William Blake - Deus Criador
OU POEMA DE DEUS OU DO DIABO
escrevo este esboço doente não o escreveria se não estivesse assaz enfermo se não cuidasse no mal que fiz e que hei-de causar actos de amor de ódio de deus ou satanás
- se deus o quiser por assim o ter destinado quer eu queira ou não o que está escrito não pode ser apagado -
se o meu peito sanguinolento não sofresse como sofre
e se a morte não fosse aquele grande mistério que tanto nos apetece e que não se conhece com preces nem é compreendido por filosofias ou teologias em noites de amarga especulação misérrimo pensamento
vive-se como se pode por não haver melhor
come-se bebe-se faz-se sexo dorme-se e o pior
é que se vegeta sem nexo
da nascença à cova funerária
e dos que partiram deste mundo
nenhum torna
ninguém dá nova
de corpo ou espectros
ressuscitados reencarnados
almas de deus
ou de trinta-diabos
onde estás tu senhor?
quem sou eu?
ao acaso vou abrindo o desgastado saltério herança de meu pai
- ouvi ó deus a minha voz na aflição
eu sou a palha que do terreiro o vento de sueste leva
árvore de folhas ressequidas que em tumulto escondido se inflama
o que aborrece o caminho da mentira
- tende compaixão de mim senhor porque estou doente
sobre mim cai uma chuva de fogo vivo e enxofre
coração em lágrimas no covil dos leões
corpo que em fornalha ardente novamente sofre
mente angustiada mortalha de lamentações
- meu deus meu deus porque me abandonaste?
perfuma-me a cabeça com óleo de nardo
se és bom e recto a mim que te prezo
mostra-me o caminho nesta noite escura
alivia-me a mim que sou fraco deste fardo
eu penso no pobre no que sofre no desvalido
sou como o veado que gemente suspira
gazela em busca de verdes prados e água pura
do novo testamento que se diz de teu filho
- se alguém quiser vir após mim negue-se a si mesmo
tome a sua cruz dia após dia
e siga-me
sem condições te seguiria
por vereda de abrolhos
cardos e despenhadeiros
fundearia na tua palavra
e se teu caminho visse
e a tua lei entendesse
nela meditaria noite e dia
imita-me dirias
e eu o faria
seria como és
madeiro nos braços
cravos nas mãos
e nos pés
coroa de espinhos
na fronte
chagas de verdasca
a bem aceites
sangue da alegria
beberia de tua fonte
tua missão imitaria
se o mundo salvasse de tanta miséria doença fome morte
terríveis males por teu pai criados poderes que te foram dados
mas a mim não
se expurgasse do universo cataclismos terramotos guerras malefícios corrupção furor ganância ódio e vingança
males que teu pai previu
mas eu não
se iníquos e ímpios poderosos e governantes deste mundo sanguinários traidores de seus povos famintos
que nada e ninguém temem
pudesse julgar esmagando seus braços exterminando-os e às torrentes malignas de seu sémen no pecado imerso
que tu em nome de teu pai podes
e eu não
seguir-te-ia
mas às tuas igrejas não
no princípio o teu santo espírito movia-se à superfície das águas
a terra era informe
olhaste o abismo e aí projectaste o mundo no caderno do destino
onde tudo está escrito com infinita ciência dizes tu
cansado de tanta solidão munido de sólida intenção
- a eternidade também cansa e o vazio entedia –
no primeiro dia fizeste resplender a luz separando-a das trevas
no segundo fizeste os céus separando-os das águas
mas deste-lhes a mesma cor quererias neles espelhar o amor
no terceiro enxugaste a terra
o mar uniu-se aos céus no horizonte
e ordenaste à terra que produzisse erva
arbustos e árvores de fruto
no quarto criaste os luzeiros do céu
no quinto povoaste a terra de todo o tipo de animais
domésticos répteis ferozes
e sob o firmamento as aves
nalguns brejos
alguns animalejos alados
não satisfeito
fizeste-nos à tua imagem e semelhança
a nós falsos dominadores da natureza
pasto de melgas e mosquitos
e ponderaste a tua obra muito boa
como pudeste tu o omnipotente o omnisciente
não prever o evidente
não fazer o excelente
se a erva sofre quando calcada
e a árvore quando derrubada
como pudeste na tua omnisciência criar
bicho-come-erva bicho-come-bicho bicho-come-gente gente-come-erva gente-come-bicho gente-come-gente
violência e dor
não violaste os princípios de tua omnipotência?
parece-te isto bem senhor
cadeia interminável de sofrimento
outrora agora e para sempre
a isto chamas amor?
bela é a ave e ave-come-ave ave-come-bicho bicho-come-ave ave-come-gente e gente-come-ave
é esta a tua natureza
aniquilação dolorosa da beleza?
razão a de quem diz da vida
tudo é sofrimento
nascimento doença velhice morte
desgraçado o que nasce
o que teve tal sorte
o homem foi por ti moldado
em pó da terra
colocaste-o no jardim dos jardins
no meio das mais belos jasmins
ó éden de todas as delícias
visões perfumes júbilo carícias
mas estava só
e a solidão mata
basta de sevícias
disseste
enquanto dormia sorrateiro tiraste-lhe uma costela
e dela
fizeste a mulher
que por argúcia tal
de ofídia sua aliada
o fez comer da árvore do bem e do mal
- para que criaste tu o bem e o mal não sabias que eva faria adão comer o fruto e que a serpente nada tem com o assunto? –
amaldiçoaste injusto a serpente
aumentaste os padecimentos da mulher
e o homem nascido para o prazer
para a eternidade e lazer
teve de comer o pão que o diabo amassou
castigo do pecado gerado por quem o criou
eva penetrada por adão
deu à luz caim e abel
e como o que nasce torto
tarde ou nunca se endireita
abel apareceu morto
por obra de seu irmão
ainda assim os homens multiplicaram-se
penetração após penetração no seio da erva
gozo primordial de adão com eva
mas nos seus corações a malícia reinava
arrependeste-te então tristemente
contrário à tua sapiência
usada na criação com displicência
- eu deus omnipotente e omnisciente arrependo-me de ter criado o homem sobre a terra
choraste lágrimas de sangue amarguradamente na terra corrompida e cheia de violência
e tracejaste com raiva o malfadado caderno do destino que com negligência escrituraste
de toda a multidão apenas noé te era agradável
e pensando não sei se bem se mal
ordenaste-lhe a construção de uma arca espécie de barca
nela noé embarcaria a mulher os filhos e dois seres vivos de cada espécie existente na terra
por um dilúvio em sete dias
– mania a tua –
exterminaste toda a humanidade
e
aos pobres e impolutos animais
num acto de nova crueldade
não sabias qual a natureza do homem que criaste
não sabias que no seu sangue correria para todo o sempre corrupção e violência
e que a humanidade é a mãe da demência?
que pecado cometeram os animais que ficaram
com que direito os submergiste
que tinhas em mente
tua vontade discricionária e indiferente?
a ti meu deus assiste a razão quando disseste
- façam-se à minha imagem e semelhança
desgraça atrai desgraça castigo divino injustiça humana erro desesperança
e tu sempre o soubeste
e a noé o disseste
quando assinaste a aliança
de nenhum outro dilúvio lançar
sobre a terra e sobre o mar
- de que te valeria também nada variaria –
desististe e bem senhor
aposentaste-te de criador
quanto a mim e no restante
sempre soubeste
quem iria eu ser
que iria eu fazer
que pecados cometer
dizes
dei-te o livre arbítrio
que bom que és senhor
determinas-me ao acto
definitivamente lavrado
no caderno do destino
e a criatura que agora vês
pecadora perdida sem tino
foste tu quem a modelou
e sem que mudança
houvesse na tua ciência
ou não seria omnisciência
o que tão contrário
é à tua essência
como a presença do mal
e se por tal iníquo sou
por tua vontade
erro ou desacerto
eu pecador me confesso
eu pecador me perdoo
tantos são os males do mundo e não os reprimes
não podes senhor? se não podes não és tu o deus do nosso coração se não queres és um ser indiferente desapaixonado não és tu o deus de isaac jacob e abraão
se não podes nem queres és impotente e indiferente deus dos fracassados e dos dementes
podes senhor podes exterminar o mal? essa a tua natureza e essência
mas não o fazes não cumpres teus preceitos não alimentas os teus eleitos com paz e rectidão não és o nosso pastor quem nos leva a descansar em verdes campos a água pura irrigados
não te entendo senhor
mas uma prometimento te faço desisto de te buscar fora
buscar-te-ei dentro
e se num qualquer dia
no recanto da minha alma te encontrar
perguntar-te-ei
porque nasce o mal do bem o imperfeito do perfeito o injusto do justo o padecimento da paz
nesse dia
- talvez a final tudo pareça bem -
com o coração em chamas
o espírito em festa por te ter
sabendo que nos amas
de vez vencido o mal
louvar-te-ei
então
olharás do céu para o filho do homem e encontrarás um sensato que te desejou sem desfalecer em momento algum
per omnia saecula saeculorum
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