põe a farmácia fecho
***
alguém chegou esbaforido
nasrudin seu burrico desapareceu
graças a alá que eu não estava em cima dele
senão teria desaparecido também
***
numa tabuleta de sua casa podia ler-se
mulá nasrudin mestre nadador
salvamentos natação em todos os estilos
água doce água salgada
um interessado foi visitá-lo
mestre quero aperfeiçoar-me
ser um bom nadador
verdade que faço mergulho
nado em todas as águas
mas falta-me perfeição
nasrudin expôs o seu método
um primeiro estágio custa vinte moedas
um segundo com custo de dez
e o último de apenas cinco
certo estou satisfeito
respondeu o candidato
voltarei para o último
que é o que me convém
***
um amigo dirigiu-se a nasrudin
pedindo-lhe o burro emprestado
desculpe irmão já o emprestei
nisto do estábulo chegou o zurrar do burrito
mulá ouço o teu burrico
nasrudin fechou-lhe a porta na cara dizendo
ora se um homem prefere acreditar
na palavra de um burro
em detrimento da minha
não merece empréstimo de coisa alguma
***
nasrudin embrulhou um ovo num lenço
e na praça do vilarejo juntou o povo
hoje vou pôr-vos à prova
que todos concorram
quem descobrir o que está dentro do lenço
recebe o ovo que está lá dentro
o povinho começou
por afirmar a sua ignorância
ninguém se sentia capacitado
para presságios e adivinhações
volveu nasrudin em tom de auxílio
o que está no lenço é amarelo no centro
tal como a gema
o centro envolvido por liquido de cor clara
ambos dentro de frágil casca
tem como símbolo a fertilidade
evoca pássaros e seus ninhos
alguém sabe perguntou
ninguém havia
que num ovo não pensasse
mas resposta óbvia
um místico não o faria
talvez o sol
talvez uma energia
um objecto mágico
quem o diria
nasrudin questionou-os uma vez mais
ninguém falou
***
alguém disse ao mulá
vou à cidade precisa de algo
preciso
de quê nasrudin
de um corte de cabelo
***
a mulher de nasrudin
acusou-o em tribunal de a ter agredido
citado para comparecer
em audiência de julgamento
preparou mentalmente as respostas
se o juiz me perguntar
se lhe bati
afirmarei peremptoriamente que não
se me perguntar se não lhe bati
responderei sem hesitações que sim
tão fácil quanto isto
na audiência o magistrado questiona-o
nasrudin
o senhor deixou
de na sua mulher bater
nasrudin não esperava a questão
nervoso confuso e surpreso
sem saber o que responder
respondeu
não-sim
***
nasrudin entrou na mesquita
com camisa demasiado curta
o fiel que o seguia
decidiu puxá-la
ajeitando o desajeitado
nasrudin puxou de seguida
a do homem que se lhe seguia
este questionou-o
que faz homem
não me pergunte
pergunte ao que me precede
não fui eu que comecei
foi ele que começou
***
nasrudin e um amigo
decidiram partilhar um copo de leite
beba primeiro mulá
tenho um pequeno pedaço de açúcar
que apenas dá para um de nós
então coloque-o no copo
beberei tão somente a minha metade
disse nasrudin
nem pensar
este açúcar só adoçará metade
nasrudin foi ao balcão
voltou com um punhado de sal
meu amigo sou então o primeiro a beber
mas quero o meu leite com sal
***
um discípulo
perguntou a nasrudin
o que é a verdade
em que consiste
qual a sua essência
algo de que nunca falei
nem falarei respondeu
***
nasrudin viu um vulto branco no jardim
sorrateiramente empunhou o seu arco
atingindo-o com flecha certeira
saiu para ver
e voltou lívido
a mulher questionou-o
que se passou
foi por pouco
imagine que acertei bem no coração
da camisa branca que estava a secar
se eu estivesse nela já teria morrido
***
um religioso erudito estava muito doente
tendo ouvido falar do misticismo do mulá
decidiu aconselhar-se
nasrudin ensine-me uma oração
que me auxilie a entrar no céu disse
certo assim o farei
diga
meu deus ajude-me
satanás ajude-me
indignado com tal blasfémia
exclamou o paciente
está completamente louco nasrudin
claro que não
um homem na sua posição
com duas alternativas viáveis
deve por todos os meios
fazer os possíveis e os impossíveis
para que qualquer uma delas o proteja
***
nasrudin bateu à porta de um vizinho
amigo estou pedindo ajuda
para um desgraçado
um bom homem
que não consegue pagar dívida antiga
nobre atitude disse o vizinho
e deu-lhe uma moeda de prata
já agora mulá diga-me
quem é esse homem
eu mesmo disse
enquanto se afastava
ainda não estava decorrido um mês
o mulá bateu à porta do mesmo vizinho
este precavido disse
novamente por causa de dívida presumo
tem razão
suponho que seja você o devedor
desta vez não
prezo em ouvi-lo e à acção
entregou uma moeda
que nasrudin guardou
antes de ir diga-me
o que neste caso o fez pedir
sou eu o credor
respondeu
***
nasrudin corria ofegante
e no caminho encontrou um amigo
peço-te um favor
claro mulá o que é
vai até àquele poço
caiu nele um homem
vou procurar uma corda
diz-lhe que não vá embora
até que eu volte
***
nasrudin passeava
garotos atiravam-lhe pedras
muito o escarnecendo
não façam isso parem
vou-lhes contar coisa que vos interessa
tudo bem mulá
mas não se ponha com histórias e filosofias
não o emir oferece hoje
um banquete para todos
os miúdos correram para o palácio
nasrudin coçou a cabeça
e começou a imaginar
magnífica e lauta refeição
levantou o manto ligeiramente
correndo atrás deles
pensando
será melhor ir para ver
bem pode ser verdade
***
nasrudin tinha um amigo
que caiu de um prédio alto
sonhou estar no céu
onde o encontrou
e perguntou-lhe
como foi amigo
ai nasrudin
uma coisa assim
o impacto foi horrível
mas a viagem
essa foi boa demais
***
nasrudin quis aprender música
procurou um professor e questionou-o
quais os seus honorários
três moedas no primeiro mês
a partir daí uma moeda por mês
convém-me respondeu
começarei no segundo
***
o túmulo do mulá
tinha uma porta enorme
com barras e cadeados de protecção
ninguém deveria entrar sem ser pela porta
a última piada de nasrudin foi
o meu túmulo não deve ter paredes à volta
na lápide inscrito o ano de 386
que traduzido por letras
técnica usual em túmulos sufis
expressa a palavra xuf
que significa fazer
com que uma pessoa veja
talvez por isso
durante séculos se considerou
que a poeira da sepultura
era cura poderosa nas maleitas dos olhos
***
quando falecer
como quer ser sepultado mulá
de cabeça para baixo
neste mundo andamos sobre os pés
no próximo quero andar ao contrário
***
nasrudin bateu no portão do castelo
o guarda abriu-o
e o mulá pediu
diga a vossa senhoria
que peço dinheiro para os pobres
o guarda entrou
e volvidos alguns minutos
voltou dizendo
lastimo o senhor não está
diga-lhe então disse nasrudin
que lhe ofereço este conselho
ainda que nada me tenha dado
quando seu amo sair
não deixe o rosto na janela
não vá alguém roubá-lo
***
um mendigo pediu esmola ao mulá
este questionou-o
gosta de estar no café e de fumar
sim
gosta de ir aos banhos turcos
de beber de comer bem
e de se divertir
gosto de tudo o que é agradável
nasrudin deu-lhe uma moeda de ouro
uns passos à frente
estava um outro mendigo
que tendo ouvido o diálogo
pediu também esmola a nasrudin
este interpelou-o
gosta de estar no café e de fumar
não
gosta de ir aos banhos turcos
de beber de comer bem e de se divertir
não
vivo na simplicidade
na humildade e a rezar
o mulá deu-lhe uma moeda de cobre
porquê questionou o mendigo
a mim cumpridor da lei
pequena esmola me dás
enquanto que ao devasso
com ouro o honraste
nasrudin pensou e disse
atenta que as necessidades dele
são bem superiores às tuas
***
certo dia
filosofava nasrudin
consigo mesmo em voz alta
vida e morte
quem sabe o que serão
a mulher de nasrudin
encontrava-se num aposento adjacente
e não conseguiu deixar de sorrir exclamando
homens meu deus homens
todos parecidos quase iguais
sem a menor réstia de espírito prático
qualquer um tem consciência
de que quando os membros do corpo
ficam frios e rijos é sinal
que o ser humano morreu
nasrudin ficou boquiaberto
como era prática a sua esposa
os tempos passaram e num dia de inverno
enquanto ia de um povoado para outro
tendo de percorrer algumas penosas milhas
num caminho atapetado de neve
sentiu as mãos e os pés
ficarem completamente gelados
e os membros enrijecidos
rememorando as sábias palavras
da companheira pensou
estou morto e estando morto
não posso caminhar
os mortos não caminham
nem se mexem
ficam deitados e imóveis
de imediato deitou-se estático
em cima da neve ficando cada vez mais gelado
mas sem que se mexesse como um morto
decorridas algumas horas
passaram no caminho dois viajantes
que o encontraram estendido na neve
depois de o observarem
começaram a discutir
se estaria vivo ou morto
nasrudin quis dizer-lhes que estava morto
mas os mortos nunca falam
assim se mantendo calado e imóvel
os viajantes já plenamente convencidos
do decesso de nasrudin
levantaram-no e lá o foram carregando a muito custo
para o cemitério mais próximo
até que encontraram uma encruzilhada
sem que acordassem no caminho a seguir
um queria ir pelo da direita
enquanto que o outro pelo da esquerda
e assim se quedaram em acesa discussão
nasrudin exasperava e não se conteve
ouçam meus bons amigos
a estrada pela qual
me deveis conduzir ao cemitério
é a da esquerda
certo e sabido que os mortos não falam
por isso prometo-vos solenemente
que só agora o faço e não o tornarei a repetir
***
a mulher de nasrudin
jazia agonizante no seu leito
este tentava consolá-la
minimizando o seu sofrimento
as suas palavras
eram dóceis e de esperança
e os seus olhos brilhantes de lágrimas
sorriam enganadoramente
nisto a companheira
disse-lhe numa voz débil
estou convicta de que esta
será a minha última noite contigo
a minha partida está eminente
já não verei a aurora
como é que vais aceitar a minha morte
vou dar em maluco mulher
respondeu nasrudin
apesar do sofrimento atroz
a dedicada e fiel esposa não deixou
de esboçar um sorriso
dizendo
és um bom malandro
não me enganas nasrudin
conheço-te como às minhas mãos
não passará um mês sobre a minha morte
que não estejas casado de novo
que dizes mulher
exasperou-se o pobre nasrudin
enlouquecerei mas não tanto assim
***
05/2021
José Maria Alves
https://homeoesp.blogspot.com/
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