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ARTE

sábado, 12 de outubro de 2013

CANÇÃO DE TRISTE AMOR




desde petiz
que a amava
ele de calções
meio esfarrapados
ela com vestido
feito de chita

lado a lado
no frio granito
da escola primária
enquanto ele
com a manga
se assoava
já lhe dizia
que a adorava
e ela sorria
dentes brancos
olhos puros
divina criança

distraído das letras
olhos postados
no azul das janelas
sonhava com casório
como vira no verão
à porta da igreja
tanta era a gente
tanto convidado
afinal a noiva era
a filha do capitão

casamento de rico
não é como o de pobre
não tem salão nobre
tem pátio de moradia
não tem casa de banho
pobre tem penico
não tem três pratos
todos de carne nova
pobre tem feijão e couves 
com toucinho 
e um pedaço de presunto
mal defumado

eu olhava-os
da minha carteira
corroída
pelo bicho da madeira
tão enamorados
no recreio
os caracolitos dela
aos saltos
os calções dele rasgados
os segredos escritos
em pedaçitos de jornal
o anel de lata prateada
dado como prova
que mesmo na pobreza
sempre há algo
que não falta
seja paixão seja beleza

vi-os crescer
sempre com aquele olhar
tão meigo
tão discreto
tão amante
tão amado

e vi-os de braço dado
à porta da venda
o rapazola e a garota
ele empertigado
ela encantada
namorado e namorada
à vista do povo
que cismava naquele fado

crescemos
víamo-nos nas longas
férias do verão
eu estudava em lisboa
ele trabalhava à jorna
como tantos
ela cosia para fora
vestidos
bainhas e arranjos
mas quem os via
sabia 
que amor tamanho
não havia
nas verdes encostas
da rude serrania

chegou o dia
manuel foi alistado
era forte e corajoso
fez a recruta
e depois 
sem pena sem dó
do que era o amparo 
de sua mãe velhinha
a notícia veio
guia de marcha
para os rangers 
em lamego
daí para a guiné
enquanto nossa maria
chorava sofrida
quer de noite
quer de dia
pedindo à virgem
mão contra mão
apertada
a clemência
que lhe não tirasse
a luz de sua existência
o brilho dos seus dias

coisas do demo
na picada sangrenta
maldita a granada
que o matou
quando sobre ela 
o herói se arrojou
para salvar a vida
dum camarada

veio para a terra 
num saco
num caixão de aço
cruz de guerra
no regaço
eu não estava
maria não o viu
descer à cova
havia sido internada
com mal de amar
com dor tamanha
pesar de amor

soube em angola
e chorei
lágrimas salgadas
pelo amigo
que jamais iria ter
e que já de garoto
era senhor e rei
do verbo bem-querer

passaram-se meses
chegado do ultramar
procurei maria
não sei bem porquê
para a consolar
para a abraçar
para com ela chorar
talvez
para que me desse
um pouco do sofrer
que o amante tem
e que padece
quando perde
seu maior bem

fui à taberna fardado
perguntei por ela
antes de ser saudado
por ter regressado 
são e salvo
baixaram-se cabeças
o taberneiro 
mordeu os lábios
os homens
que jogavam cartas
ficaram calados

o coração de maria
não havia suportado
tão pesada mágoa
havia-se enforcado
numa velha oliveira 
do povoado
era a sua prova 
de amor eterno

oh amantes de teruel
pobres coitados
no cemitério olvidados
visitei-os e vi sem ver
os dois de braço dado
em campas lado a lado
fiz-lhes continência
por alguns minutos
como se deve 
a um grande herói
e a uma santa mulher

hoje
tenho saudades
do tempo
em que manuel
e maria
enfeitiçados
se beijavam nos fundos
da escola
beijos que ninguém via
mas que cada um sentia
como calafrio
que a espinha percorria

e sinto
raiva
inveja
pena
alma que dói
por nunca ter tido
amor como o seu
e de não ter sido
herói como ele
e de não ter conhecido
mulher santa 
como a dele 

que deus me perdoe
agora e quando
nos seus sepulcros 
lado a lado plantados
de braço dado
rezo ajoelhado
ave-marias
por suas almas
e meus pecados





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