SHANKARACHARYA
VIVEKA-CHUDA-MANI
A JÓIA SUPREMA DO DISCERNIMENTO I
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INTRODUÇÃO
A Jóia Suprema do Discernimento é um dos textos clássicos mais importantes do Vedanta. O Vedanta significa o último significado ou investigação dos Vedas.
Procura o caminho para Deus através do conhecimento.
Podemos dizer, que em essência, Shankaracharya admite a existência de Deus como única realidade que tudo envolve e penetra.
Assim, se considerarmos a alma individual, temos de encarar o facto de que esta não é mais nem menos do que a alma universal.
Shankaracharya é um autor de leitura obrigatória para todos os que intentam mergulhar na doutrina da não-dualidade, no Advaita Vedanta ou Vedanta não-dualista. Sabendo que não criou nenhuma religião, tendo antes sido um renovador do hinduísmo, conduzindo-o à sua pureza original, já que na sua época tinha sofrido muitas modificações por influência do budismo e do jainismo. Deste modo enfatizou a importância dos Vedas.
Buda, Shankaracharya, Ramakrishna, Ramana Maharshi e Krishnamurti são sábios excelentes na miríade de filósofos e religiosos indianos.
Shankaracharya é mais um reformador religioso do que propriamente um filósofo. A sua obra condensa um profundo conhecimento do saber bramânico ortodoxo da época, mas também do Budismo Mahayana. Chamaram-lhe Bhagavatpada Acharya, que significa "o Mestre aos pés do Senhor".
Em todos eles, no entanto, há uma pergunta que não tem resposta: Porque é que Deus criou o mundo? Isto é praticamente o mesmo do que perguntar porque existe alguma coisa em vez de nada.
Sabemos muito pouco sobre a vida de Shankaracharya.
As narrações sobre a sua vida estão repletas de lendas, milagres e acontecimentos fantásticos, como aliás ocorre com a maioria dos grandes reformadores religiosos ou que acabaram por ser identificados com uma qualquer divindade. Não nos alongaremos nesta parte.
Filósofo, santo e poeta, não se sabendo ao certo onde e quando nasceu. Alguns remontam a sua vida ao século II e outros indicam datas que se estendem até ao século X d.C.
Os estudiosos ocidentais têm uma marcante tendência em referir o século VIII para a sua existência. Podemos referir que alguns citam como data de nascimento o ano de 788 e o de falecimento em 820 d.C. Outros datam o seu ano de nascimento no século VII.
Filho de brâmanes manifestou as suas capacidades intelectuais muito cedo, decorando e interpretando as escrituras, tendo escrito comentários sobre muitas delas, nomeadamente os Brahma Sutras, os Upanishads e o Bhagavad Guitá. Escreveu ainda várias obras filosóficas e hinos religiosos.
Com cerca de dez anos, Shankaracharya já vivia a angústia existencial. Os ensinamentos das escolas provocavam-lhe uma sensação de vazio. Na época em que viveu, a Índia passava por uma fase materialista e de grande decadência espiritual.
Ainda muito novo assistiu ao falecimento de seu pai, o que fez com que se debruçasse sobre o fenómeno da morte.
Nessa altura terá escrito o poema intitulado “O Fim da Ilusão”:
Quem é a esposa? Quem é o filho?
Como são estranhos os caminhos do mundo.
Quem és tu? De onde vieste?
Como é vasta a ignorância.
Medita sobre a vida e sobre a morte
e adora o Senhor.
Vê a insensatez do Homem:
Na infância ocupado com os seus brinquedos,
na juventude fascinado pelo amor,
na maturidade repleto de preocupações,
e sempre descuidado com o Senhor.
O tempo voa,
as estações passam,
a vida escoa-se,
mas a brisa da esperança
sopra continuamente no seu coração.
O nascimento traz a morte,
a morte traz o renascimento:
Mal que não necessita de testemunho.
Onde está a tua felicidade, homem?
Esta vida agita-se na balança,
qual gota de orvalho numa folha de lótus.
O sábio pode mostrar-nos,
num instante,
como atravessar este oceano de mutações.
Quando o corpo se cobre de rugas,
quando o cabelo embranquece,
quando as gengivas perdem os dentes,
e o cajado do idoso
cambaleia sob o seu peso como uma cana fina,
a taça do seu desejo ainda está cheia.
O teu filho pode trazer-te sofrimento,
a tua riqueza não te garante o paraíso:
Não te vanglories da tua riqueza,
não te vanglories da tua família,
nem te vanglories da tua juventude.
Tudo passa, tudo é mudável.
Se o souberes serás livre.
Entra com alegria na casa do Senhor.
Não busques a paz nem a discórdia
com amigos ou parentes.
Ó bem-amado,
se queres alcançar a liberdade,
sê igual em tudo.
Depois da morte do pai, Shankaracharya, que já compreendera a fragilidade do mundo material, tornou-se um monge e encontrou um mestre, Gaudapada, que havia atingido a libertação e a quem pediu para ser seu discípulo. Mas Gaudapada estava absorto na união com Brahman e enviou a criança a um dos seus mais conceituados discípulos: Govindapada.
Instruído por este, Shankaracharya atingiu em pouco tempo a realização. Este episódio lembra-nos o de Ramana Maharshi, que obteve a realização por si mesmo – ao contrário do que aconteceu com Shankaracharya -, em cerca de meia hora, sendo ainda muito jovem.
Ainda com doze anos já tinha começado a aceitar discípulos.
Foi por várias vezes acusado de ser um budista dissimulado, pela grande semelhança da sua doutrina com a de Buda. O que nos parece é que Shankaracharya adaptou muitos ensinamentos da doutrina budista à sua própria doutrinação.
No entanto, a incriminação de ser um budista dissimulado é refutada com a objecção da negação do “ser” dos budistas, acreditando que o Brahman não manifesto se exterioriza efectivamente como Ishwara, o ser sublime, completo e perfeito e que é adorado sob vários nomes.
Em bom rigor, e segundo alguns estudiosos da filosofia védica os ensinamentos de Shankaracharya representam um compromisso entre o deísmo e a descrença em Deus. Com o aparecimento do ateísmo na filosofia budista, na Índia, restabelecer o conceito teísta da literatura védica tornara-se muito difícil. Shankaracharya teve de se acomodar à época, e se as suas doutrinas parecem ser búdicas, já a sua autoridade é védica.
Combateu o sistema de castas, cerimónias e rituais. As castas compreendiam quatro classes: a dos Brâmanes, a mais elevada, dedicada aos estudos e à espiritualidade; a dos Xátrias, governantes, guerreiros e administradores; a dos Vaixiás, classe média, comerciantes, criadores de gado, agricultores proprietários de terras; e a dos Sudras ou simples trabalhadores. Os sudras eram criaturas miseráveis, privadas de tudo, servos e escravos das restantes castas, estando inibidos de assistir à leitura dos Vedas. O seu toque físico contagiava as outras castas. Quando um sudra não cumpria as funções que lhe eram impostas baixava à categoria de pária, sendo a partir daí banido e desprezado de todo o contacto, tal ser desprezível e hediondo.
Numa das suas histórias de vida mais conhecidas, em certa manhã, dirigindo-se ao Ganges para tomar o banho ritual, encontrou um “intocável” que acompanhado de quatro cães lhe bloqueava o caminho que seguia. Shankaracharya não conseguiu esquecer a sua proeminência social e ordenou ao homem que se afastasse do seu caminho.
O “intocável” disse-lhe:
- Se há um só Deus, como podem existir tantas diferenças e castas de homens?
Shankaracharya caindo em si, ajoelhou-se perante o homem. Afinal o Deus de todas as criaturas também estava naquela criatura, que a sociedade hindu havia votado ao mais miserável desprezo.
Shankaracharya faleceu com apenas 32 anos, depois de ter viajado pela Índia difundindo os seus ensinamentos.
Durante tão curto período de vida escreveu e comentou inúmeras obras religiosas, poemas, fundou mosteiros e criou ordens monásticas.
Shankaracharya afirmava a realidade de Brahman e a inexistência do Universo, mas foi mal compreendido através dos tempos, já que pretendia tão só demonstrar, que quando vemos os objectos no prisma da multiplicidade são irreais (os fenómenos são ilusórios quando considerados como estando separados do “Ser”) e quando contemplados na perspectiva da unidade (Brahman) são reais. Os fenómenos são reais enquanto “Ser”.
A realidade é um todo. A matéria é um mar de energia e luz em movimento que repousa no “Ser”.
Este não tem forma nem limites, está para além do tempo, do espaço e da causalidade, pelo que é omnipresente e infinito.
Em consequência só há Um.
Observemos o oceano ou um lago.
O vento origina vagas, que provocam a ondulação. Cada onda parece ter uma existência própria com todas as vicissitudes que lhe são inerentes: nascimento, crescimento, morte.
Objectivamente não é mais do que oceano. Oceano com forma específica naquele tempo e lugar, mas oceano e não onda com existência autonomizável.
O Absoluto é o oceano.
Eu, vós, os animais, as árvores, os rios, a Terra, as galáxias, somos ondas que se diferenciam daquele, pelo tempo, pelo espaço e pela causalidade.
É a mesma ignorância, que ao crepúsculo nos faz confundir a corda com a serpente, que inviabiliza a percepção da unidade.
A Jóia Suprema do Discernimento (Viveka-chuda-mani) é uma das suas obras mais conhecidas, que foi escrita em verso.
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Shankaracharya e Ramana Maharshi
Ramana Maharshi, durante os primeiros anos em Virupaksha, quando ainda guardava silêncio, redigiu em várias ocasiões, instruções para um seu discípulo, Gambiram Seshayyar. Depois da morte deste, as mencionadas instruções foram ordenadas e publicadas com o título de “Auto-investigação”.
Do mesmo modo e na mesma época, as suas respostas dadas a Sivaprakasam Pillai foram ampliadas e compostas em forma de livro sob o título de “Quem sou Eu?”.
Estes dois livros são os únicos escritos em prosa por Sri Bhagavan Ramana Maharshi.
Em conjunto com a “Jóia Suprema do Discernimento”, a sua leitura torna-se obrigatória para todos os que querem conhecer com algum rigor o Advaita Vedanta e o método para atingir a libertação.
Para Ramana a abordagem religiosa através do amor e da adoração de um Deus pessoal existe, assim como existe a abordagem através do serviço. No entanto, o reconhecimento do Ser puro como o Si de cada um e o Si do universo e de todos os seres é a verdade suprema e última, transcendendo todas as outras abordagens.
Esta é a doutrina do Advaita. O Advaita foi ensinado por sábios antigos e em especial, obviamente, por Shankaracharya. É a abordagem mais simples e ao mesmo tempo a mais profunda, sendo a verdade última.
Advaita significa não-dualidade, em que apenas existe o Absoluto. O cosmos, na íntegra, existe dentro do Absoluto e não tem realidade intrínseca.
Isto significa que o Absoluto é o Si do cosmos e de todos os seres. Assim sendo, ao procurar-se o Si através da constante investigação “Quem sou eu?”, torna-se possível ao homem compreender a sua identidade com o Ser universal.
Ramana ensinava o mais puro Advaita.
A doutrina do Si único não nos priva de um Deus pessoal, pois enquanto perdurar a realidade do ego que reza, durará a realidade do Deus para quem se reza. Enquanto o homem aceitar o seu ego como uma realidade, o mundo externo e Deus também serão realidades.
Este é o nível de uma religião dualista (dvaita) e de um Deus pessoal. É verdadeiro, porém não é a Verdade última.
É interessante anotar, que Maharshi para além dos dois livros mencionados escreveu alguns poemas e fez algumas traduções, entre as quais a deste livro de Shankaracharya, numa tradução livre, do sânscrito para o tamil, em prosa, que correspondia à doutrina que Ramana ensinava e que era o mais puro Advaita. No entanto, não tinha sido o pensamento de Shankaracharya a orientar Bhagavan na senda da liberdade. Ramana obteve o estado de libertação antes de conhecer os escritos de Shankaracharya, não obstante viesse a reconhecer no representante do Vedanta não-dualista a verdade que havia experienciado.
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A JÓIA SUPREMA DO DISCERNIMENTO
(Viveka-Chuda-Mani)
Prostro-me diante de Govinda,
o Mestre perfeito, eternamente absorto
no mais elevado estado de bem-aventurança.
A sua verdadeira natureza não pode ser conhecida nem pelos sentidos nem pela mente.
É revelada através do conhecimento das escrituras.
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O CAMINHO
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É difícil para qualquer criatura viva nascer em forma humana.
A energia do corpo e a vontade são ainda mais difíceis de obter;
a pureza, mais difícil ainda;
mais difícil do que esses bens é o desejo de viver uma vida espiritual;
e o mais difícil de tudo é a compreensão das escrituras.
Quanto ao discernimento entre o Atman* e o não-Atman, à percepção directa do próprio Atman,
à união contínua com Brahman e à libertação final,
tais realidades só podem ser obtidas através do merecimento de milhões de encarnações bem-vividas.
- * Atman é uma palavra em sânscrito que significa alma.
No hinduísmo é o mais elevado princípio, sem forma e indivisível. Expressa a essência divina ou Brahman.
No Vedanta, Atman representa a alma, o “Eu”. Atman é nesta perspectiva, o Absoluto. É Brahman, estando para além do mundo fenomenal.
Atman (como Brahman) é tudo o que existe, nada havendo para além dele.
Atman é Brahman.
No budismo o Atman é negado pelo conceito de Anatman. No entanto, é algumas vezes referido como um obstáculo mental, ignorância da mente. Tanto o budismo como o jainismo defendem doutrinas similares às de Shankaracharya. -
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Só pela graça de Deus podemos obter três benefícios raros: o nascimento humano,
a volição da libertação
e o discipulado junto de um mestre iluminado.
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Há aqueles que de algum modo conseguem obter esse raro nascimento humano
junto com a energia corporal e mental e com a compreensão das escrituras,
e não obstante estão de tal forma iludidos que não lutam pela libertação.
Esses homens são verdadeiros suicidas.
Apegam-se ao que é irreal e arruínam-se a si mesmos.
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Haverá maior tolo do que o homem,
que obteve o raro nascimento humano
junto com a energia corporal e mental,
e ainda assim não consegue,
devido à ilusão, realizar o seu bem supremo?
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Os homens podem recitar as escrituras,
oferecer sacrifícios aos deuses,
podem realizar rituais e adorar as divindades,
mas enquanto não acordarem para o conhecimento da sua identidade com o Atman,
jamais atingirão a libertação.
Nem mesmo ao fim de muitos séculos.
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As escrituras declaram que a imortalidade não pode ser conquistada através do trabalho,
nem da linhagem, nem da riqueza, mas pela renúncia.
Fica claro que o trabalho
não nos pode levar à libertação.
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Que o sábio renuncie à busca do prazer nas coisas exteriores e lute arduamente pela libertação.
Que procure um nobre mestre de alma elevada e se absorva na verdade que lhe é ensinada.
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Pela devoção no discernimento recto
ascenderá à suprema união com Brahman*.
Salvará a sua alma pelo poder do Atman,
que repousa imersa nos oceanos do mundo.
- * Brahman é o Absoluto, não devendo ser confundido com Brahma. O primeiro estágio da manifestação de Brahman é Ishwara, o Deus Pessoal. Ishwara é então concebido sob o tríplice aspecto de Brahma o Criador, Vishnu o Protector e Shiva o Destruidor. -
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Que o sábio, que cresceu tranquilo e que pratica a contemplação do Atman,
se desenlace de todas as actividades do mundo
e se esforce por cortar os vínculos com os objectos.
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A recta acção ajuda a purificar o coração,
mas não outorga a percepção directa da Realidade.
A Realidade é atingida por meio do discernimento,
mas não o é, nem por milhões de actos.
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O discernimento correcto revela-nos a verdadeira natureza de uma corda
e remove o medo da crença ilusória de que seja uma serpente.
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O conhecimento da Realidade só pode ser obtido através da meditação sobre a doutrina correcta,
e não por meio de abluções sagradas, de esmolas ou da prática de centenas de exercícios respiratórios.
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O sucesso para alcançar a meta depende sobretudo das qualificações daquele que busca.
Tempo, lugar adequado e outras circunstâncias favoráveis,
constituem outros tantos auxílios para que se atinja o objectivo.
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Que quem deseja conhecer o Atman, que é a Realidade, pratique o discernimento.
Antes deve aproximar-se de um mestre que seja um perfeito conhecedor de Brahman,
e cuja compaixão seja tão vasta como o próprio oceano.
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O DISCÍPULO
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O homem deve ser inteligente e sábio,
com um imenso poder de compreensão,
capaz de superar as dúvidas pelo exercício da razão.
Quem possuir essas qualidades
estará habilitado a obter o conhecimento do Atman.
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Só pode ser acreditado para buscar Brahman
o homem dotado de discernimento,
cuja mente esteja apartada de todos os prazeres,
que possui tranquilidade e aspira à libertação.
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Os sábios falaram de quatro qualidades que possibilitam alcançar a meta.
Quando essas qualidades estiverem presentes, a devoção à Realidade tornar-se-á completa.
Se estiverem ausentes, fracassará.
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A primeira é a discriminação entre o eterno e o não-eterno.
A segunda é a renúncia ao gozo dos frutos da acção, nesta e na outra vida.
Da terceira procedem os seis tesouros da virtude, a começar pela tranquilidade.
E da quarta o desejo inabalável de libertação.
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Brahman é real e o universo é irreal.
A firme asseveração desta verdade denomina-se discernimento entre o eterno e o não-eterno.
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A renúncia é o abandono de todos os prazeres dos sentidos, o abandono de todos os objectos do prazer temporário,
o abandono do desejo de um corpo físico, e do corpo-espírito de um deus.
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Afastar a mente de todas as coisas objectivas
mediante um contínuo discernimento da sua imperfeição,
dirigindo-a para Brahman, sua meta, é tranquilidade.
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Separar-se dos dois tipos de órgãos sensoriais, os da percepção e os da acção, das coisas objectivas,
deixando-os repousar nos seus respectivos centros, é autocontrolo.
O equilíbrio mental consiste em não permitir que a mente reaja aos estímulos externos.
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Suportar todos os tipos de aflição
sem revolta, sem queixa ou lamento;
a isto chamamos paciência.
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Uma firme convicção baseada na compreensão intelectual,
de que os ensinamentos das escrituras e de um mestre são verdadeiros,
é aquilo que os sábios chamam fé,
que conduz à realização da Realidade.
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Concentrar o intelecto repetidamente em Brahman e mantendo-o nele firmado é o que se chama dependência.
Isto não significa aquietar a mente, como a um bebé, com pensamentos ociosos.
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O anseio de libertação é a determinação que nos livra dos grilhões forjados pela ignorância,
começando pelo sentimento do ego até ao próprio corpo físico,
mediante a compreensão da nossa verdadeira natureza.
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Apesar desse anseio de libertação estar presente num grau leve e moderado,
intensificar-se-á através das virtudes do mestre e da prática da renúncia,
e de virtudes como a tranquilidade, dando os seus frutos.
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Quando a renúncia e o anseio de libertação se encontram presentes num grau intenso,
a prática da tranquilidade e das demais virtudes frutificará e conduzirá ao objectivo.
***
Quando a renúncia e o anseio de libertação forem débeis,
a tranquilidade e as demais virtudes serão mera aparência,
tal como uma miragem no deserto.
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Entre os meios de libertação, a devoção é a suprema.
Devoção é quando nos empenhamos em conhecer a nossa verdadeira natureza.
***
Por outras palavras, a devoção pode ser definida como a busca da realidade do nosso Atman.
Aquele que busca a realidade do Atman, que possui as qualidades mencionadas,
deve procurar um mestre iluminado capaz de lhe ensinar o caminho da libertação
em relação a todos os tipos de escravidão.
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O MESTRE (GURU)
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O Mestre é um homem profundamente versado nas escrituras,
puro, liberto da luxúria, perfeito conhecedor de Brahman.
Mantém-se continuamente apoiado em Brahman, é calmo como a chama cujo combustível vai sendo consumido,
um oceano de amor que não conhece causas subsequentes,
amigo de todos aqueles que humildemente se deixam guiar pela sua doutrina.
***
O homem que busca deve aproximar-se do mestre com reverente devoção.
Depois de o comprazer pela sua humildade, amor e serviço,
questionará tudo o que pode ser conhecido relativamente ao Atman.
***
Ó Mestre, afeiçoado a todos os devotos, diante de vós me inclino.
Ó ilimitada compaixão, eu caí no mar do mundo.
Salvai-me com esses olhos inalteráveis,
que derramam uma graça perpétua, como néctar.
***
Ardo no incêndio da floresta do mundo; incêndio que ninguém pode apagar.
As más acções do passado impelem-me daqui para ali como vastos vendavais.
Busquei refúgio em vós.
Salvai-me da morte.
Não conheço outro abrigo.
***
Existem almas puras que alcançaram a paz e a grandeza.
Trazem o bem à humanidade, como o ressurgir da primavera.
Também elas atravessaram o terrível oceano deste mundo.
Agora, sem nenhum motivo egoísta, socorrem os outros na travessia.
***
É próprio dessas grandes almas trabalhar voluntariamente para aliviar as tribulações dos seus semelhantes,
tal como a Lua refresca espontaneamente a terra crestada pelos ardentes raios de Sol.
***
A nau dos vossos lábios mergulhou na bem-aventurança de Brahman e impregnou-se da sua doçura.
Derramai sobre mim, como gotas de néctar, as palavras de Brahman.
Palavras que purificam, acalmam e são agradáveis ao ouvido.
Senhor, o calor ardente desta vida mundana consome-me
como as labaredas de um grande incêndio na floresta.
Bem-aventurado é aquele sobre quem os vossos olhos repousam um instante que seja.
***
Como hei-de eu atravessar o oceano deste mundo?
Qual há-de ser a minha meta? Que caminho hei-de seguir?
Não conheço nenhum. Sede bondoso, Senhor. Salvai-me.
Dizei-me como pôr fim às misérias desta vida terrena.
Não me recuseis nada.
***
Queimado pelas labaredas ardentes da floresta do mundo,
são essas as palavras que o discípulo pronuncia.
A grande alma olha para o discípulo, que assim busca refúgio e os seus olhos
estão húmidos de lágrimas de misericórdia.
Imediatamente ele liberta-o dos seus temores.
***
O discípulo, que buscou a sua protecção, é alguém que almeja a libertação,
que cumpriu rigorosamente os seus deveres,
cujo coração se tornou tranquilo e que alcançou a serenidade da mente.
Com compaixão, o homem santo começa a instruí-lo na verdade.
***
Ó homem não receies! Não corres nenhum risco.
Existe um meio de transpor o oceano da vida terrena.
Vou revelar-te o método pelo qual os sábios chegaram à outra margem.
***
Existe um método eficaz de pôr termo ao terror desta vida terrena.
Por ele poderás atravessar o oceano do mundo e alcançar a suprema bem-aventurança.
***
Meditar sobre o significado da verdade,
tal como a ensinam o Vedanta,
conduz à suprema iluminação.
Por esse meio, a miséria da vida material é totalmente destruída.
***
Fé, devoção e união constantes com Deus através da oração, são as qualidades declaradas pelas escrituras
como o meio directo de libertação para aquele que busca.
Aquele que nelas persiste obtém a libertação do cativeiro da consciência física,
que foi gerado pela ignorância.
***
Por estares associado com a ignorância, o supremo que em ti reside parece estar subjugado pelo não-Atman.
Essa é a única causa do ciclo de nascimentos e mortes.
A chama da iluminação, que se acende pelo discernimento entre o Atman e o não-Atman,
consumirá os efeitos da ignorância até às suas próprias raízes.
***
AS PERGUNTAS
***
O discípulo diz:
Mestre ouvi as perguntas que vou fazer. Bem-aventurado serei se puder ouvir uma resposta dos vossos lábios.
O que é, na realidade, essa servidão?
Como é que ela começou?
Em que se enraíza?
Como é que o homem dela se liberta?
O que é o não-Atman?
O que é o supremo Atman?
Como é que os posso distinguir?
Por favor, respondei-me.
***
O Mestre respondeu:
Bem-aventurado és! Estás perto da meta. Graças a ti, toda a tua família se purificou,
porque almejas a libertação da servidão da ignorância e alcançar o supremo Brahman.
***
Os filhos podem libertar os pais das suas dívidas,
mas nenhuma outra pessoa pode libertar um homem da sua servidão.
Deve ser ele próprio a fazê-lo.
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Outros podem aliviar o sofrimento causado por um fardo que pesa sobre a nossa cabeça;
mas o sofrimento que deriva da fome, da dor, da ansiedade, só pode ser aliviado por nós mesmos.
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O homem doente que toma um medicamento e observa as regras da dieta pode recuperar a saúde.
Mas não através dos esforços de um outro qualquer.
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Uma clara visão da Realidade só pode ser obtida através dos nossos próprios olhos,
quando se abrirem por meio do discernimento espiritual.
Nunca através dos olhos de outro, mesmo que seja vidente.
Pelos nossos próprios olhos aprendemos a ver a aparência da Lua;
como a poderíamos conhecer pelos olhos de outrem?
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As cordas que devido à nossa ignorância nos amarram aos nossos desejos sensuais e aos frutos do nosso Karma*,
poderão ser desatadas por alguém que não nós, mesmo que em inumeráveis séculos?
- * Karma – pode ser entendido como o fruto das acções passadas que brotam e condicionam a vida presente. O destino que o homem constrói para si próprio, segundo a lei das causas e efeitos. Também significa acção; a aproximação de Deus através de acções desinteressadas. -
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Nem pela prática do yoga ou da filosofia Sankhya*, nem pelas boas obras nem pelo saber atingimos a libertação.
A libertação só pode ser atingida pela compreensão de que Atman e Brahman são Um.
- * A filosofia Sankhya é uma das seis filosofias de vida da Índia, sendo considerada como a mais antiga. Foi desenvolvida concomitantemente com o yoga. -
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É dever de um rei contentar o seu povo,
mas nem todos os que o contentam estão aptos para o cargo.
Porque o povo pode ser contentado pela beleza da forma de uma vina*
e pela habilidade com que as suas cordas são dedilhadas.
- * Vina – instrumento de cordas indiano. –
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A erudição, o discurso bem-articulado, a riqueza de vocabulário e a capacidade de interpretar as escrituras,
são qualidades que agradam ao erudito, mas não trazem a libertação.
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O estudo das escrituras será em vão enquanto Brahman não tiver sido vivenciado.
E, depois que Brahman tenha sido vivenciado, é inútil ler as escrituras.
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Uma rede de palavras é como uma floresta densa que obriga a mente deambular de lá para cá e de cá para lá.
Aqueles que conhecem esta verdade devem labutar arduamente para vivenciar Brahman.
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Quando um homem foi mordido pela cobra da ignorância,
só poderá ser curado pela realização de Brahman.
Para que servem os Vedas* e as escrituras, os amuletos e as ervas medicinais?
- * Vedas – são um conjunto de quatro obras compostas em sânscrito védico, iniciadas por volta do ano 2000 a.C., e que representam a estrutura básica do sistema de escrituras sagradas do hinduísmo. -
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Não se cura uma doença pronunciando a palavra “medicamento”.
É forçoso que se tome o remédio.
A libertação não se atinge com a pronúncia da palavra “Brahman”.
Brahman tem de ser realmente vivenciado.
***
Enquanto não permitirmos que este universo aparente desapareça da nossa consciência,
enquanto não vivenciarmos Brahman,
como podemos encontrar a libertação pela simples pronúncia da palavra "Brahman"?
O resultado é um mero ruído.
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Enquanto não tiver destruído os seus inimigos e tomado posse do esplendor das riquezas do reino,
o homem não pode tornar-se rei dizendo simplesmente: “Eu sou um rei.”
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Um tesouro enterrado não pode ser descoberto apenas pronunciando-se a palavra “aparece”.
É necessário seguir as indicações correctas, cavar, remover as pedras e a terra que o encobrem
e então, dele tomar posse.
Do mesmo modo, a pura verdade do Atman, que está soterrada sob Maya* e sob os efeitos de Maya,
só pode ser alcançada pela meditação, pela contemplação e por outras disciplinas que o conhecedor de Brahman pode ditar.
Nunca por meio de argumentos subtis.
- * Maia é um termo com vários significados. Mas a sua referência mais comum é a que alude ao conceito de ilusão, que constitui a natureza do universo. Este conceito foi fundamentalmente desenvolvido por Shankaracharya. Maya é o principal obstáculo à superação dos desejos e da sedução produzida pelo mundo material, gerado pela ilusão e criando dificuldades a todos os que pretendem atingir a iluminação. -
***
O sábio deve executar todos os seus poderes para obter a libertação do cativeiro do mundo,
da mesma forma que tomaria os remédios prescritos contra as doenças físicas.
***
A pergunta que hoje formulaste é muito oportuna.
É relevante para os ensinamentos das escrituras.
O seu significado está oculto nas profundezas,
como no âmago de um aforismo.
Todos aqueles que buscam a libertação devem fazê-la.
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Ouve atentamente, ó homem sensato, o que tenho a dizer.
Se ouvires, serás certamente libertado dos grilhões do mundo.
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Dos passos que conduzem à libertação, o primeiro é o completo desapego de todas as coisas não eternas.
Em seguida, vem a prática da tranquilidade, do autocontrolo e da paciência.
E depois a completa renúncia a todas as acções inspiradas pelo desejo pessoal, egoísta.
***
O discípulo deve ouvir a verdade do Atman e reflectir a respeito dela,
meditar nela constante e ininterruptamente, durante longo período de tempo.
Assim, o sábio alcança o estado supremo no qual a consciência do sujeito e do objecto se dissolve
e só a infinita consciência da unidade permanece.
Aí, conhece a bem-aventurança do Nirvana* enquanto ainda vive neste mundo.
- * Nirvana é no hinduísmo a libertação do ciclo do renascimento e da morte e o estado daquele que atinge a libertação pela iluminação.
No budismo é o estado de libertação do sofrimento, um estado que pelas suas qualidades impede os renascimentos. -
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ATMAN E NÃO-ATMAN
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Esclarecerei agora o discernimento entre o Atman e o não-Atman.
Ouve-me. Ouve atentamente e depois compreende a respectiva verdade na tua própria alma.
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O que o vidente afirma como corpo material compõe-se destas substâncias:
tutano, osso, gordura, carne, sangue, pele e epiderme.
Este corpo consiste em pernas, coxas, peito, braços, pés, costas, cabeça e outras partes.
Sabe-se que o corpo é a raiz da ilusão do “eu” e do “meu”.
***
Os elementos subtis são o éter, o ar, o fogo, a água e a terra.
Reunidas, as partes desses elementos formam o corpo material.
***
Audição, tacto, visão, paladar e olfacto.
Estas cinco essências dos elementos são tudo o que experimentamos.
Existem para serem sentidas pelo indivíduo.
***
Os seres iludidos que estão enlaçados nos objectos,
que os experimentam pela corda possante do desejo,
tão difícil de romper,
permanecem sujeitos ao nascimento e à morte.
São impelidos de lá para cá pelo seu próprio karma, lei que é inabalável.
***
O cervo, o elefante, a mariposa, o peixe, a abelha,
cada um desses animais caminha para a morte sob o encanto de apenas um dos cinco sentidos.
Qual não há-de ser o destino que aguarda o homem subordinado pelo deslumbramento dos cinco sentidos?
***
Os objectos percebidos pelos sentidos são ainda mais fortes nos seus efeitos danosos do que o veneno da cobra.
O veneno só mata quando é introduzido no corpo,
mas esses objectos arruínam-nos pelo simples facto de serem vistos com os olhos.
***
Só aquele que se libertou da terrível armadilha do desejo dos prazeres sensoriais,
aos quais é tão difícil renunciar, poderá atingir a libertação.
Mais ninguém, ainda que seja um entendido nos seis sistemas de filosofia.
***
Aqueles que dizem buscar a libertação mas não possuem o verdadeiro espírito de renúncia
tentam, ainda assim, atravessar o oceano deste mundo.
O tubarão do desejo agarra-os pela garganta,
desvia-os violentamente da sua rota,
acabando por se afogarem a meio do caminho.
***
Aquele que destruiu o tubarão do desejo sensitivo com a espada da impassibilidade,
atravessa o oceano deste mundo sem se deparar com nenhum obstáculo.
***
O homem iludido, que caminha pela terrível vereda do desejo sensorial,
aproxima-se a cada passo da sua ruína.
Aquele que trilha o caminho indicado pelo seu mestre e pelo seu próprio discernimento,
colhe o fruto supremo do conhecimento de Brahman.
***
Se almejas libertar-te, mantém os objectos do gozo sensitivo à distância, como um veneno,
e continua a beber com deleite, como um néctar,
as virtudes do contentamento, da compaixão, do perdão, da sinceridade, da serenidade e do autocontrolo.
***
O homem deve estar ininterruptamente dedicado à libertação da servidão da ignorância,
que não tem começo.
Aquele que negligencia esse dever e está apaixonadamente empenhado em alimentar os desejos do corpo
comete um suicídio.
Porque o corpo é apenas um veículo de experiência para o espírito humano.
***
Aquele que procura encontrar o Atman alimentando os desejos do corpo,
está a tentar atravessar um rio agarrado a um crocodilo, confundindo-o com uma tábua.
***
O apego ao corpo, aos objectos e às pessoas é fatal para aquele que busca a libertação.
Quem superou completamente o apego está pronto para alcançar o estado de libertação.
***
Destrói esse inflexível apego ao corpo, à esposa, aos filhos e aos outros.
Os videntes que o superaram entram na suprema morada de Vishnu*, aquele que a tudo impregna.
- * Vishnu – Uma das tríplices formas de Ishwara, tido como o Protector. Os outros dois deuses são Brahma o Criador (não confundir com Brahman) e Shiva o Destruidor. –
***
O corpo que é feito de pele, carne, sangue, artérias, veias, gordura, tutano e ossos
está cheio de matéria residual e de imundície e merece o nosso desprezo.
***
VIGÍLIA, SONO, SONO SEM SONHOS
***
Este corpo físico é composto dos elementos materiais,
que são formados pelo composto quíntuplo dos seus elementos subtis.
Nasceu através do karma de uma vida anterior e é o veículo da experiência para o Atman.
Quando percepcionamos o universo, isso é conhecido como o estado de vigília da consciência.
***
No estado de vigília da consciência, o homem encontra a sua plena actividade no corpo.
Nesse estado, identifica-se com o seu corpo, embora esteja efectivamente separado dele.
Por meio dos sentidos externos usufrui os objectos materiais,
como grinaldas, perfumes, mulheres, bem como outros
objectos que proporcionam o prazer dos sentidos.
***
Deves saber que esse corpo, por meio do qual o homem vivencia o mundo exterior,
é como a casa de um chefe de família.
***
As características inerentes a esse corpo material
são o nascimento, o declínio e a morte.
Está sujeito a várias situações, como a gordura ou a magreza;
e a vários estágios de desenvolvimento, como a infância e a juventude.
É controlado pelos preceitos de casta e pelos ditames das quatro ordens da vida.
Está sujeito a várias doenças e a diferentes tipos de tratamento,
como a adoração, a afronta ou o respeito.
***
Os seus órgãos de percepção são os ouvidos, a pele, os olhos, o nariz e a língua.
Por intermédio deles conhecemos os objectos.
***
Os seus órgãos de acção são os órgãos vocais, as mãos, as pernas e os órgãos de excreção e reprodução.
Estes órgãos envolvem-nos na acção.
***
O órgão mental compreende a mente, o intelecto, o ego e a natureza emocional.
Distinguem-se pelas suas diferentes funções.
A função da mente é examinar os vários aspectos de um objecto.
A função do intelecto é determinar a verdadeira natureza do objecto.
***
O ego é a autoconsciência que surge quando o órgão mental se identifica com o corpo.
A tendência da natureza emocional é atrair-nos para aquilo que é agradável.
***
A força vital divide-se de acordo com suas cinco diferentes funções.
A respiração é a função da força vital utilizada na respiração.
A “respiração descendente” é usada na excreção.
A “respiração distributiva” controla os processos da digestão e da assimilação.
A “respiração difusa” está presente em todo o corpo, resistindo à desintegração e unindo-o em todas as suas partes.
A “respiração ascendente” é usada na eructação.
Assim como o ouro é conhecido por diferentes nomes quando é moldado para diversos ornamentos,
assim como a água assume a forma de ondas, espuma,
também a força vital única recebe esses cinco nomes diferentes
segundo suas cinco diferentes funções.
***
Oito grupos compõem o corpo subtil: cinco órgãos de percepção, cinco órgãos de acção, cinco funções da força vital, cinco elementos subtis e o órgão mental,
junto com a ignorância, os desejos e o karma.
***
O corpo subtil é composto pelos elementos subtis antes que entrem nos seus compostos quíntuplos.
É a sede dos nossos desejos.
É o campo no qual os frutos do karma são experimentados.
Devido à ignorância humana, esse corpo subtil foi sobreposto ao Atman desde o tempo sem princípio.
***
O estado de sonho pertence ao corpo subtil.
Durante os sonhos cria a sua própria matéria e brilha com a sua própria luz.
O órgão mental é um depósito das numerosas impressões deixadas
pelos desejos que experimentamos no estado de vigília.
Nos sonhos, o órgão mental identifica-se com a consciência do ego e depende dessas impressões.
Porém o Atman permanece como sempre, na sua própria consciência auto-iluminada.
Durante todo esse tempo, o órgão mental é o seu único envoltório.
O Atman testemunha tudo, mas não se deixa contaminar pelas experiências oníricas,
mantendo-se eternamente livre e indemne.
Nenhum karma criado pelos corpos que o envolvem o pode contaminar, ainda que no mais ínfimo grau.
***
O corpo subtil é como uma ferramenta afiada na mão do carpinteiro.
É o instrumento de toda a actividade do Atman, que é infinita sabedoria.
O Atman está livre de qualquer mácula.
***
As condições de cegueira, fraqueza e visão apurada,
pertencem aos olhos e são causadas pelas suas qualidades e defeitos.
Do mesmo modo, a surdez e a mudez são condições dos ouvidos e da língua,
mas não do Atman.
***
A inalação, a exalação, o bocejo, o espirro, a descarga de saliva e o abandono do corpo por ocasião da morte,
são considerados, por aqueles que sabem, como as várias funções da força vital.
A fome e a sede são também funções da força vital.
***
O órgão mental identifica-se com os órgãos da percepção e da acção, assim como com o corpo físico.
Desse modo, surge o sentimento de individualidade, que leva o homem a viver e a agir.
A sua consciência é um reflexo da infinita consciência do Atman.
***
Aquele que acredita que está a agir ou a experimentar é reconhecido como ego, o homem individual.
Identificando-se com as gunas*, ele passa pelos três estados de consciência:
a vigília, o sonho e o sono sem sonhos.
- * Gunas – segundo a filosofia Samkhia são uma das três tendências: sattva, rajas e tamas.
. Sattva - Ser, existência ou entidade, tem sido traduzido por equilíbrio, ordem e pureza.
. Rajas - Originalmente, atmosfera, ar, firmamento: Gera actividade.
. Tamas - Originalmente, escuridão, trevas, obscuridade: Tem sido traduzido como inércia, negativo, letárgico, entorpecido ou lento. Geralmente está associado à escuridão, à ilusão ou ignorância. -
***
Quando os objectos da experiência são agradáveis, ele é feliz.
Quando são desagradáveis, é infeliz.
O prazer e a dor são característicos do indivíduo e não do Atman, que é sempre bem-aventurado.
***
O objecto da experiência é digno de amor.
Não por si mesmo, mas porque beneficia o Atman.
Porém o próprio Atman deve ser amado acima de todas as coisas.
***
No sono sem sonhos, quando não há nenhum objecto de experiência sente-se a alegria do Atman.
Isto é confirmado pela nossa própria prática, assim como pelas escrituras, pela tradição e pela lógica.
***
MAYA
***
Maya, no seu aspecto virtual é o poder divino de Deus.
Não tem começo.
Composta por três gunas*, é subtil; está para além da percepção.
É por via dos efeitos que gera,
que a sua existência é depreendida pelo sábio.
É ela que dá origem a todo o universo.
- * Gunas – ver nota supra. –
***
Não é nem um ser nem um não-ser,
nem uma mistura de ambos.
Não é nem divisível nem indivisível,
nem uma amálgama de ambos.
Não é nem um todo indivisível
nem uma soma de partes,
nem uma mistura de ambos.
A sua natureza é inexplicável.
***
Assim como a percepção de que uma corda é uma corda destrói a ilusão de que ela seja uma serpente,
também é destruída pela experiência directa de Brahman, o puro, o livre, o primeiro-sem-segundo.
Maya é composta pelas gunas*.
Forças que têm características diferenciadas.
- * Gunas – rajas, tamas e sattva – ver supra. –
***
Rajas tem o poder da projecção.
A sua natureza é a actividade.
Graças a esse poder, o mundo fenomenal, que está envolvido em Maya, começa a evoluir.
O apego, o desejo e outras qualidades semelhantes são causadas pelo seu poder,
assim como a tristeza e outras disposições da mente.
***
A lascívia, a cólera, a cobiça, a arrogância, o ciúme, a egolatria, a inveja e outros vícios similares são as piores características de rajas.
Quando um homem é dominado por rajas, fica apegado às acções mundanas.
Rajas é a causa da servidão.
***
Tamas tem o poder de ocultar a verdadeira natureza de um objecto,
fazendo com que pareça diferente do que aquilo que é.
É causa da contínua sujeição do homem à roda dos nascimentos e das mortes.
***
Um homem pode ser inteligente, engenhoso e ilustrado.
Pode ter em si a faculdade da perfeita auto-investigação.
Mas, se for dominado por tamas, não poderá compreender a verdadeira natureza do Atman,
ainda que lhe seja claramente aclarada de várias modos.
Toma a aparência, resultado da sua ignorância, pela Realidade,
e apega-se definitivamente à ilusão.
Desafortunadamente, esse obscuro poder de tamas é imenso.
***
Inaptidão para compreender o objecto real,
ver algo como diferente do que ele é de facto,
hesitação da mente tomando a ilusão por realidade,
tais são as características de tamas.
Enquanto estiver apegado a tamas, o homem nunca se libertará delas.
E também rajas o irá inquietar continuamente.
***
Tamas tem mais estas características:
ignorância, indolência, torpor, sono, ilusão e estupidez.
O homem que se encontra sob a influência dessas características,
por muito que se esforce não consegue compreender coisa alguma.
Vive como um sonâmbulo.
***
Sattva é pureza.
Mesmo quando está mesclada com rajas e tamas,
como água misturada com água,
ilumina o caminho da libertação.
Sattva revela o Atman tal como o Sol revela o mundo objectivo.
***
Sattva, quando misturada com as outras gunas, tem estas particularidades:
Ausência de orgulho, pureza, contentamento, austeridade, desejo de estudar as escrituras, submissão a Deus, inocência, verdade, castidade, ausência de cobiça, fé, devoção, anseio de libertação, aversão às coisas deste mundo, e todas as outras virtudes que conduzem a Deus.
***
Sattva no seu estado puro tem as seguintes características:
Serenidade, percepção directa do Atman, paz absoluta, júbilo, alegria e constante devoção ao Atman.
Graças a essas qualidades, o homem que encontrou o caminho goza de eterna beatitude.
***
Maya foi definida como um composto das três gunas.
É o corpo causal do Atman.
O sono sem sonhos pertence ao corpo causal.
Nesse estado, as actividades da mente e dos órgãos sensitivos estão suspensas.
***
No sono sem sonhos não há nenhum tipo de cognição.
Porém a mente continua a existir na sua forma subtil.
A prova disso pode ser encontrada na experiência de todos os indivíduos quando acordam.
A mente ainda se recorda: “Não me apercebi de nada.”
***
Existem o corpo, os órgãos sensoriais, a força vital, a mente, o ego com as suas funções,
os objectos do gozo, os prazeres e todos os outros tipos de experiência, os elementos densos e os subtis.
Ou seja, todo o universo objectivo e Maya, que é a sua causa.
Nada disso é o Atman.
***
Deves saber que Maya e todos os seus efeitos,
do intelecto cósmico ao corpo material,
não são o Atman.
São todos irreais, tal como uma miragem no deserto.
***
O ATMAN
***
Agora vou elucidar-te acerca da natureza do Atman.
Se a alcançares ficarás livre dos grilhões da ignorância e alcançarás a libertação.
***
Há uma Realidade que existe por si mesma
e que constitui a base da nossa consciência do ego.
Realidade que é a testemunha dos três estados da nossa consciência
e difere dos cinco envoltórios corporais.
***
Essa Realidade é o conhecedor de todos os estados de consciência:
vigília, sonho e sono sem sonhos.
Ela está consciente da presença ou da ausência da mente e das suas funções.
É o Atman.
***
A Realidade vê tudo pela sua própria luz.
Ninguém a pode ver.
Concede inteligência à mente e ao intelecto, mas ninguém lhe dá luz.
***
A Realidade permeia o universo, mas ninguém a pode penetrar.
Brilha por si mesma.
O universo brilha com o reflexo da sua luz.
***
Graças à Sua presença, o corpo, os sentidos, a mente e o intelecto
aplicam-se nas suas respectivas funções,
como se obedecessem ao seu comando.
***
A sua natureza é a eterna consciência.
Conhece todas as coisas, da consciência do ego ao corpo.
É o conhecedor do prazer e da dor e dos objectos dos sentidos.
Conhece tudo objectivamente, tal como um homem conhece a existência objectiva de um jarro de barro.
***
Essa Realidade é o Atman, o Ser Supremo, o imemorável,
que nunca cessa de sentir uma alegria infinita.
É sempre o mesmo.
É a própria consciência.
Os órgãos e as energias vitais
funcionam sob o seu comando.
***
Dentro deste corpo, na mente pura, na câmara secreta da inteligência, no universo infinito do coração,
o Atman reflecte o seu esplendor deslumbrante, como o Sol do meio-dia.
É pela sua luz que o universo é revelado.
***
É o sabedor das actividades da mente e do homem individual.
É a testemunha de todas as acções do corpo, dos órgãos sensitivos e da energia vital.
Parece identificar-se com todos estes,
tal como o fogo parece identificar-se com uma esfera de ferro,
mas não age nem está sujeito à mais ligeira mudança.
***
O Atman não conhece o nascimento nem a morte.
Não evolui nem decai. É imutável e eterno.
Não se dissolve quando o corpo se dissolve.
Deixará o éter de existir quando se parte a vasilha que o contém?
***
O Atman é distinto de Maya, a causa primeira,
e do seu efeito, o universo.
A natureza do Atman é Consciência Pura.
O Atman desvela todo este universo da mente e da matéria.
Não o podemos definir.
Dentro e através dos vários estados de consciência,
a vigília, o sonho e o sono,
sustenta a nossa permanente consciência de identidade,
manifestando-se como a testemunha da inteligência.
***
A MENTE
***
Com uma mente disciplinada e um intelecto que adquiriu a pureza e a serenidade,
deves conhecer o Atman por ti mesmo, directamente no teu interior.
Reconhece o Atman como o “Eu” real.
Desse modo atravessarás o oceano ilimitado da materialidade,
cujas ondas são o nascimento e a morte.
Vive para sempre no conhecimento da identidade com Brahman.
Assim serás bem-aventurado.
***
O homem vive na servidão porque confunde o não-Atman com o seu autêntico “Eu”.
Isto é causado pela ignorância.
Daí decorre a miséria do nascimento e da morte.
Pela ignorância o homem identifica o Atman com o corpo, identificando o perecedouro com o real.
Por isso, alimenta o corpo, unge-o e protege-o com diligência.
Emaranha-o nos objectos dos sentidos como uma lagarta nos fios do seu casulo.
***
Ludibriado pela sua cegueira, o homem confunde uma coisa com outra.
A falta de discernimento levá-lo-á a pensar que uma serpente é uma corda.
Se a apanhar com essa crença, grande será o perigo.
A aceitação do irreal como real constitui o estado de servidão.
Fica atento, meu amigo.
***
O Atman é indivisível, eterno, o primeiro-sem-segundo.
Exterioriza-se eternamente pelo poder do seu próprio conhecimento.
As suas glórias são infindas.
O véu de tamas esconde a verdadeira natureza do Atman, tal como um eclipse encobre os raios do Sol.
***
Quando os raios puros do Atman estão ocultados, o homem iludido identifica-se com o seu corpo, que é não-Atman.
Então rajas, que tem o poder de projectar formas ilusórias, apoquenta-o dolorosamente.
Acorrenta-o com os grilhões da luxúria, da cólera e demais paixões.
***
A sua mente toma-se pervertida.
A sua consciência do Atman é devorada
pelo tubarão da total ignorância.
Submetendo-se ao poder de rajas, ele identifica-se com os numerosos movimentos e mudanças da mente,
e é arrastado de lá para cá, ora emergindo, ora afundando-se no oceano ilimitado do nascimento e da morte,
cujas, águas estão cheias do veneno dos objectos dos sentidos.
Este é um destino realmente miserável.
***
Os raios do Sol produzem camadas de nuvens.
O Sol é por elas encoberto e então parece que só as nuvens
existem.
Do mesmo modo, o ego, produzido pelo Atman, vela a verdadeira natureza do Atman,
e então tudo faz parecer que só o ego existe.
***
Num dia tormentoso o Sol é encoberto por nuvens espessas,
que são fustigadas por violentas e gélidas rajadas de vento.
Do mesmo modo, quando o Atman é envolvido pelas trevas espessas de tamas,
o terrífico poder de rajas fustiga o homem iludido com todo o tipos de padecimentos.
***
A servidão do homem é provocada pelo poder de tamas e rajas.
Enganado toma o corpo pelo Atman e desvia-se para o caminho que leva à morte e ao renascimento.
***
A vida do homem neste mundo condicional pode ser comparada a uma árvore.
Tamas é a semente.
A identificação do Atman com o corpo, o seu crescimento.
Os desejos são as folhas.
O trabalho é a seiva.
O corpo, o tronco.
As forças vitais são os ramos.
Os órgãos sensoriais, os rebentos.
Os objectos dos sentidos, as flores.
Os frutos, os sofrimentos causados por várias acções.
O homem individual é o pássaro que come os frutos da árvore da vida.
***
A sujeição do Atman ao não-Atman provém da ignorância.
Não tem uma causa externa.
Não tendo princípio, perdurará interminavelmente enquanto o homem não alcançar a iluminação.
Enquanto o homem permanecer neste cativeiro, ela sujeitá-lo-á a um longo cortejo de misérias:
nascimento, velhice, doença e morte.
***
Esta servidão não pode ser vencida nem pelas armas, nem pelo vento, nem pelo fogo, nem por milhões de actos.
Só a espada acerada do conhecimento a pode desenraizar.
É forjada pelo discernimento e afiada pela pureza do Coração mediante a graça divina.
***
O homem deve cumprir com fidelidade e devoção
os deveres prescritos pelas escrituras.
Isso purifica-lhe o Coração.
O homem de Coração puro realiza o supremo Atman.
Desse modo, destrói a sua servidão ao mundo,
arrancando-a pela raiz.
***
Envolvido pelos seus cinco envoltórios, principiando pelo corpo físico, que são os produtos de sua própria Maya,
o Atman permanece oculto, tal como a água de um lago é coberta por um véu de espuma.
***
Quando se remove a espuma, a água pura é vista com clareza.
Sacia a sede do homem, refresca-o e torna-o feliz.
***
Quando se removem os cinco envoltórios,
o Atman puro é revelado como o Deus
que habita no nosso íntimo,
como infinita e autêntica bem-aventurança,
o ente supremo e auto-iluminado.
***
O sábio que procura libertar-se da escravidão
tem de diferençar o Atman do não-Atman.
Só assim pode compreender o Atman,
que é o Ser Infinito, a Sabedoria Infinita e o Amor Infinito.
Só assim encontra a felicidade.
***
O Atman habita no nosso interior,
livre do apego e para além de toda acção.
O homem deve separar esse Atman de todos os objectos da experiência,
tal como uma haste de erva é separada do seu envoltório.
Deve dissolver no Atman todas as aparências que constituem o mundo do nome e da forma.
Livre é a alma que assim permanece no Atman.
***
***
José Maria Alves
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