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ARTE

terça-feira, 30 de junho de 2009

AL BERTO (1948-1997) - PREFÁCIO PARA UM LIVRO DE POEMAS


Conheci um homem que possuía uma cabeça de vidro.
Víamos – pelo lado sombrio do pensamento – todo o sistema planetário.
Víamos o tremelicar da luz nas veias e o lodo das emoções na ponta dos dedos. O latejar do tempo na humidade dos lábios.
E a insónia, com seus anéis de luas quebradas e espermas ressequidos. As estrelas mortas das cidades imaginadas.
Os ossos tristes das palavras.

A noite cerca a mão inteligente do homem que possui uma cabeça transparente.
Em redor dele chove.
Podemos imaginar uma chuva espessa, negra, plúmbea.
Depois, o homem abre a mão, uma laranja surge, esvoaça.
As cidades (como em todos os livros que li) ardem.
Incêndios que destroem o último coração do sonho.
Mas aquele que se veste com a pele porosa da sua própria escrita pilha, absorto, a laranja.
A queda da laranja provocará o poema?
A laranja voadora é, ou não é, uma laranja imaginada por um louco?
E um louco, saberá o que é uma laranja?
E se a laranja cair? E o poema? E o poema com uma laranja a cair?
E o poema em forma de laranja?
E se eu comer a laranja, estarei a devorar o poema? A ficar louco?

E a palavra laranja existirá sem a laranja?
E a laranja voará sem a palavra laranja?
E se a laranja se iluminar a partir do seu centro, do seu gomo mais secreto, e alguém a esquecer no meio da noite – servirá o brilho da laranja para iluminar as cidades há muito mortas? E se a laranja se deslocar no espaço – mais depressa que o pensamento, e muito mais devagar que a laranja escrita – criará uma ordem ou um caos?

O homem que possui uma cabeça de vidro habita o lado de fora das muralhas da cidade.
Foi escorraçado.
E na desolação das terras, noite dentro, vigia os seus próprios sonhos e pesadelos. Os seus próprios gestos – e um rosto suspenso na solidão.

Onde mora o homem que ousou escrever com a unha na sua alma, no seu sexo, no seu coração?
E se escreveu laranja na alma, a alma ficará saborosa?
E se escreveu laranja no coração, a paixão impedi-lo-á de morrer?
E se escreveu laranja no sexo, o desejo aumentará?

Onde está a vida do homem que escreve, a vida da laranja, a vida do poema – a Vida, sem mais nada – estará aqui?
Fora das muralhas da cidade?
No interior do meu corpo? ou muito longe de mim – onde sei que possuo uma outra razão... e me suicido na tentativa de me transformar em poema e poder, enfim, circular livremente.


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